Passos N.183, Agosto 2016

Lá onde estamos

Como fazemos experiência da misericórdia? Sobretudo: “Eu preciso da misericórdia para viver”? É a pergunta que as comunidades de CL colocaram como tema das férias de julho. E é uma pergunta urgente, no fim de um semestre muito intenso marcado por dramas e tensões (os atentados na França, em Bruxelas, em Istambul, o clima de insegurança, os vários e difíceis episódios eleitorais por que passamos, a crise que se torna mais aguda...) e, ao mesmo tempo, extraordinário, exatamente porque o Papa imprimiu-lhe o selo do único fato que pode abraçar toda essa dificuldade: a misericórdia. Um fato capaz de julgar tudo, de preencher cada circunstância, de medicar a nossa humanidade ferida dando-lhe “não um coração remendado, mas um coração novo, recriado”, como disse recentemente o Papa aos sacerdotes: regenerado por uma “segunda criação ainda mais maravilhosa do que a primeira”. Francisco chama a atenção para isso continuamente, de mil maneiras: a misericórdia recria. Ou seja, faz nascer algo de novo. Muda. Mas, como e quando?
Responder a isto é decisivo. Ou melhor, perceber isto é decisivo. Porque há apenas uma estrada para responder a uma pergunta como esta sem se dispersar em discursos genéricos e abstratos: a experiência. Dar-se conta, flagrar os momentos em que percebemos que precisamos da misericórdia para viver. E não só em circunstâncias extraordinárias, mas no cotidiano, na vida normal de todos os dias: a casa, o trabalho, o estudo, os afetos... Ou a novidade emerge ali, onde estamos, ou não existe.

Em uma destas férias, foram relatados uma série de fatos “cotidianos”: a irritação com um amigo que se torna “ocasião para entender mais a mim mesmo”, a crise de um matrimônio no qual se vislumbra “a possibilidade de que Deus me peça tudo”, uma dificuldade no trabalho que muda a perspectiva da pessoa, por causa da qual “provavelmente não deixarei dinheiro para minhas filhas, mas deixo o que conta na vida”, e outros fatos similares. Diante destas colocações, padre Julián Carrón, o responsável de CL, observava: “A diferença que um Outro introduz, como ajuda, é olhar para a realidade de modo verdadeiro, até o fundo. Não é que eu a olho como quero e, depois, alguém tem misericórdia de mim simplesmente porque me ajuda a vivê-la. O cristianismo introduz um olhar diferente”. E mais: “Não se trata de continuar vendo a realidade como todos e, depois, suportá-la, mas trata-se de uma mudança de juízo: é isto que Cristo introduziu”. É assim que a misericórdia age.

É o “coração novo, recriado” do qual fala o Papa. Não um “suplemento de bondade”, ou uma capacidade maior de suportar: um olhar diferente, uma mudança de juízo. O que faz com que comecemos a vislumbrar no relacionamento com o outro (qualquer outro: o colega de trabalho, o amigo e o desconhecido) o aspecto mais verdadeiro e, também, muitas vezes esquecido: este relacionamento é útil para mim, para me ajudar a entender a mim mesmo, para fazer a minha humanidade crescer. “Tu és um bem para mim”, é o título do próximo Meeting de Rímini, que ocorre no final de agosto e poderemos acompanhar via internet. Mas também podemos vê-lo em muitas histórias contadas neste exemplar, começando pelas páginas dedicadas a Madre Teresa de Calcutá.
Nós as propomos como ajuda para revermos os últimos meses que se passaram e buscarmos os sinais desse olhar diferente em nós, se e quando nos aconteceu. E assim, como disse recentemente o próprio Carrón, “verificar ainda mais se o método de Deus realmente funciona”, lá onde estamos. Na vida de todos os dias.