Passos N.202, Maio 2018

A identidade da pessoa

No mês passado dedicamos algumas páginas a uma intervenção de Julián Carrón, presidente da Fraternidade de CL, à qual demos o título de “Um salto de autoconsciência”. Neste mês dedicamos o nosso destaque à nova Exortação Apostólica Gaudete et exsultate (Alegrai-vos e exultai). Notamos uma singular coincidência: ao mesmo tempo em que Julián Carrón convida a apostar tudo em um caminho humano que se comprova verdadeiro pelo crescimento do nosso eu, o Papa Francisco lança um documento “sobre a chamada à santidade no mundo atual”. Não se trata de coincidência apenas cronológica, mas de uma semelhança no modo de enfrentar os desafios do mundo de hoje.
No contexto de um predomínio do poder, retomando palavras de Dom Giussani de 1998, Carrón pergunta: “Como se faz para subsistir? Como se faz então para resistir? Como se faz para apresentar uma alternativa? A indicação de Dom Giussani é clara: O único recurso para frear a invasão do poder está nesse vértice do cosmos que é o eu”. O Papa, por sua vez, diz: “A vida cristã é uma luta permanente. No contexto atual, com os seus riscos, desafios e oportunidades, o meu objetivo é humilde: fazer ressoar mais uma vez a chamada à santidade, procurando encarná-la porque o Senhor escolheu cada um de nós ‘para ser santo e irrepreensível na sua presença, no amor’” (GE 2).
A resposta autêntica a essa chamada não é a de quem se acha superior e perfeito e numa atitude de “elitismo narcisista e autoritário” pretende julgar e classificar os demais. Isso leva a duas falsificações da santidade: o gnosticismo e o pelagianismo, duas heresias dos primeiros séculos que continuam a ser de alarmante atualidade.

E Carrón lembra o que Dom Giussani nos ensinou: “A pessoa é um indivíduo que diz eu. O eu é a autoconsciência do cosmos, isto é, toda a realidade é feita para o homem. Criando o mundo, Deus tinha como objetivo a afirmação da pessoa. Então, o primeiro interesse nosso é o nosso próprio sujeito, que o eu entenda o que é e tenha consciência de si. Mas o homem não pode viver, senão na companhia de outro. Da existência do eu nasce, depois, a sociedade. O salto de consciência é, pois, entender cada vez mais que o método consiste no ‘acontecimento de Cristo, que se tornou história para você mediante um encontro’. É só seguindo esse acontecimento que podemos ser gerados como sujeitos capazes de oferecer algo de novo ao mundo, porque ninguém gera, se não é gerado”.
Não há identidade do eu senão no seio da Igreja, na qual se perpetua o acontecimento de Cristo. Por isso o Santo é o homem verdadeiro, aquele que não pode viver mais sem a presença d’Aquele que faz vibrar tanto o próprio eu, a própria humanidade. A exaltação do valor da pessoa que Carrón e Dom Giussani nos colocam de novo na frente num momento onde isso é colocado em perigo é a exaltação do valor do vínculo, porque não existe vibração do eu sem o reconhecimento real, autêntico de um tu, de alguém fora de mim que se torna história. Essa é a história que fizeram os santos.
Papa Francisco expressa isso na Exortação com estas palavras: “Não tenhas medo da santidade. Não te tirará forças, nem vida nem alegria. Muito pelo contrário, porque chegarás a ser o que o Pai pensou quando te criou e serás fiel ao teu próprio ser. Depender d’Ele liberta-nos das escravidões e leva-nos a reconhecer a nossa dignidade. Cada cristão, quanto mais se santifica, tanto mais fecundo se torna para o mundo. Não tenhas medo de apontar para mais alto, de te deixares amar e libertar por Deus. Não tenhas medo de te deixares guiar pelo Espírito Santo. A santidade não te torna menos humano, porque é o encontro da tua fragilidade com a força da graça. O que ficou dito até agora não implica um espírito retraído, tristonho, amargo, melancólico ou um perfil sumido, sem energia. O santo é capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança. Ser cristão é ‘alegria no Espírito Santo’ (Rm 14, 17), porque, ‘do amor de caridade, segue-se necessariamente a alegria. Pois quem ama sempre se alegra na união com o amado’”.