Revolução em curso

Quando desembarcar em Havana, dia 26 de março, Bento XVI encontrará um país que lentamente vai trocando de pele e uma Igreja à qual é confiada uma missão
Luca Fiore

“Dentro de um mês devo me aposentar e não podia acontecer coisa melhor do que terminar o meu serviço trabalhando como escolta de Nossa Senhora”. Quem diz isso é um policial cubano. Nossa Senhora é a Virgen de la Caridad do Cobre, a padroeira de Cuba. Este ano comemoram-se os quatrocentos anos do encontro de sua imagem na baía de Holguín. Dia 8 de agosto de 2010, pela primeira vez desde a ascensão de Fidel Castro ao poder, o governo de Havana permitiu que a imagem mais venerada na Ilha iniciasse uma peregrinação por todas as paróquias do país. As comemorações terão o seu auge com a chegada de Bento XVI. Ele estará em Cuba de 26 a 28 de março para uma visita que se anuncia histórica.

Transportada por um picape branca, a imagem da Virgem Maria percorreu as ruas em meio ao encantamento da população. A viagem de Nossa Senhora concluiu-se em Havana no último dia 30 de dezembro com uma grande Missa celebrada pelo arcebispo da cidade, o cardeal Jaime Lucas Ortega y Alamino, na praça fronteiriça ao Santuário de Santiago. A televisão estatal transmitiu o evento, do qual participaram dezenas de milhares de pessoas. Algo semelhante nunca havia acontecido antes. À parte o caso único da visita de João Paulo II, em 1998, aos católicos sempre foi proibido testemunhar a própria presença fora das paredes dos lugares de culto.

A mudança de atitude do regime comunista perante a Igreja Católica é um dos muitos enigmas da Cuba pós-Fidel. Se a visita do papa Wojtyla foi um real divisor de águas na vida dos cristãos cubanos, verdade também é que a situação não evoluía há anos. Na véspera daquela viagem foi alterada a Constituição e o Estado de “ateu” se tornou “laico”, o dia 25 de dezembro foi declarado dia festivo e a Santa Sé pôde constituir novas dioceses e enviar sacerdotes estrangeiros para a Ilha. Agora a situação parece que se desbloqueou e a autorização para as homenagens à Virgen de la Caridad foi um dos sinais mais evidentes disso. Quando o governo de Havana pediu ao cardeal Ortega e ao presidente da Conferência episcopal, dom Dionisio Guillermo García Ibáñez, que desempenhasse o papel de intermediário para a libertação de 115 prisioneiros políticos, os primeiros a ficarem estupefatos foram os próprios bispos cubanos. Pela primeira vez em meio século era publicamente reconhecida a função social da Igreja Católica no país. Um reconhecimento indireto, mas significativo.
Entende-se, pois, nesse contexto, a expectativa que cerca a visita de Bento XVI, dentro e fora da Ilha, que é esperada como um evento extraordinário.

PÁROCO EM GUANTÂNAMO. Mons. Pierluigi Manenti é um sacerdote bergamasco esculpido na pedra. Parece saído de um filme de Clint Eastwood. Ele é um dos 150 missionários fidei donum que chegaram a Cuba depois da visita de João Paulo II. Há catorze anos é pároco em San Antonio del Sur, na diocese de Guantânamo-Baracoa. É gente simples que frequenta sua igreja. Todos são pobres; alguns, muito pobres. Ele ensina o catecismo a crianças e jovens. À tarde, depois da escola, entre duzentos e 250 jovens chegam aos locais da paróquia para rezar, jogar vôlei, pingue-pongue, baralho. E também para tomar um lanche. Algo significativo num país no qual o dinheiro para se alimentar é realmente muito pouco.

Durante vários anos o missionário foi visto com suspeição pelas autoridades locais, mas com o passar do tempo as coisas foram mudando. “Tão logo cheguei, os funcionários da Prefeitura com os quais eu devia colaborar me olhavam com desconfiança ou até mesmo com raiva”, conta Manenti, que encontramos na Itália, onde está agora para um período de repouso. “Notei que ficaram muito impressionados com a Missa do cardeal Ortega que viram pela TV. A música, os cantos, os trechos da Bíblia... Acho que entreviram algo de positivo. Um deles me disse que queria ir a Santiago para assistir à celebração do Papa.

“A terra cubana precisa ser arada, é uma terra que anseia, que exige a presença da Igreja”. Dos onze milhões de habitantes, 60% são batizados. Mas os praticantes são apenas 1%. A política de Fidel Castro impôs duras provações à Igreja, mas não conseguiu apagar o pavio fumegante. O projeto era levá-la à extinção. Quem se declarava cristão não tinha nenhuma possibilidade de se afirmar no campo social. Os jovens eram proibidos de participar de qualquer organização que não fosse o partido. Os que desejavam ser sacerdotes eram mandados para campos de trabalho. A religião era deixada para os velhos. Quando estes morressem, a Igreja desapareceria com eles. Após os primeiros anos de aberta oposição ao regime (e consequente perseguição), os bispos cubanos decidiram, em 1976, que era inútil opor-se radicalmente à ditadura colocando em perigo a presença da Igreja na Ilha. A linha adotada foi amenizar o tom sem, porém, ceder a compromissos. Essa posição despertou muitas críticas. Sobretudo dos exilados em Miami.

“Quando João Paulo II viajou a Havana foi acusado de querer legitimar a ditadura de Fidel”, conta padre Chris Marino, da paróquia de San Michele, em Miami. “Os protestos vieram sobretudo de quem havia sofrido pessoalmente a perseguição dos barbudos. Hoje, porém, muitos dos dissidentes históricos já morreram e as críticas a Bento XVI são raras e menos violentas”. A paróquia do padre Marino é frequentada principalmente por fiéis hispânicos (99%). Muitos deles são exilados ou filhos de exilados cubanos.

Certa manhã, depois da Missa, aproxima-se do sacerdote uma velha senhora. “Tinha 88 anos. Era cubana. Me disse que queria participar da peregrinação a Cuba organizada pelo nosso arcebispo, por ocasião da visita do Papa. Ela havia deixado a Ilha ainda jovem, e nunca mais retornara. Me disse que sentia que precisava voltar, para estar lá com o sucessor de Pedro”. Duzentos cubanos vão participar da peregrinação de três dias organizada pela diocese de Miami. Muitos outros viajarão por conta própria.

TECIDO HUMANO. Ainda não está muito claro o que teria convencido Raúl Castro a inaugurar essa nova temporada de abertura em relação à Igreja. Até os bispos, no início, estavam meio desconfiados. Como desconfiado está o povo em relação aos anúncios do governo. Foram muitas as desilusões. Os analistas dizem que, como político pragmático que é – diferentemente do irmão – Raúl sabe que os problemas do país não podem ser resolvidos se não se afrouxar a morsa da ditadura. Uma coisa é certa: a economia está no limite máximo e o povo, desesperado. Para fechar as contas do Estado foi anunciada a demissão de 1,5 milhão de funcionários públicos em três anos. Como compensação, o governo abriu para a iniciativa privada pequenas atividades econômicas, como restaurantes, pizzarias ou barbearias. Mas os desempregados, que seriam potenciais clientes, não têm dinheiro para gastar. Em muitos casos, as permissões foram devolvidas. Inclusive porque a operação “micro-empreendedorismo” foi concebida em continuidade ao socialismo: o que se ganha a mais do que o salário público médio deve ser repassado ao Estado. O país, economicamente, está em coma. Raúl talvez tenha pensado que era preciso aplicar um remédio paliativo e, então, como marxista heterodoxo, administrou o “ópio do povo”.

Visto a partir da província rural de San Antonio del Sur, o problema é ainda mais evidente. “Não basta mudar as leis. É preciso mudar a mentalidade”, diz monsenhor Manenti: “O trabalho precisa ser pensado, programado e projetado pelo Estado. O povo não está acostumado a responder de maneira pessoal e, portanto, nem a se arriscar. Se a gente tira a responsabilidade e a liberdade da pessoa, acaba matando o humano. Aqui é o tecido humano que precisa ser reconstruído. Eu acho que a função da Igreja, hoje, é ajudar o povo – através da pastoral e da catequese – a voltar a usar a própria cabeça”.

Uma posição que não é óbvia nem na Europa cristã, imaginemos na Cuba desfibrada por cinquenta anos de comunismo! Assim, quase sempre as provocações de Manenti caem no vazio. “Um dia veio até mim um homem que jamais tinha vindo à igreja. Me diz que se for bem sucedido num certo negócio, daria mil rosas a Nossa Senhora. Eu lhe respondi: Nossa Senhora não deseja mil rosas. Ela espera que você comece a amar seriamente a mulher com quem você vive. Espera que a sua vida mude. Se a sua devoção são apenas as mil rosas, murchará como as flores. Ele me olhou como se eu estivesse dizendo uma loucura”. Acontece também com os parentes de doentes que o missionário ajuda, os quais imploram para que ele encontre medicamentos que não podem ser encontrados em Cuba. Mas não concebem a possibilidade de irem eles próprios ajudar os entes queridos. Mas alguns entendem. São aqueles que não têm nada a perder. “Há um grupo de jovens do ensino médio, por exemplo, que leva para as casas dos doentes a bolsa-despesa e que se dispõe a fazer, por alguns momentos, companhia a eles. Alguns doentes dizem: nunca vi gente que venha até aqui e fique um tempo comigo. Mas eles ficam”.

FRENTES ABERTAS. São duas as frentes da Igreja que mais metem medo no partido: a da educação e a da assistência aos pobres. Como toda ditadura, a cubana também é ciosa da educação dos jovens, porque sabe que o destino do país depende dos adultos de amanhã. Mas agora a ideologia não investe nas novas gerações e o niilismo está se tornando a mentalidade comum.
Uma outra incógnita é a classe dirigente que substituirá os revolucionários da primeira hora. Desaparecido o núcleo histórico dos seguidores fidelíssimos de Fidel, ninguém sabe como se comportarão os novos líderes, hoje com cerca de quarenta anos de idade. Porque é impossível saber o que de fato eles pensam.
É nesse deserto de certezas que desembarcará Bento XVI. Levará conforto ao povo cubano e ao pequeno rebanho dos cristãos, que aguarda – bem além das pequenas ou grandes aberturas do regime – a verdadeira liberdade para a Igreja. Muitos deles, em Havana, se perguntam: “O povo judeu esteve no deserto por quarenta anos. Nós estamos há cinquenta. Quanto ainda teremos que esperar?”.