Passos N. 235, Maio 2021

Assuntos humanos

Não queremos apontar um microscópio para a família e suas dinâmicas, mas abrir uma janela para o grande horizonte que lhe dá o respiro. A família, frágil e insubstituível. A tentativa que Hannah Arendt denunciou de “proteger os assuntos humanos de sua própria fragilidade” hoje está fora de cogitação, pois as longas ondas da pandemia os lançou por terra. Nestes meses, as quatro paredes de casa abrigaram de tudo: o trabalho, o estudo, uma convivência fora do comum. Abraçamos as dores e acolhemos as alegrias; os vínculos ficaram descobertos, consumidos na pretensão mútua ou renascidos. As imagens mais leves são as que retratam pais e mães em ligações de trabalho, mexendo no forno, com um filho no colo. Já as mais pesadas nem sempre estão visíveis ou são contadas. Ficamos “totalmente expostos”, “chamados ao essencial”, como contam os testemunhos desta edição, dedicada a um lugar que, por sua natureza, é extraordinário no ordinário.

Hoje em dia, ver uma família feliz é um evento. Afinal, atualmente, mais do que nunca, sobressai a crua alternativa de sempre: “Da natureza brota o terror da morte; da graça brota a audácia”, segundo a expressão de Santo Tomás, ecoada seiscentos anos depois por Charles Péguy: “Para esperar, é preciso ser muito feliz, é preciso ter obtido, recebido uma grande graça”.
Uma graça que não tem nada de mágico. Quando se fala de família, ou é uma graça concretíssima, despudorada e paciente, ou não é. As histórias que vocês vão encontrar aqui não são de famílias heroicas, mas de famílias que sozinhas não existiriam: são geradas por aquele horizonte de um amor maior experimentado na comunidade cristã. Conseguimos observar os efeitos: alguém que tem a confiança necessária para decidir “formar família” – casar-se, pôr filhos no mundo, até acolher filhos de outros –, que tem a audácia não só para começar, mas principalmente para continuar, levar em frente, até quando perde o dinheiro e a saúde, ou quando a rotina fica sufocante. Histórias de perdão diário, e até a experiência de um jovem casal que não consegue ter filhos, mas está aberto à vida, ajudam-nos a conhecer o coração até mesmo das famílias mais numerosas: “O encontro de um homem e de uma mulher não pode ser definido pela finalidade exclusiva de terem filhos”, disse Giussani, “mas antes pelo fato de serem companhia ao Destino”.

É só nesta perspectiva ardente, da pessoa em caminho até sua realização, que a família deve ser vista incansavelmente: a gente procura uma companhia além da própria casa para poder amar; as feridas não cicatrizam, mas abrem para uma vida mais autêntica, e tudo isso desafia os pensamentos e os medos porque existe, é possível.
“É razoável arriscar? Depende do que você encontrou”, disse Julián Carrón nos Exercícios Espirituais da Fraternidade de CL, que aconteceram recentemente, transmitindo uma plenitude de vida que aumenta quando atravessa tudo: não precisamos nos esconder nem nos censurar, pois enfrentando o que acontece podemos verificar a utilidade da fé para a vida, graças à necessidade que temos de ir além das aparências e descobrir, tocando, “se há o nada ou o ser”.