Passos N.220, Dezembro 2019

Um ponto irredutível

Há uma palavra que emerge cada vez mais frequente nos jornais e debates na TV. E se isso não ocorre também nas conversas entre amigos ou nas conversas de bar, é apenas porque não a percebemos como a descrição de algo que todos vivemos, sem exceção. É a palavra “niilismo”, isto é, a mais próxima de “nada”, a mais capaz de contar a experiência vivida desse “nada”. Não tem mais o significado de antigamente, ou pelo menos não só. Não fala de uma rebelião violenta, do desejo de destruir uma realidade da qual não gostamos (mesmo se houver muita raiva por aí, nas mídias sociais, como em muitas praças do mundo...). Pelo contrário, indica algo mais sutil, que no final também está na raiz da violência. É a perda de atratividade da realidade, a perda do sentido de viver, e, portanto, de gosto, porque as duas coisas estão ligadas. O niilismo é a falta de um objetivo capaz de nos atrair, mobilizar nossa energia afetiva, nos conquistar até o fundo. “Não há ideal ao qual possamos nos sacrificar, porque nós conhecemos a mentira de todos, nós que não sabemos o que é a verdade”, escrevia André Malraux já no século passado. É uma síntese perfeita de hoje.

No entanto, se existe uma vantagem neste mal-estar alastrado, é exatamente esta: agora está claro, evidente, que nenhuma ideia é capaz de nos tirar disso. Nenhuma teoria. Apenas a experiência, algo que acontece conosco (como falávamos na edição passada). É só aí que podemos procurar saídas. E se olharmos para a experiência, percebemos duas coisas.
A primeira é que mesmo o coração mais apagado – até o niilista mais ferrenho – conserva dentro de si um ponto irredutível: deseja a felicidade. É inevitável, quase contra a nossa vontade; temos uma necessidade – ou melhor: somos uma necessidade – de realização, mesmo quando tudo parece dizer o contrário. E essa irredutibilidade se manifesta de muitas maneiras, pode vir à tona pelas vias mais impensáveis, reabrindo o jogo.
Mas sempre a experiência, se formos leais, nos oferece também um segundo dado: esse coração que não desiste está pronto para se acender assim que encontra algo capaz de despertá-lo. Não é uma ideia, mas uma presença, um fato, um rosto que vive e oferece uma proposta à altura da nossa necessidade. E por isso (como se disse no texto da Jornada de Outubro, sempre na última Passos) se torna uma autoridade, no sentido literal do termo: “Faz crescer”, faz nossa humanidade florescer novamente. Resgata-a do vazio.

Nestas páginas, encontram-se experiências que mostram exatamente esta dinâmica. Comuns, como a vida; ou dramáticas, como tantos aspectos da vida. Mas são histórias de pessoas relançadas por um encontro cheio de autoridade, por uma proposta inesperada de significado e gosto. Em suma, a partir da ocorrência de uma imprevisível paternidade.
No fundo, é o que aconteceu com os pastores representados na Adoração de Caravaggio, proposta como Cartaz de Natal por CL. Olhavam para a pessoa menos poderosa do mundo, o último que chegou, literalmente: um bebê recém-nascido numa manjedoura. Mas, na simplicidade de coração deles, intuíam que aquele Filho, na verdade, tornava visível o Pai, o Mistério que os estava gerando naquele tempo. Que nos gera agora. Feliz Natal!