Papa Francesco em Santa Marta.

O pecado de Davi

Através do episódio do rei e Betsabé, o Pontífice chama a atenção para os nossos pecados não reconhecidos. E para as vítimas dessa soberba. O verdadeiro problema não é a tentação, nem o cair nela. Mas “não chamar pelo nome” nossas próprias misérias
Alessandra Stoppa

O maior pecado de hoje é não chamar o pecado pelo seu nome. Substituí-lo por “um problema que precisa ser resolvido”. As homilias em Santa Marta são, hoje, parte fundamental do magistério do papa Francisco. Embora muito breves e improvisadas, contêm sempre os eixos do seu anúncio e do seu modo de anunciar. Como a homilia de sexta-feira passada, 31 de janeiro: poucos minutos, nos quais refletiu sobre o verdadeiro conhecimento do pecado e de nós mesmos. Partiu do acontecido com o rei Davi para nos dizer o quanto desconsideramos a nossa soberba. E ao fazê-lo, ofereceu um juízo cultural muito duro sobre o contexto de hoje, com palavras difíceis que precisam ser “amansadas”, pela radicalidade que carregam.

O segundo livro de Samuel conta que Davi se apaixonou por Betsabé, mulher de um dos seus mais fiéis soldados, Urias o Hitita. Viu-a do terraço, a quis para si e conseguiu. Mas Betsabé fica grávida e Davi manda Urias para a frente da batalha, dando ordens para ele ser mantido na primeira fila de combate. Ali encontrou a morte. Davi não se abalou com a traição, nem com o assassinato: “Encontra-se tomado por um grande pecado”, diz o Papa. “Mas ele não sente o pecado. Não lhe ocorre de pedir perdão”. Quer só encontrar um modo de superar o problema. E o modo mais rápido é eliminar o problema em si.

“Todos somos tentados e a tentação é o pão nosso de cada dia”, diz o Papa. “Se algum de nós dissesse: `eu jamais tive tentações´, ou é um querubim ou é um doido, não? Na vida é normal a luta, o diabo não fica parado, ele quer a vitória”. Mas o fato mais grave que o trecho bíblico põe diante de nós não é a tentação, nem a queda. “É o modo como Davi age. Ele não pensa no pecado, mas num problema que precisa resolver”. É um conhecimento distorcido daquilo que vivemos ou temos diante de nós. Não é um problema moralista, mas uma falha no modo de olhar e de julgar. Antes de tudo, na consciência de si mesmo. E quem o diz é um homem que à pergunta “Quem é Jorge Mario Bergoglio?” respondeu: “Sou um pecador”. Não como nós dizemos: somos todos pecadores... Ele próprio explicou isso numa outra missa matutina (de 25 de outubro): “Nós o dizemos como que procurando sempre uma justificativa. Não como são Paulo, que vive uma luta dentro de si, e se confessa pecador diante da comunidade”. Por isso, a vergonha que sentimos ao confessarmos “face a face” com o padre “é uma graça: porque o pecado é concreto, ao passo que nós tendemos a ocultar a realidade das nossas misérias”. Nós nãos os reconhecemos.

Assim, suas palavras sobre o rei Davi são também um poderoso juízo sobre a mentalidade do nosso tempo, que se recusa a chamar as coisas pelo próprio nome, chegando a afirmar que tudo é igual a tudo: do aborto a ideologias, como aquela do tipo que substitui a cultura pela natureza.”Isso é um sinal!”, diz o Papa. “Quando o Reino de Deus enfraquece, quando o Reino de Deus diminui, um dos sinais é que se perde o senso do pecado. Todo dia, no Pai Nosso, pedimos que venha o Teu reino. Mas um dos sinais de que o Reino não cresce é essa perda do senso do pecado, que abre espaço para uma visão antropológica superpoderosa”. Não sentir o pecado é afirmar: “eu posso tudo”. E Davi é escravo não do seu erro,mas do pecado não reconhecido. Porque não conhecer a si mesmo e a própria miséria impede que se experimente a plenitude que vem de Deus. A salvação não virá de nós mesmos, nem da nossa “inteligência e astúcia”, mas “da graça de Deus e do treinamento quotidiano que nós fazemos dessa graça”.

Impressiona também a conclusão: “Eu lhes confesso que, quando vejo essas injustiças, essa soberba humana, também quando vejo o perigo de que isso aconteça comigo mesmo, o perigo de perder o senso do pecado, me faz bem pensar nos muitos Urias da história, nos muitos Urias que ainda hoje sofrem pela nossa mediocridade cristã. São os mártires dos nossos pecados não reconhecidos”. São aqueles que morrem porque “pagam a conta do banquete dos autossuficientes”. Dos “cristãos autossuficientes”.

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