Passos N. 237, Julho 2021

Irmãos porque filhos

“O milagre que revoluciona o mundo é que pessoas desconhecidas entre si se tratem como irmãos.” Essa frase, a que faz alusão o título da capa, foi pronunciada por Dom Luigi Giussani num encontro em 1983. Ele dizia que não há nada mais impossível e desejável do que esse relacionamento novo com o outro. É a essência da “rota humana” que o Papa nos indica com a Fratelli tutti, sua encíclica publicada em outubro do ano passado, e que aos poucos vamos tomando sempre mais conhecimento. Mas como é possível, quando os problemas são tão complexos que sufocam a vida pessoal e coletiva? A pandemia tirou o véu das inconsistências que já existiam. E, enquanto a política desmorona, amplia-se a geografia do drama de milhões de homens, tão imenso que nos parece irreal. Síria, Venezuela, Guatemala. A lista é extensa.

A encíclica suscita uma inquietude perante os contrastes, até os mais cotidianos, e levanta muitos questionamentos, com um de fundo: é possível que a necessidade de “salvar-nos juntos” não seja apenas uma mera intenção, um cenário utópico ou um esforço, fadado a acabar no ceticismo? Num mundo dividido, onde se perdeu “a atenção penetrante ao coração da vida e não se reconhece o que é essencial para dar um sentido à existência”, escreve Francisco, não pode haver razões sólidas e estáveis para nos chamarmos à fraternidade “sem uma abertura ao Pai de todos. Só com esta consciência de filhos que não são órfãos é que podemos viver em paz entre nós. Porque a razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade”. A encíclica é um texto tão rico quanto o olhar que oferece ao mundo. Antes de qualquer consideração, pede-nos que participemos da grande provocação que a Igreja lança a cada um de nós.

Com os “Destaques” deste número, queremos mostrar que é possível encontrar-se e reconhecer-se irmãos, e o fazemos principalmente por meio de testemunhos do encontro vivo com o fato cristão. Experimentar que somos “filhos” de Deus, através de uma companhia concreta, escancara-nos para uma atitude diferente: identificamos, em situações e países diversos, essa gratidão que se enraíza no coração humano e o transforma, transformando junto as relações. Porque “a irmandade é um fato universal, mas não abstrato”, como vocês vão ler no diálogo com o islamólogo Adrien Candiard: “A melhor encarnação da encíclica ocorrerá em pequenos fatos entre as pessoas”. “Este é o milagre”, afirmou Giussani naquela reunião: “E é para isso que nós fomos chamados”.