Passos N.111, Dezembro 2009

Além do círculo

Há um acontecimento importante que, há alguns anos, marca o mês de novembro. É a Coleta de Alimentos, a jornada organizada pela Companhia das Obras para recolher alimentos com os consumidores que vão às compras nos supermercados, com a finalidade de doá-los aos pobres. É o momento culminante de um trabalho que dura o ano todo e que envolve cada vez mais pessoas. Neste quarto ano de Coleta no Brasil, foram cinco mil voluntários em 28 cidades do país. Paradoxalmente, esse gesto carrega dentro de si um risco. Não é tanto – ou apenas – o hábito, a possibilidade de as pessoas considerarem óbvio esse tipo de atividade (já estamos na quarta edição). Não, estamos falando de algo mais sutil. Algo que, estranhamente, decorre da simplicidade mesma do gesto.
No fundo, a Coleta é como um círculo que só se fecha com perfeição uma vez ao ano. Em primeiro lugar, há os que têm dificuldade para fazer o dinheiro chegar até o fim do mês, e geralmente não têm o suficiente para se alimentar. E há os que recolhem as sobras dos supermercados, que costumam ser jogadas no lixo (trabalho do Banco Alimentar). E, por fim, há os que levam esses víveres aos pobres (os Bancos de Solidariedade e outras associações). Uma grande ideia, uma aplicação inteligente e uma máquina organizativa que funciona. Muito bem.
No entanto, os de fora poderiam fixar-se aí, no belo gesto. Gesto grande, comovente, capaz de chegar às páginas dos jornais. Mas destinado a desaparecer alguns dias depois na mente dos que não estão diretamente envolvidos com o Banco, com os Bancos de Solidariedade ou com os que recebem as cestas.

NÃO É ASSIM, PORÉM.Nesse sábado de novembro – e no que traz à tona – há muito mais do que isso. Há tudo. Porque basta raspar o verniz dos estereótipos sobre a crise e os “novos pobres” para se encontrar o que um recente Relatório da Fundação para a Subsidiariedade afirma com números e porcentagens e que o próprio Bento XVI fixou numa passagem da Caritas in Veritate: “Um dos mais profundos tipos de pobreza que o homem pode experimentar é a solidão. Olhando bem, inclusive os outros tipos de pobreza, mesmo a material, nascem do isolamento, do não ser amado ou da dificuldade de amar”.
A pessoa é pobre porque está só. Muitas vezes, antes de ser uma questão de desemprego, de dinheiro, até mesmo de fome, a pobreza é solidão. Necessidade de uma relação, mais do que de dinheiro. Isso pesa tanto quanto o alimento. Aliás, mais do que o alimento. Porque não é uma relação qualquer que falta – ao pobre como a todos nós: é “a” relação, a ligação com o significado, com o que dá sentido e dignidade a tudo. Com o Mistério. Não por acaso, essa página do Papa prossegue assim: “A pobreza, em geral, é gerada pela recusa do amor de Deus, por um original e trágico fechamento em si mesmo, por parte do homem, que pensa bastar-se a si próprio, ou de ser só um fato insignificante e passageiro, um estranho num universo que se formou por acaso. O homem é alienado quando está só ou se afasta da realidade, quando renuncia a pensar e a crer num Fundamento”.

O CORAÇÃO DA COLETA,e do trabalho que é realizado durante o ano todo, é justamente isso. Na origem daquele círculo simples e perfeito, traçado pelo Banco de Alimentos, pelos Bancos de Solidariedade e por muitas outras obras – ou, poderíamos dizer, por qualquer forma de verdadeira caridade –, está algo que vai além. Um fator que pesa muito mais do que a cesta de alimentos levada aos necessitados. Há o “Fundamento”, para usar a expressão do Papa: Cristo. E chegar até aí, a reconhecê-Lo, é o que de fato dá início à expulsão da solidão. De quem recebe e também de quem doa.
O leitor encontrará o testemunho disso em muitas histórias contadas nas páginas deste número de Passos. Mas é uma possibilidade para todos. Que talvez tenha começado nesse sábado de novembro, no qual se pôde entrar no supermercado pensando em “fazer o bem” e se pôde sair tendo dado um passo a mais no conhecimento da realidade. De si. E daquilo de que todos precisam para viver.