Passos N. 230, Novembro 2020

A brecha e a barragem

Em cinco palavras Friedrich Nietzsche descreveu o hoje. E o fez há cento e cinquenta anos, quando certas evidências ainda resistiam e a incerteza não chegava à raiz de tudo. No entanto, na frase do filósofo alemão está contido o drama de agora: “Não há fatos, apenas interpretações”. Profecia perfeita de uma época em que oscilamos entre mil e uma interpretações, “sem sabermos distinguir qual delas acolhe lealmente os fatos”, como ressaltou Julián Carrón no Dia de Início de Ano (o “pontapé inicial” do trabalho proposto ao movimento de CL para o novo ano social europeu – por isso o nome – e seguido no mundo inteiro). Não há nada que tenha a força de afastar a neblina que deixa tudo confuso e incerto: “Nenhum fato nos ‘toma’ a ponto de nos fazer sair da equivalência das interpretações. Tudo parece igual”, disse Carrón. Acrescentando uma pergunta decisiva, porque não é retórica: “Há algo capaz de desafiar a avalanche indistinta de interpretações, pela qual somos soterrados nesta sociedade da ‘informação’?”.

A questão, no fundo, está toda aqui. Nos fatos, e em como olhamos para eles. Melhor: naquilo que nos permite vê-los e dar-nos conta do alcance deles. Afinal, fatos que nos abalam e abrem espaço na neblina há aos montes, alguns presentes também nestas páginas. Nem sempre espetaculares ou clamorosos: no mais das vezes são pequenos (“o Senhor também age à base de sopros”, lembrava Dom Giussani). Mas significativos – capazes literalmente de indicar um sentido e escancarar perspectivas. É só olhá-los. E é nesse “é só” que apostamos tudo, pois revela nossa disponibilidade a nos deixarmos conquistar.

No Dia de Início de Ano fomos novamente apresentados a um percurso poderosíssimo, do qual já falamos na edição passada: o de Mikel Azurmendi, o intelectual basco que, marcado pelo encontro com algumas pessoas de CL, se colou àquela “tribo tão especial” para estudá-la a fundo e entender-lhe a natureza. Admirado por aquele jeito de viver, passou a ver. Até descobrir a origem daquela diversidade que o fascinava: Cristo. Carrón quis “indicá-lo a todos” por tratar-se de “uma documentação de como, nestes tempos em que o niilismo avança, uma pessoa possa dar-se conta – quando acontece – de uma diversidade de experiência, daquilo que não é niilismo, e possa admirar-se ao derrotá-lo simplesmente seguindo a primeira evidência, por mais sutil que seja, dessa diversidade. Bastou essa brecha para romper a barragem”.
Pois bem, nesta edição retomamos o mesmo fio, buscando vestígios dele na vida de cada um de nós. Fatos, imprevistos. Um coração disponível a acolhê-los. E um caminho de conhecimento que se abre e “alarga o olhar”, exatamente como pede o Papa na última encíclica, Fratelli tutti (sobre a qual encontrarão um percurso de leitura). É isto o que nos tira da neblina, quando acontece. E o bonito é que acontece.