Passos N.175, Novembro 2015

O rigor dos afetos de Deus

Ao passar pela Filadélfia, no final de setembro, Papa Francisco participou do encerramento do Encontro Mundial das Famílias. Ali, o Santo Padre – como frequentemente faz – pôs de lado o discurso já preparado e falou de improviso. Falou de uma pergunta difícil que um menino lhe fez certa vez (“o que fazia Deus antes de criar o mundo?”), de um Amor “tão transbordante” que tinha de “sair de si”, da Criação. E da “coisa mais bela que Deus fez: a família. Criou o homem e a mulher. E confiou-lhes tudo”.

Não podia haver melhor introdução ao Sínodo sobre a família realizado em Roma, de 4 a 25 de outubro. O segundo, no espaço de um ano. Muito aguardado pelos meios de comunicação já prontos, apostando quem iria vencer, os “progressistas” ou os “conservadores”. Mas, sobretudo pelos fiéis, pelo povo de Deus. E não tanto para desembaraçar os nós sempre mais emaranhados que, hoje, a realidade nos apresenta, mas porque a família realmente precisa. Precisa ser defendida e sustentada, porque “não podemos pensar numa sociedade sã que não dê espaço concreto à vida familiar”, recordava o próprio Francisco. Mas precisa, em primeiro lugar, ser ajudada a redescobrir a si mesma. A sua força, a enorme potência que tem, mesmo agora.
A primeira forma de ajudá-la a redescobrir-se é não se falar dela em abstrato, não “reduzi-la a um modelo ideal”, como nota a socióloga Chiara Giaccardi em entrevista a Passos. A família é uma vida, ou melhor, um “concreto vivente”, dizia Romano Guardini. Um lugar humaníssimo – o mais humano – e, portanto, cheio de limites, de feridas. Mas também um lugar – o único, talvez – onde ainda é possível aprender todos os dias que a fragilidade e o limite não são o que nos define, mas ocasião para crescer. O “nó de uma rede” na qual entendemos que o vínculo, a relação, é uma ajuda para sermos nós mesmos. Um âmbito em que a normalidade é a verdadeira força.

Mas há outro motivo pelo qual a família é hoje um tema decisivo não só para a Igreja. O Papa de novo falou dele no discurso aos Bispos americanos. No qual, com realismo, sublinhou “a profunda transformação do quadro histórico, que influi na cultura social – e agora, infelizmente também jurídica – dos laços familiares que a todos nos envolve”, crentes e não crentes. “Há uns tempos vivíamos num contexto social em que as afinidades da instituição civil e do sacramento cristão eram substanciais e partilhadas: sustentavam-se mutuamente. Agora já não é assim”. As evidências antigas estão ofuscadas também aqui, deixaram de parecer nítidas a todos.
Podemos suspirar pelos tempos antigos, diz o Papa: refugiar-nos em frases como: “antes era melhor; o mundo é um desastre e, se continuar assim, não se sabe aonde iremos parar”. Ou então “acompanhar, amparar, curar as feridas do nosso tempo. Olhar a realidade com olhos de quem sabe estar chamado ao movimento, à conversão pastoral. O mundo hoje pede-nos isto com insistência”. Conversão. E testemunho, porque “um cristianismo que ‘se faz’ pouco na realidade e ‘se explica’ infinitamente na formação” torna-se “um círculo vicioso”. É preciso “mostrar que o Evangelho da família é verdadeiramente ‘boa nova’ num mundo em que a atenção a nós mesmos parece reinar soberana! São as famílias que transformam o mundo e a história”.
Francisco encerrou aquele discurso assim: “se formos capazes deste rigor dos afetos de Deus, usando infinita paciência, e sem ressentimento com os sulcos nem sempre lineares onde devemos semeá-los – pois muitas vezes temos de semear em sulcos tortos –, até uma mulher samaritana com cinco ‘não-maridos’ se descobrirá capaz de dar testemunho. E, para um jovem rico que tristemente sente que deve pensar ainda com calma, haverá um maduro publicano que descerá precipitadamente da árvore e se fará defensor dos pobres, nos quais nunca pensara até então”. É o cristianismo. Disso pode viver a família.