Passos N.158, Maio 2014

Olhos novos

Desde o tempo de Judas e dos apóstolos a objeção é quase sempre a mesma: Jesus realmente responde aos problemas que a vida coloca diante de nós? Pode dissolver os nós e as preocupações de uma humanidade cada vez mais confusa e incerta, capaz de trocar a vida pela morte, os desejos pelos direitos e a própria necessidade de felicidade por uma coleção de coisas ou pessoas a serem conquistadas? Em suma, Cristo muda realmente a história? Aceita-se a fé, os milagres, o Evangelho..., e aceita-se inclusive a Ressurreição: certo, desconcerta, mas no fundo, não causa problema. Mas essas coisas são úteis para a vida?

Na biografia de Dom Giussani, lançada na Itália e escrita por Alberto Savorana, em meio a tantas preciosidades, de repente nos deparamos com citações de um livreto que o fundador de CL escreveu em 1955, menos de um ano depois do nascimento do Movimento. Intitula-se Respostas cristãs aos problemas dos jovens. Giussani, observa o autor, discute uma objeção bastante difundida: “Ele veio há 2000 anos e o mundo está cheio de maldade, como antes; há 2000 anos a Igreja o anuncia ao mundo, e os homens ainda gemem sob os mesmos problemas não resolvidos. Então, pareceria mais do que lícito não confiar n’Ele, passaram-se 2000 anos”. A resposta de Giussani é surpreendente: “Jesus não veio para trazer a solução mecanicamente completa dos problemas humanos: Jesus trouxe o princípio profundo da solução que, por meio da liberdade humana, se aplica e se afirma”. É a raiz, a semente – quase literal – daquilo que anos depois se tornará o oitavo capítulo de Na origem da pretensão cristã, um texto sobre o qual muitos dos nossos leitores estão trabalhando há algum tempo.
Mas, logo depois, Giussani acrescenta: “É tarefa de todo cristão aplicar – por assim dizer – a técnica do princípio resolutivo, que é Cristo, a cada problema e a cada situação. Essa aplicação acontece na medida em que o puro ideal de Cristo se torna vivo em seus fiéis”. E diz, ainda: “Quanto mais Cristo é seguido e os seus valores ideais são levados a sério como norma, tanto mais o problema humano é resolvido”. Por isso, a tarefa do cristão é “encarnar os valores ideais de Cristo (...) nas tentativas de resposta que se procurará dar àquelas exigências”.
“O puro ideal de Cristo”. Ele vivo e o Seu modo de olhar a realidade, encarnado e vivido. Porque, como diz Dom Giussani em outra ocasião, “cada um dos valores são como os ossos que se formam no decorrer do tempo à medida que a pessoa segue o que o pai e a mãe lhe oferece (...). Seguindo o olhar com que Jesus o olhava, São Pedro tornou-se realizado: são os valores morais”.
Esquecer este olhar, considerá-lo óbvio, colocá-lo “à margem” da vida, é perder tudo.

Portanto, não a vida “à margem” de Jesus, mas com Ele, dentro do Seu olhar. Como diz o Papa no Cartaz de Páscoa de CL divulgado neste período: “A vida com Jesus se torna muito mais plena, com Ele é mais fácil encontrar o sentido para cada coisa”. Fora deste olhar não é possível entender o mundo e as evidências se ofuscam. Mesmo aquelas mais claras e queridas. Podemos entender bem isso lendo, neste número de Passos, sobre o debate na Espanha a respeito do aborto, sobre os fatos que acontecem na América do Sul ou sobre as “mulheres de Rose”, em Kampala. Parecem crônicas do primeiro milênio e também ajudam a compreender melhor o desafio que padre Julián Carrón lançou a um grupo de responsáveis do Movimento, reunido no Brasil: “Pensem em Pedro e nos primeiros discípulos: como entraram em Roma, no coração de um mundo que dizia o contrário? O que eles tinham? Somente olhos novos, um outro olhar sobre o mundo”. O olhar de Cristo, ressuscitado.