Bento XVI

Três papas e a “casa comum”

João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Um percurso pelos alertas da Igreja sobre os temas centrais do Sínodo da Amazônia. Pois não está em jogo só «uma ecologia “física”, mas também uma ecologia “humana” que torne mais digna a existência»

Às vésperas do Sínodo da Amazônia, propomos algumas falas dos últimos três pontífices sobre a ecologia e o cuidado da “casa comum”, entre os temas chave da Assembleia Extraordinária dos bispos que se abre no dia 6 de outubro.
Da
Redemptoris hominis à Laudato si’, passando pelo discurso ao Parlamento Alemão, o olhar da Igreja sobre a mudança climática, a exploração dos recursos naturais, os modelos de desenvolvimento: «um desafio de civilização» que diz respeito à raiz da dignidade do homem e ao «sentido da nossa passagem por esta terra».


«O homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz; ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência. Deve pôr-se, portanto, uma interrogação: por que razão um tal poder, dado desde o princípio ao homem, poder mediante o qual ele devia dominar a terra, se volta assim contra ele? O homem parece muitas vezes não dar-se conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles somente que servem para os fins de um uso ou consumo imediatos. Quando, ao contrário, era vontade do Criador que o homem comunicasse com a natureza como “senhor” e “guarda” inteligente e nobre, e não como um “desfrutador” e “destrutor” sem respeito algum.»
Leia a carta encíclica Redemptor hominis (1979) de João Paulo II

«O carácter moral do desenvolvimento também não pode prescindir do respeito pelos seres que formam a natureza visível, a que os Gregos, aludindo precisamente à ordem que a distingue, chamavam o «cosmos». Também estas realidades exigem respeito, em virtude de três considerações sobre as quais convém refletir atentamente.
Não pode fazer-se impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados – animais, plantas e elementos naturais – como se quiser, em função das próprias exigências econômicas. Pelo contrário, é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado, qual é exatamente o cosmos.»
Leia a carta encíclica Sollicitudo rei socialis (1987) de João Paulo II

João Paulo II

«Observa-se nos nossos dias uma consciência crescente de que a paz mundial está ameaçada, não apenas pela corrida aos armamentos, pelos conflitos regionais e por causa das injustiças que ainda existem no seio dos povos e entre as nações, mas também pela falta do respeito devido à natureza, pela desordenada exploração dos seus recursos e pela progressiva deterioração da qualidade de vida.
Perante a difusa degradação do ambiente, a humanidade já se vai dando conta de que não se pode continuar a usar os bens da terra como no passado. A opinião pública e os responsáveis políticos estão preocupados com isso; e os estudiosos das mais diversas disciplinas debruçam-se sobre as causas do que sucede. Está assim a formar-se uma consciência ecológica, que não deve ser reprimida, mas antes favorecida, de maneira que se desenvolva e vá amadurecendo até encontrar expressão adequada em programas e iniciativas concretas.»
Leia a Mensagem para o XXIII Dia Mundial da Paz (1990) de João Paulo II

« Na raiz da destruição insensata do ambiente natural, há um erro antropológico, infelizmente muito espalhado no nosso tempo. O homem, que descobre a sua capacidade de transformar e, de certo modo, criar o mundo com o próprio trabalho, esquece que este se desenrola sempre sobre a base da doação originária das coisas por parte de Deus. Pensa que pode dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair. Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele.
Não se trata apenas de “dar o supérfluo”, mas de ajudar povos inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento económico e humano. Isto será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades.»
Leia a carta encíclica Centesimus annus (1991) de João Paulo II

« O aspecto de conquista e de exploração dos recursos tornou-se predominante e invasivo, e hoje chega a ameaçar a própria capacidade acolhedora do ambiente: o ambiente como «recurso» corre o perigo de ameaçar o ambiente como «casa». Por causa dos poderosos meios de transformação, oferecidos pela civilização tecnológica, parece às vezes que o equilíbrio homem-ambiente tenha alcançado um ponto crítico.»
Leia o Discurso a um congresso sobre ambiente e saúde (1997) de João Paulo II

« Por isso, é preciso estimular e apoiar a “conversão ecológica”, que nestes últimos decénios tornou a humanidade mais sensível aos confrontos da catástrofe para a qual estava a caminhar. O homem não é mais "ministro" do Criador. Mas, como déspota autónomo, está a compreender que finalmente tem de parar diante do abismo.
Não está em jogo, por conseguinte, só uma ecologia “física”, atenta a tutelar o habitat dos vários seres vivos, mas também uma “ecologia humana” que torne mais digna a existência das criaturas, protegendo o bem radical da vida em todas as suas manifestações e preparando para as futuras gerações um ambiente que se aproxime cada vez mais do projeto do Criador.»
Leia a Audiência geral (17 de janeiro de 2001) de João Paulo II

Papa Francisco

«Entre as questões fundamentais, como não pensar nos milhões de pessoas, especialmente nas mulheres e nas crianças, que não têm água, alimentos, habitação? O escândalo da fome, que tende a agravar-se, é inaceitável num mundo que dispõe de bens, de conhecimentos e de meios para lhe pôr termo. Ele estimula-nos a mudar os nossos modos de vida; recorda-nos a urgência de eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e de corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente e um desenvolvimento humano integral para o presente e sobretudo para o futuro.»
Leia o Discurso ao corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé (2007) de Bento XVI

«O tema do desenvolvimento aparece, hoje, estreitamente associado também com os deveres que nascem do relacionamento do homem com o ambiente natural. Este foi dado por Deus a todos, constituindo o seu uso uma responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a humanidade inteira. Quando a natureza, a começar pelo ser humano, é considerada como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo, a noção da referida responsabilidade debilita-se nas consciências.
As modalidades com que o homem trata o ambiente influem sobre as modalidades com que se trata a si mesmo, e vice-versa. Isto chama a sociedade atual a uma séria revisão do seu estilo de vida que, em muitas partes do mundo, pende para o hedonismo e o consumismo, sem olhar aos danos que daí derivam.»
Leia a carta encíclica Caritas in veritate (2009) de Bento XVI

«A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero insistir num ponto que - a meu ver –, hoje como ontem, é descurado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana.»
Leia o Discurso ao parlamento federal alemão (2011) de Bento XVI


«Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras.
Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta.»
Leia a exortação apostólica Evangelii gaudium (2013) de Francisco

«Se “os desertos exteriores se multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos”, a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior [...] que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã.
Exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta terra.»
Leia a carta encíclica Laudato si’ (2015) de Francisco

«O problema da mudança climática está ligado a questões de ética, equidade e justiça social. A situação atual de degradação ambiental está ligada à degradação humana, ética e social, como experimentamos hoje em dia. E isto nos obriga a refletir sobre o sentido dos nossos modelos de consumo e de produção e aos processos de educação e de sensibilização para torná-los coerentes com a dignidade humana. Estamos diante de um “desafio de civilização” em favor do bem comum. E isto é claro, como também é claro que há uma multiplicidade de soluções que estão ao alcance de todos, se adotarmos, nos níveis pessoal e social, um estilo de vida que encarne a honestidade, a coragem e a responsabilidade».
Leia o texto da videomensagem por ocasião do Climate Action Summit na ONU (2019) de Francisco