Passos N.36, Fevereiro 2003

Um povo em meio aos povos do mundo

Recentemente, o diário Le Monde, que se destaca como a voz leiga da França, reconheceu, como conclusão de uma pesquisa, que a festa de Natal e de fim de ano são as mais amplamente compartilhadas pelo povo francês, e, além do seu específico significado, são um fator aparente de unidade para um povo já bastante miscigenado, tanto em termos de raça quanto de cultura, e atravessado por muitas tensões.
Há algum tempo, na Itália, explorando todas as ocasiões que se apresentam (inclusive a Copa do Mundo de Futebol), vem acontecendo uma espécie de campanha de revalorização da bandeira e do hino nacional, destinada a favorecê-los como sinais de identidade popular e de unidade, superando evidentemente o que eles de fato representam na prática. E, além disso, recrudescem as discussões políticas sobre a devolution (desenvolução) e a regionalização.
Ampliando o olhar, muitos dos terríveis acontecimentos que fizeram e estão fazendo tremer o mundo têm a característica de guerras entre povos ou achaques de um contra o outro (em sentido étnico ou religioso); e na guerra se vê um motivo de afirmação da identidade de um povo.
Há alguns anos, também, vem acontecendo o debate sobre a Carta européia, que deveria, de algum modo, expressar as características de um povo que tem moeda única, mas fala cerca de quarenta línguas diferentes.
Enfim, justamente nos momentos de dificuldade econômica e de restrições, não poucos políticos apelam para uma comum consciência de povo, para se enfrentar com espírito solidário certas imposições e sacrifícios.
Portanto, nunca como hoje – apesar dos cerca de 500 anos de insistência cultural, religiosa e política sobre a suposta autonomia do indivíduo – torna-se central o problema do real significado de povo. Mas para a maioria a palavra “povo” soa vazia, uma figura de retórica, ou algo parecido com “torcida organizada”.

A História já testemunhou a alternância de riqueza e ruína de grandes povos, muito diferentes entre si. De alguns, restam traços luxuosos; de outros, frágeis lembranças. O que os unia, fosse o gênio político de um grande comandante, as especiais condições do lugar onde vivia ou a adoração dos mesmos deuses, não impediu a perda da própria identidade e, enfim, da própria história. Desapareceram. A partir de um certo ponto, não produziram mais nada de original. E assim será ao longo da história do homem.
Entre todos os povos do mundo há um especial: o povo cristão. É um povo “sui generis” (Paulo VI), isto é, feito ao seu modo. De fato, a sua origem não é um evento passado, mas um fato que o acompanha sempre. “Estarei convosco todos os dias até o fim do mundo” é a promessa que Jesus fez aos seus, àquele mirrado grupinho, um tanto desanimado, que, vivendo o dia-a-dia com Ele, estava na aurora do povo cristão e que, nos inícios da era cristã, cabia inteiro sob o pórtico de Salomão, tão insignificante era como fenômeno social.

Não foi outra coisa além do amoroso reconhecimento de Cristo presente a conservar o povo cristão. E aí está a diferença com o povo judeu, do qual o povo cristão saiu com força original. A Aliança com Deus, a maior aventura que pode acontecer para um homem e um povo que nasce, tomou a fisionomia de uma moça com o seu filho no colo. Essa aliança se realizou de modo inesperado, num acontecimento que enche o coração de quem o encontra sem impor condições prévias, do tipo lei ou costume. “Eu vos chamei de amigos”, disse Deus num ponto da história, fixando a amizade como o novo tipo de ligação entre os membros do seu povo. Um vínculo de tipo novo: não fixado no sangue ou no consenso político ou em leis comuns. Só na amizade se pode reconhecer o povo cristão. Nenhuma bandeira, nenhum hino, nenhuma estratégia de acordo podem manter vivo o povo que daí nasceu e que continua a crescer no decorrer da História. Ele nasce e renasce toda vez que, na vida de um homem e de uma mulher, acontece o mesmo maravilhamento provado por Maria, aquilo que Ela experimentou diante do Acontecimento que tocou sua carne. E, então, todo trabalho doméstico e todo testemunho, qualquer empreendimento social ou mesmo uma iniciativa desconhecida, vividos com essa consciência, tornam-se fonte de esperança para todos. E cada palavra de dor e de amor, de temor e de louvor, pode dissolver-se num canto comum, simples e belo sinal da vida de um povo, única arma na desarmada batalha contra quem ameaça a vida de um povo.