Olhar nos olhos. Bruno no Meeting de Rimini 2004
Trechos da palestra de Bruno Tolentino sobre o livro Una presenza che cambia (Uma presença que muda), de Luigi Giussani, no Meeting de Rímini de 2004“Outro dia eu pensava, justo eu, pequenininho, tendo chegado a este momento, e como poeta (que, sendo um poeta cristão, não sirvo para nada duplamente, porém tenho duas vezes a mesma função) eu pensava: ‘Qual seria a função do poeta na apresentação de um livro como este aqui [Una presenza che cambia, de Luigi Giussani; nde]? Um poeta pode dizer isto – e talvez só um poeta possa dizê-lo – que um livro como este prova que o cristianismo é uma comunicação. Não o comunicar-se de alguma coisa, mas da totalidade do ser, e essa totalidade do ser não pode estar senão numa pessoa viva, ali, em uma presença: é um olhar, dois olhos que encontram dois olhos, que o questionam, e o esforço para responder a esse questionamento. Aí está o Mistério de Deus, do cristianismo, que não é uma religião, uma filosofia ou um modo de ser. Uma filosofia pode pretender menos, mas não o cristianismo: o cristianismo é o presente que Cristo deu à carne, isto é, se fez dom, se fez carne, para vir ao nosso encontro. Tudo, está tudo aí, nesse comunicar-se fisicamente. E não podemos deixar-nos substituir por uma teoria: o mundo como conceito não pode tomar lugar dAquele que morreu na cruz por nós, depois de ter nascido no seio de uma mulher, de uma moça que não era ninguém. Por isso entendi que o Movimento [Comunhão e Libertação] não é nada se não for um método; o movimento é um método, não uma filosofia, menos ainda uma magia. Não, o movimento é um modo de nos colocarmos em relação, de encontrarmos Jesus. Porque – diz Giussani (e vocês cairão na risada quando lerem isso) – Jesus não é, antes de tudo, a verdade, Jesus é o caminho para a verdade. Giussani diz algo assim [em um encontro, nde] e aquelas pessoas ficam realmente “horrorizadas”: “Como não é a verdade?” “Não, não, Jesus é o método que Deus encontrou para se fazer conhecer, é o Caminho, a Verdade e a Vida, nessa ordem”. Para nós é, antes de tudo, o Caminho e, assim, nós, tudo aquilo que fazemos, é um modo de manifestar essa Verdade que nos leva à Vida. [...] Há coisas magníficas neste livro, que vocês não encontram nem na mais brilhante teologia. Por exemplo, quando nos faz pensar que Pascal intuiu que o Batismo não muda somente o estado do ser, mas a natureza do ser: não é que eu sou melhor ou um pouco melhor; não, eu sou diferente, sou uma pessoa diferente depois do Batismo. Este livro nos faz entrar, a cada duas ou três páginas, no apelo do sobrenatural, isto é, ele nos chama a viver o cristianismo como algo que acontece continuamente, num outro nível, diferente daquele no qual vivemos ou escolhemos viver normalmente. O cristianismo nos faz viver normalmente o bío e a zoe dos gregos, porque vivemos sempre com o dom desta graça que nos faz ser mais que um mero processo biológico, embora eu tenha que lembrar o que são Boaventura dizia da criatura: o seu presente estado terreno seria uma primeira, uma cópia ruim do ser. Isso significa que ainda há muito que fazer. Porém, nós não conseguimos, não podemos nos transformar em nova criatura – é Deus quem a faz No máximo, poderíamos ser uma cópia menos feia, mas mais que isso não. Isso nos faz depender constantemente de Deus, para que Ele complete sua obra, e isso nos eleva juntos a um nível em que não podemos prescindir de ninguém.
Todos sabemos que Deus quer ser amado acima de todas as coisas e, como se não bastasse, nos diz para amar ao próximo como a nós mesmos – o que parece ainda mais difícil. Todos sabemos que o próximo, quanto mais distante estiver, melhor!; por isso, ninguém consegue de fato confiar na capacidade de amor ao próximo. Mas no método de se colocar constantemente em atitude de acolhimento, em uma relação de acolhimento, está o carisma do Movimento. É nessa “coisinha de nada” que Giussani apóia todo o Movimento, ou seja, em acolher o outro, estar ali, olhá-lo e se relacionar com ele, sem tentar convencê-lo de nada (pois as pessoas não querem ser imediatamente convencidas de nada, já têm convicções demais). Baseado nesta pequena coisa ele ergueu o Movimento e é curioso, pois o livro causa este efeito: depois de meia hora de leitura, uma horinha de leitura, antes de dormir ou caminhando pela rua, esperando o ônibus, percebemos que temos ali, constantemente, um exercício de ser, que estamos aprendendo, re-aprendendo a pensar no que fazemos. E aprendemos realmente juntos: se tudo está no olhar de acolhimento, então devemos nos olhar nos olhos, devemos poder nos olhar nos olhos uns dos outros. Não temos nada a esconder, podemos realmente fazê-lo: não queremos manipular, não queremos instrumentalizar os outros, portanto, podemos nos olhar nos olhos.
Hoje, na coletiva de imprensa, um jornalista me perguntou quem enfim tinha razão, do meu ponto de vista: Sartre, quando dizia que “o inferno são os outros”, ou Giussani, com tudo o que nos faz saber. Eu respondi que Giussani não nos faz saber nada, nos leva a dar atenção ao outro. O outro será sempre um inferno se quisermos instrumentalizá-lo, talvez até pensando no bem dele. Até quem mata está pensando no bem de alguém – aliás, aprendemos que esta é a fórmula mais segura de matar milhares e milhares de pessoas; um mundo melhor nos ajuda muito a assassinar um monte de pessoas. De qualquer modo, as coisas dependem desse olhar, de olhar um nos olhos do outro, [...] pois é por isso que Cristo veio pessoalmente: se fosse para outra coisa, teria nos mandado um e-mail!
Penso que o método – esta coisa simplicíssima que Giussani apenas plagiou do Senhor: vir pessoalmente e nos olhar de frente –, esta insistência coloca-o em contraste não só com os profetas do nada, os Sartre, os Baudelaire, os Proust, os Beckett, mas também com Kierkgaard ou outros pensadores cristãos, porque Kierkgaard diz, falando do olhar vazio das estátuas gregas: “Será que a Grécia entendeu mal, não entendeu o instante, e por isso as suas estátuas nunca olham nada de preciso?” Não é que a Grécia entendeu mal o instante, porque é no instante que se encontra o Ser, o Mistério; o Ser se dá aí. Enquanto o observo, sou visto, nesse momento o instante e o Ser são inseparáveis – portanto, não é importante se a Grécia compreendeu o instante ou não, mas que ela não viu o homem. Com tudo o que sabemos do homem, com toda essa maravilha, os tesouros que os gregos nos deixaram, não souberam ver a pessoa, isto é, esta coisa que morre, que verdadeiramente tem necessidades, que não pode existir senão a partir de uma troca de olhares.
Falta-nos dizer apenas, com Giussani, que não podemos viver, que não podemos nos contentar com menos do que viver a dimensão sobrenatural da fé. O método é muito simples: olhar nos olhos uns dos outros, estar com os outros, acolher. Mas não podemos estar juntos só por estar, é preciso fazê-lo porque há uma Presença que muda tudo. A Presença que fez isso primeiro, que veio, que não tinha nenhuma necessidade de fazê-lo, mas veio para nos olhar de frente. Também terá olhado nos olhos de Judas, quando disse: “Trais o Filho do Homem com um beijo?”. Judas poderia ter sido completamente ignorado, Jesus poderia não olhar nos olhos dele naquele momento, e assim com todos os outros. Quando Pilatos lhe pergunta: “O que é a verdade?”, Jesus não diz nada, porém certamente olha nos seus olhos, e Pilatos, sem dúvida, compreendeu muito bem que fez uma pergunta idiota.
Termino com algo que me parece importantíssimo, entre tantas outras coisas importantes dessas trezentas páginas. Giussani nos fala da natureza da corrupção e relaciona a palavra corrupção à raiz corruo, às coisas que caem aos pedaços – ele diz que o corpo de um morto é algo que se desfaz, os membros se separam, não têm mais unidade, e nos diz que isso começa muito antes. Eis o trecho: “Por esse impasse passam as mães com os seus filhos, pois têm vergonha de lhes dizer, a uma certa idade: ‘Vá à Igreja, faça uma oração’. Têm vergonha. E depois, quando assistem ao décimo filme, concordam com o filme! Não há mais nenhuma lembrança que se contraponha positivamente à corrupção de todas as coisas. Pois a palavra corrupção pode ter um significado, mas me parece que corrupção pode ter derivado não só de corrumpo (corromper), mas também de corruo: os pedaços de uma pessoa que vão uns para cá, outros para lá. De fato, a corrupção de um morto significa que ele se desfaz em pedaços, as coisas se separam umas das outras.” (p.119).
Esta é a tragédia do mundo moderno, que se desfaz: as coisas não têm mais sentido e não têm mais sentido porque não estão unidas. E o movimento é um apelo a nos movermos continuamente, a não pararmos nunca, a estarmos sempre a caminho de um horizonte que nunca alcançaremos, mas que sempre nos chama. Isso nos leva sempre um ao outro; não percorremos o caminho sozinhos, mas – curiosamente – um rumo ao outro, olhos nos olhos – pois do contrário não teremos o antídoto contra o veneno moderno, que é exatamente este despedaçamento. Não podemos desistir, devemos estar sempre atentos à unidade que nos mantém juntos, juntos no nome de Cristo, dessa Presença que muda tudo e nos faz caminhar sempre adiante, adiante: não é preciso alcançar o horizonte, não precisamos nos preocupar com isso: Ele virá ao nosso encontro.