Passos N.210, Fevereiro 2019

Pobres de espírito

Quem costuma ler a Passos tem aquele texto presente. Não só porque veio anexo à revista, mas também porque nos últimos tempos marcou o caminho do Movimento de CL de maneira muito nítida. Tratava-se de uma extraordinária palestra de Dom Giussani proferida a um grupo de jovens do Centro Péguy, reunidos em Varigotti em 1968. Palavras distantes no tempo – exatamente meio século –, mas atuais como poucas, pois capazes de traçar um caminho para enfrentar a confusão de hoje.
Pois bem, nessa palestra – que neste meio tempo foi escutada e lida em meio mundo e em muitas línguas, onde quer que Comunhão e Libertação estivesse presente – há um passo que marcou a todos, indistintamente. Porque condensa em duas palavras uma diferença sutil, mas decisiva: “Não pode mais ser nem a história, nem a doutrina, nem a tradição, nem o discurso a mover o homem de hoje. Tradição e filosofia cristã, tradição
e discurso cristão criaram e ainda criam a cristandade, não o cristianismo”. O cristianismo, insiste Dom Giussani, “é totalmente outra coisa”: é um “anúncio”, algo de “vivo” e “presente”. Difícil encontrar uma forma mais sinteticamente eficaz para indicar a irredutibilidade da fé a qualquer fator cultural, valor ético ou ímpeto naturalmente humano, por melhores e mais verdadeiros que sejam. A fé é outra coisa. Mas como é possível descobrir essa diferença, hoje? Como nasce, como vem à tona na nossa experiência?

A Passos, desta vez, fala justamente disso. Aliás, tenta mostrar, surpreendendo-o lá onde essa diferença estranha, essa presença, aflora. Que seja no seio da sociedade ocidental (nos Destaques temos testemunhos imponentes) ou nas “periferias” da África negra, entre os estudantes de uma escola de Miami ou no trabalho de um dos arquitetos mais famosos do mundo. Fazemos isso em dias que não são iguais ao resto do tempo, porque ainda estamos iluminados pelas luzes do Tempo de Natal, que acabou de passar. Ou seja, pelo ponto original, o momento em que essa diferença se debruçou sobre a história pela primeira vez, no modo mais simples: um menino. Nenhuma tradução cultural, nenhum sistema de pensamento ou de valores. O “sulco sócio-histórico” da cristandade, como o chama Dom Giussani, ainda estava todo – literalmente – por inventar, nos dois mil e poucos anos que nos trouxeram até aqui. Mesmo assim ali o cristianismo já está todo inteiro. Porque, com aquela Menino, entra no mundo algo de inédito, “uma Presença com uma proposta carregada de significado” nunca vista nem ouvida antes. O coração de tudo, no mundo, está ali. Isso pode ser visto com clareza na imagem que CL escolheu para seu Cartaz de Natal, naquele Rei Mago tão espantado com o anúncio a ponto de prostrar-se diante do Menino; a ponto de curvar-se, a si e à sua história, à sua realiza humana, perante a presença mais inerme que podemos imaginar. Aquele homem devia ser um “pobre de espírito”. Mas o voto mais verdadeiro que podemos fazer para este novo ano é que nós também o sejamos, agora, para reconhecermos essa Presença.