"Uma vida que jorra constantemente da presença de Cristo"

Do gesto de Bento XVI à espera do novo Papa. O guia de CL, em entrevista à Alessandro Banfi, nos microfones da Tgcom24, domingo 10 de março de 2013, explica o que os cristãos ainda podem descobrir no que está acontecendo
Alessandro Banfi

Bom-dia ao Padre Julián Carrón, presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação. Obrigado por estar aqui conosco.
Obrigado, é um prazer.

O senhor, num artigo do la Repubblica deu um pouco o sentido do gesto [de Bento XVI] falando de um gesto de liberdade, essa foi a palavra-chave do seu comentário. Pode-nos explicar?
O sentido me parece muito simples: uma coisa assim, um gesto desta envergadura, não se pode explicar apenas com certos fatores que parecem estar na origem de um gesto assim: a coragem, as dificuldades, a situação da Igreja, porque não explicam uma coisa: a letícia do rosto do Papa. Surgiu-me esta ideia quando vi pela última vez o Papa com o rosto resplandecente antes de se fechar a porta de Castelgandolfo; podemos dar todas as interpretações que quisermos, mas aquela cara feliz permanece, e cada um tem de se confrontar com isto: se alguma interpretação é capaz de dar uma razão adequada para essa alegria.

E então qual é o verdadeiro sentido desse gesto?
Em meu entender apenas que há Alguém que enche o coração do Papa, que o faz transbordar dessa alegria que se vê na cara. Todos nós temos experiência disto. Não é uma estratégia, não é algo que nos podemos dar, não é algo que possamos obter com algum percurso muito bem pensado; é algo que descobrimos possuir quando sucede uma coisa tão grandiosa, tão bela que nos enche, tanto que nos faz resplandecer a cara. É uma plenitude na origem da liberdade.

Ratzinger porém não tem uma personalidade especialmente emotiva, ele mesmo diz de si: “Não sou um místico”. O percurso dele foi muito racional, muito intelectual até.
É por isso que ainda é preciso dar uma explicação adequada para isso, porque não é uma pessoa capaz de tomar uma decisão desta envergadura sem entender o seu alcance e consequências, não é uma pessoa que faça um gesto sem estar plenamente consciente. Por isso esta letícia de que falo não se pode reduzir a um problema sentimental; é uma letícia que tem uma origem de tal forma profunda, de tal forma enraizada no mais profundo do ser. Por isso eu dizia… me perguntava: será que alguém se pergunta o que quer dizer Cristo para Joseph Ratzinger, para a sua pessoa? Porque qualquer pessoa pode ver, quando tem uma experiência verdadeira de amor, que aquilo que enche a vida não é nenhuma estratégia, é encontrar-se diante de uma presença que surpreendentemente o faz resplandecer. Só se partirmos da experiência elementar do viver é que poderemos compreender a experiência elementar de um outro. Sem isso ficamos com a nossa interpretação, sem ver o que temos na frente; porque se alguém nos diz - quando nos veem tão contentes que até se perguntam - “O que te aconteceu?”, não é que, para explicar [isso], baste uma estratégia ou uma coragem. “Por que você veio trabalhar tão contente hoje?”, dizemos, “o que te aconteceu?”. É uma outra coisa, é Outro que está na origem daquele rosto que se encontra no colega ou no amigo.

Em suma, o senhor diz: [o Papa] levou a Igreja a refletir sobre a natureza, sobre o fundo da questão, ou seja, sobre Jesus Cristo.
Exato. Isso é o que ele disse. A questão é que, para poder compreender isto, é preciso que as pessoas que veem este gesto sem o reduzirem possam ter tido algum tipo de experiência. Porque nós podemos compreender a experiência de um outro se, de algum modo, tivemos experiência dele, caso contrário julgamos que o compreendemos, só que o reduzimos, e por isso temos de dar outras interpretações. Somente uma pessoa para quem Cristo é real, não meramente uma criação da imaginação, uma auto-convicção, não meramente o cristianismo como uma ética, não meramente todo reduzido a uma organização, mas uma vida – como disse da última vez, falando aos cardeais: a Igreja é uma vida que jorra constantemente da presença de Cristo -, é que pode explicar uma coisa do gênero. Compreendo que isso para muitas pessoas não é uma explicação porque, não tendo experiência de Cristo como algo real, pensam que não pode ser essa a explicação. Eu entendo, é perfeitamente compreensível, mas só quando se faz esta experiência – como faziam aqueles que O encontraram [Cristo]: “Nunca vimos coisa igual” - é que se pode compreender uma experiência do gênero.

E no entanto este gesto comunica também uma ânsia de renovação, de mudança, de auto-reforma da Igreja.
Mas isso me parece que está presente em tudo aquilo que ele disse depois, porque é como se no gesto houvesse não somente o apelo à renovação, dizendo o que é a Igreja e o que é Cristo, mas também o método: olhem que se Cristo não se tornar isto para nós, não se pode renovar a Igreja com estratégias, e se não nos convertermos a Ele, não no sentido em que tantas vezes entendemos a palavra “conversão”, como se fosse de novo uma coisa moralista; não, se Cristo não se tornar para nós a coisa mais querida, será impossível a renovação, porque o homem tem um desejo de plenitude: se não a encontra numa presença como Cristo, vai procurá-la algures, todos a procuramos noutro lugar se não for assim. Por isso, não só o gesto em si é já um apelo, como nos oferece também o método e o caminho para responder a esse apelo; não é apenas um apelo moralista, testemunha-nos o caminho. Como no primeiro encontro que o Evangelho conta, no primeiro encontro está a resposta e o caminho, quando os dois primeiros, João e André, encontraram Jesus, encontraram uma pessoa, uma presença tão excepcional que ali estava o caminho, tanto assim que voltaram no dia seguinte à Sua procura e se tornaram Seus para o resto da vida. A questão é se a Igreja compreende que esse é o método; só se a Igreja se torna uma presença, se cada cristão se torna este tipo de presença para que, vendo-o, uma pessoa quer tornar a vê-lo no dia seguinte porque é decisivo para a vida.

Ora, na sua opinião, quais são as necessidades da Igreja neste momento?
A Igreja necessita daquilo que ele nos disse ao proclamar o Ano da Fé, ou seja, a Igreja tem necessidade, como todos temos necessidade em todos os momentos da nossa vida, de redescobrir o que nos aconteceu quando nos tornamos cristãos, redescobrir isso de novo como algo de fascinante, de novo, de realmente atraente para a vida. Se se reduz isto a qualquer uma das reduções atuais do cristianismo: organização, ética, espiritualismo, nada disto é capaz de cativar a totalidade do eu, e se não cativa a totalidade do eu, procuraremos a satisfação em outro lugar. Eu gosto muito de uma frase de São Tomás que resume bem isso: “A vida do homem consiste no afeto que principalmente a sustenta, no qual encontra a sua maior satisfação”. O problema da vida para cada um de nós, crentes ou não crentes, é onde a pessoa encontra a sua maior satisfação. A questão é que em todas as presenças que encontramos, todas as pessoas que encontramos, num certo momento nos satisfazem e depois muitas vezes decai. Aqui a única questão é se existe uma presença em que a satisfação não apenas não decai como aumenta com o tempo, porque senão a vida perde significado. Encontramo-nos na famosa frase de Eliot: “Perdemos a vida vivendo”. Infelizmente essa é a experiência de muitos. Porém a experiência cristã oferece outra possibilidade: ganhar a vida vivendo. E você vê que isto é verdade porque em uma pessoa com a idade do Papa você não vê que é um perdedor; vê que no máximo da sua maturidade, no rosto, você vê que este homem ganha a vida vivendo.

Padre Julián, também vou lhe fazer uma pergunta, talvez banal, mas realista. Qual pode ser o retrato-falado do novo Papa?
Penso que aquilo que estamos dizendo é isto – não é que seja preciso um retrato especial -: é preciso um cristão, um crente, uma pessoa que possa testemunhar, como fez Bento XVI e, antes dele, João Paulo II – para citar os últimos dois – a beleza de Cristo; porque o problema hoje é o seguinte: num mundo desnorteado – tenhamos bem presente a situação em que nos encontramos, como mísseis à deriva -, que as pessoas possam encontrar algo a que agarrar-se, que possa responder verdadeiramente. E isto não é acima de tudo uma organização, acima de tudo uma comissão, é um cristão – digamos –, uma criatura nova. Parece-me a descoberta da pólvora dizer estas coisas, mas é simplesmente aquilo que todos desejaríamos encontrar ao nosso lado, encontrar na nossa frente: uma pessoa que, olhando para ela, nos faça companhia nas coisas fundamentais da vida.

O senhor citou antes o poeta inglês Eliot. Ora, o seu amado predecessor, Dom Giussani, respondendo a uma pergunta, numa das suas últimas entrevistas televisivas, dizia justamente a propósito da famosa frase de Eliot: “Foi a Igreja que abandonou a humanidade ou foi a humanidade que abandonou a Igreja?”, ele respondia: “As duas” e dizia: “A Igreja envergonha-se de Cristo”.
Sim, de certo modo sim. A questão é: por que temos vergonha de Cristo? Porque, não O tendo descoberto com toda a nossa humanidade, pensamos que não oferecemos a nós próprios e aos outros a maior coisa que podemos oferecer. Se alguém dá um presente a outro, dá-o contente porque considera que lhe está fazendo um agrado, que lhe dá o melhor que tem, mas para poder oferecê-lo assim, com esta liberdade, com esta alegria, com esta letícia, é preciso que esteja convicto de que isso é um bem para o outro, e só faz isso se tiver a convicção de que é um bem para si próprio. E a questão, então, é sempre a mesma: o que temos nós de mais querido? Porque se não tivermos a Cristo como o mais querido – como dizia o famoso Soloviev – então será difícil não termos vergonha de propô-lo. E quando uma pessoa tem esta letícia, isso se vê sobretudo nas pessoas que o encontram de novo, os últimos que acabam de chegar estão tão transbordantes de letícia por aquilo que encontraram que não têm vergonha nenhuma de o dizer, de tal maneira estão convictos de oferecer aos outros aquilo que para eles foi a descoberta da vida, como acontecia no início e como acontece agora nas pessoas que O redescobrem. O problema é este: que a Igreja, que cada um de nós, como cristãos, possamos redescobrir isso.

No último discurso, recebendo os padres da diocese de Roma, Ratzinger concluiu dizendo: “Cristo vence”. Em que sentido é verdadeira esta afirmação?
É uma certeza metafísica e existencial. A questão é que, segundo um desígnio que não é o nosso, vence naqueles que O aceitam; àqueles que O aceitam dá a potestade, o poder, a possibilidade de experimentar que são filhos de Deus, ou seja, que são tão capazes de poder viver aquela plenitude que Ele dá que, então, vence. Porque… porque, o que é a vitória? A vitória não é um poder, não é uma hegemonia, não é uma capacidade de controle, de domínio ou de posse do outro, é a capacidade de conquistar o nosso eu até à raiz, de nos atrair a tal ponto que nos possa verdadeiramente conquistar. É esta a vitória de Cristo. Sem isso o cristianismo não tem interesse, nem para nós nem para os outros.

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