Passos N. 246, Maio 2022

Coração inatacável

O conflito na Ucrânia já dura mais de dois meses, e suscita uma consternação que carrega todo o peso da história e do amanhã, com a ruptura da ordem global e a trágica ilusão de recriá-la às custas do indivíduo e de sua concretude absoluta. O que vem acontecendo leva todos a pensar no destino. Junto com a dor e o medo, explode o que define o homem mais que seu DNA: a exigência indelével de justiça, de verdade, de sentido para esta vida.

É um desejo inextirpável que o poder não consegue aniquilar, nem quando parece não haver saída. Todos aqueles cadáveres, os feridos, os refugiados, as fileiras sinistras de tanques na neve, as incursões que derrubam edifícios inteiros, o som das sirenes por toda parte, o frio, a fome nos bunkers, pessoas morrendo durante a fuga, as malas e a vida que ainda cabe dentro delas, o ódio que devora as relações, o rosto juvenil dos soldados, um jovem pai que corre em vão para o hospital com seu filho pequeno entre os braços, os médicos que operam com a lanterna do celular, o escuro, o silêncio, todas aquelas despedidas sem palavras nas plataformas das estações.

“Que é o homem, para dele assim vos lembrardes e o tratardes com tanto carinho?”, diz o Salmo 8. Esse homem parece um nada insignificante, que pode ser esmagado e arrancado do mundo. E, no entanto, pertence a outra ordem, tão superior que, como disse Giussani em Dar a vida pela obra de Outro, a realidade inteira só ganha sentido num “ponto incompreensível no qual tudo se reflete: o eu”. É um farol que nos permite julgar a história coletiva e pessoal, é um fator que não podemos manipular; e é um farol porque é livre quando tem consciência de si, mesmo quando é oprimido.

Procuramos essa luz nos testemunhos desta edição, em quem enfrenta o presente tentando dialogar e acolher os desconhecidos, como soube ver o escritor Vassili Grossman: nenhuma violência pode eliminar o coração inatacável da pessoa, pois é relação com Deus. Abrir espaço para este mistério introduz uma transformação até nos momentos mais negros da humanidade.

Dar-se conta da impossibilidade absoluta de fazer justiça, da necessidade total de outro que nos liberte, revela como “presunção antropocêntrica” – assim a chama Giussani – a pretensão “pela qual o homem seria capaz de salvar-se por si mesmo” acreditando poder mudar o mundo abrindo mão da única coisa capaz de mudar a vida: a presença de Deus que se faz visível em homens que amam, numa lógica de vida e de pensamento diferente, só porque têm nos olhos o encontro com Cristo.

Um homem que, na imensidão do Império Romano, silenciosamente, venceu a morte, não se afastou da relação com o Pai nem sequer sobre a Cruz. “A sua ressurreição não é algo do passado”, como dizem as palavras do Papa no Cartaz de Páscoa preparado pelo Movimento: “Contém uma força de vida que penetrou o mundo”.