Passos N. 247, Junho 2022

Subsolo

Numa entrevista recente, a Prêmio Nobel bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, refletindo sobre a guerra, pergunta-se o que é que nos trouxe até aqui; o que teria acontecido com a grande “alma russa”, com a grandiosa influência da cultura de uma nação espiritual, para vermos hoje jovens soldados saqueando os cadáveres. É um retrato, numa só imagem, de um decaimento brutal. E se pergunta: “Onde foi parar aquela alma?”. Depois, fulgurante: “Por que perdemos as pessoas em tão pouco tempo?”. Para ela, a transformação histórica em que “acreditamos tanto nos anos noventa” não perdurou, por falta de fundamento. Porque “quem constrói a liberdade é um homem livre”.

A provocação é ainda mais ampla do que os massacres do conflito, tem a ver com o pivô de tudo – o homem – e com a possibilidade de uma vida nova que não se extinga, que dure. Qual libertação resiste à passagem do tempo e da história?

Vivemos na pretensão de já saber o que é “necessário” para nós e para o mundo, como afirmou recentemente o padre Mauro-Giuseppe Lepori, Abade Geral dos Cistercienses, nos Exercícios Espirituais da Fraternidade de CL. “Tu andas preocupada e agitada por muitas coisas. No entanto, uma só coisa é necessária”: as palavras com que Jesus falou a Marta foram o núcleo dos Exercícios, nos quais Lepori adentrou na relação entre Cristo e aquela mulher. Encontrá-lo, aquela noite, expunha-a “em sua necessidade profunda, essencial, total”.

E graças a essa consciência de sua necessidade, ela acolheu a “resposta ao desejo fundamental do coração e da vida”. Não um convite a fazer ou a ser algo, mas uma presença pessoal, tão cotidiana como aquele jantar e tão essencial como uma “energia atômica”, disse Lepori, capaz de “invadir todas as covas subterrâneas do subsolo da humanidade de Marta”.

E ela o teria perdido, a Ele e a si mesma, se não tivesse decidido fazer um caminho, verificar a unicidade daquele vínculo em todos os aspectos da existência. “É a presença d’Aquele que preenche o coração o que muda a relação com tudo”, até com a morte.

Nesta edição, reunimos algumas contribuições sobre o tema dos Exercícios, entre as quais a história de Laly, uma mãe de Carcóvia e a carta de um rapaz de Moscou, que vivem o maravilhamento porque a vida da vida não são as ondas da história, mas um olhar de onde renascem.
Como é que essa experiência pode permanecer, para responder à questão levantada por Svetlana Aleksiévitch?