Passos N. 259/260, julho-agosto 2023

A marca de todo homem

Poucas sílabas: “E eu, quem sou?”. Este curto e imenso verso do poeta italiano Leopardi dá voz a uma das questões fundamentais em que Dom Giussani identifica o “coração” do homem. A última matéria estrutural de que somos feitos. Não se trata de uma emoção, de um sentimento, mas de “um fato”, diz ele, o mais “imponente e inextirpável” de toda a história humana: ele lhe deu um nome e dedicou-lhe um percurso existencial – o senso religioso – que é a chave da sua proposta. Giussani estava profundamente convencido de que precisamos usar o coração, “tomar nas mãos as nossas evidências e evidências originais” – um trabalho “impopular”, escreve, “especialmente diante de nós mesmos” – para sermos livres.

E também para estar abertos a reconhecer a resposta, especialmente para aquelas perguntas que “estão escondidas, enterradas, talvez quase moribundas, mas que existem”, como disse Jorge Mario Bergoglio ao apresentar o livro O senso religioso em 1998, em Buenos Aires. Sua intervenção, que você encontra no início desta edição, serve como introdução para a retomada do estudo deste texto nos encontros de Escola da Comunidade, a proposta de caminho educativo do Movimento Comunhão e Libertação.

“Hoje a questão que mais devemos enfrentar não é tanto o problema de Deus – a existência de Deus, o conhecimento de Deus –, mas o problema do homem, o conhecimento do homem e o encontrar no próprio homem a marca que Deus lhe deixou para que possa encontrar-se com Ele”. Assim continua Bergoglio, enfatizando a atualidade e a urgência de uma reconquista do humano, hoje ainda mais necessária diante de “uma tranquilidade oferecida a baixo custo por uma cultura de supermercado”.

Para essa reconquista, existe um aliado inabalável: a realidade. É no impacto com a realidade que o “coração” desperta. E diante de uma emergência, como as grandes enchentes por exemplo, vem à tona a necessidade de uma educação, de uma companhia vivente, para não perder esta abertura do olhar que vivemos em certos momentos, quando realmente vemos, quando se desperta a profundidade da nossa necessidade.

Assim, toda a potência de humanidade que emerge de qualquer lama, repleta de dor, piedade, bondade, é o começo de um caminho para conhecer quem somos, o que resta em pé, o que é a vida e aquela “marca” indelével sob toneladas de entulho. “Quem grita em mim? Que voz grita em mim essa exigência de vida verdadeira?”, disse o teólogo espanhol Javier Prades, no diálogo sobre O senso religioso em Milão. Qual caminho permite viver rompendo a aparência das coisas, seja em uma situação extrema como em um dia comum, no metrô? A pergunta está aberta, a resposta é para ser surpreendida.