Passos N.114, Abril 2010

Muito maior que o pecado

Haveria muito o que discutir a respeito do que levou Bento XVI a escrever a Carta aos católicos da Irlanda. Poderíamos fazê-lo partindo dos fatos, dos números e dos dados que – lidos corretamente – falam de uma realidade muito menos imponente do que dá a entender a feroz campanha encetada pela mídia; ou das contradições dos que, nos mesmos jornais, acusam – com razão – certas coisas ignóbeis, mas algumas páginas depois justificam tudo e todos, sobretudo em matéria de sexo. Seria possível, e talvez isso ajudasse a entender melhor o contexto de uma Igreja sob ataque, independentemente dos seus erros. Só que o gesto humilde e corajoso do Papa levou a coisa para outros patamares, para o centro da questão.
Claro, a ferida existe. E é gravíssima. Do tipo da que levou Cristo a dizer aquelas palavras de fogo: “Quem escandalizar um só destes pequeninos que creem em mim, seria melhor que lhe pendurassem no pescoço uma pedra e o jogassem no abismo...”.
Há coisas torpes na Igreja. Isso foi reconhecido, de modo claro e forte, pelo próprio Joseph Ratzinger na Via Sacra de cinco anos atrás, pouco antes de se tornar Papa, e que nunca parou de lembrar depois, com realismo. Há o pecado, inclusive grave. Há o mal e o abismo de dor trazido pelo pecado. E há também a exigência de se fazer todo o possível – até com dureza – para frear esse mal e reparar essa dor. O Papa o está fazendo, como prova eloquentemente a sua Carta, ao lembrar que os culpados terão de responder “diante do Deus onipotente, como também perante os tribunais” humanos.
Mas, justamente por essas razões, o verdadeiro centro da questão, o focus esquecido, está em outro lugar. A par de todos os limites e dentro da humanidade ferida da Igreja há ou não há algo maior do que o pecado? Radicalmente maior que o pecado? Há algo que pode romper a medida inexorável do nosso mal? Algo que, como escreve o Pontífice, “tem o poder de perdoar até o mais grave pecado e de tirar o bem inclusive do mais terrível dos males?”.
Esse é o ponto: “Deus teve compaixão do nosso nada”, lembrava Dom Giussani numa frase usada por CL no cartaz de Páscoa: “Não só: Deus se comoveu com a nossa traição, com a nossa rude pobreza, esquecida e traidora, com a nossa mesquinhez. É uma compaixão, uma piedade, uma paixão. Teve piedade de mim”.
É isso que a Igreja traz ao mundo, não certamente por mérito, bravura ou coerência dos seus membros: a compaixão de Deus é pela nossa mesquinhez. Algo muito maior do que os nossos limites. A única coisa infinitamente maior do que nossos limites. Se não partirmos daí, não compreenderemos nada. Tudo fica incompreensível, literalmente.
Costumamos nos esquivar dessa compaixão, tentar escapar dela. Às vezes é dentro da própria Igreja que se reduz a fé a uma ética, e a moralidade a um impossível recurso solitário às leis, parecendo até que sentir necessidade desse abraço seja uma coisa de que deveríamos nos envergonhar. Mas se nos esquecermos de Cristo, se descartarmos totalmente a medida diferente que Ele introduz no mundo agora, através da Igreja, não teremos mais os termos necessários para entendermos e julgarmos a própria Igreja. Então, fica fácil confundir a atenção às vítimas e à sua história com silêncio conivente, e a prudência em relação aos culpados (verdadeiros ou presumidos) – acusados, talvez, por vozes que só se levantaram décadas depois – com a vontade de criar “cortina de fumaça” (o que, às vezes, evidentemente, ocorreu mesmo). Torna-se quase que inevitável falar mal do celibato, sem mencionar sequer o valor real da virgindade. E torna-se impossível entender por que a Igreja pode ser dura e, ao mesmo tempo, materna com os seus sacerdotes que erram. Pode puni-los com severidade e exigir que paguem a pena e reparem o mal feito (é o que ela vem fazendo, não de hoje, pois sempre o fez), mas sem romper – quando possível – o elo de ligação, por ser a única coisa que poderá redimi-los. Pode pedir aos seus filhos “sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai”, não para exigir deles algo impossível, mas para despertar neles a tensão a viver a misericórdia com que Deus nos abraça (“sede misericordiosos como é misericordioso o Pai que está nos céus”). É justamente por isso que a Igreja pode educar. Que, no fundo, é a verdadeira questão posta em discussão pelos que estão acusando (“vejam como até os padres erram, e erram feio! Como podemos confiar a eles as nossas crianças?”), como se o título de mestra da Igreja dependesse da coerência dos seus filhos, e não d’Ele. De Cristo. Da Presença que – em meio a todos os erros e horrores cometidos – torna possível no mundo um abraço como aquele do Filho pródigoretratado por Chagall no mesmo cartaz de Páscoa. Ali, junto com a frase de Giussani, há uma outra, de Bento XVI: “No fundo, converter-se a Cristo significa precisamente isto: sair da ilusão da auto-suficiência para descobrir e aceitar a própria indigência, a exigência do seu perdão e da sua amizade”.
É isso: o abraço de Cristo, dentro da nossa humanidade ferida e indigente e para além do mal que podemos cometer. Se a Igreja – com todos os seus limites – não pudesse oferecer isso ao mundo, inclusive às vítimas dessas barbaridades, então sim estaríamos perdidos. Porque o mal continuaria a existir, mas aí seria impossível vencê-lo.