Passos N.38, Abril 2003

O início da paz

No momento em que se redige este editorial, uma guerra de resultados e conseqüências imprevisíveis continua no Iraque. A coalizão comandada pelos Estados Unidos decidiu responder dessa forma trágica ao desrespeito, por parte do regime de Saddam, das disposições da ONU acerca do desarmamento.
É uma opção grave, que a Igreja esconjurou até o fim.
O Papa invocou a “paz” com toda a sua autoridade. A mesma paz foi exaltada de muitas maneiras, algumas sinceras, outras a serviço de polêmicas políticas, quando não de rixas de baixo nível.
Parece ser paz, realmente, o nome daquilo que os homens desejam. É a paz, também, que Deus promete no Antigo Testamento a seu povo escolhido. Mas é justamente em nome da paz que os Estados Unidos fazem a guerra. E é ainda em nome da paz que os pacifistas contestam os Estados Unidos. Há quem tenha saudado esse novo povo pacifista como o advento de uma espécie de superpotência mundial - e isso até mesmo no seio do mundo católico.

A confusão é grande. E se dá em vários níveis. Quem conhece um pouco as questões geopolíticas e econômicas consegue ver razões nos argumentos de ambos os lados, mas também muitas conclusões forçadas, ou até mentiras colossais.
Há uma coisa, porém, que até mesmo quem não é especialista em questões geopolíticas pode notar neste momento difícil. E é o sabor ambíguo de uma paz que, na opinião dos dois lados, viria a se realizar como “arrumação das coisas”: para os Estados Unidos, a paz é uma coisa a ser feita; para alguns líderes pacifistas, a questão é ser deixados em paz. Uma coisa ambos os lados têm em comum: a idéia de que o homem, com um pouco de esforço, consegue resolver as coisas, ajeitar a vida, realizar seu desejo de paz. A diferença está no método: uns usam a guerra para alcançar seu objetivo, outros, não.
No entanto, não existe apenas a guerra das bombas e a das invasões. Há a guerra mais sutil (que todos nós fazemos), para impor nossa posição, por uma praça maior na qual manifestar o que somos, por um espaço a mais nos jornais. Há uma possibilidade de violência que se aninha também nas relações cotidianas, até as mais “banais”. A ausência ou o fim de um conflito no Iraque traria a paz de volta à nossa vida e à de nosso povo?

Há um escândalo que acerta em cheio a arrogância daqueles que usam a violência para consertar o mundo e daqueles que pensam que com um punhado de bons sentimentos o mundo possa entrar nos eixos. É o escândalo do Deus que, fazendo-se homem, disse: “Sem mim nada podeis fazer”. Nem aquilo que mais desejamos. É um escândalo da verdade, ou seja, é o choque de se dar conta de uma coisa verdadeira na experiência. Mais verdadeira do que os muitos discursos ouvidos por toda parte. Mais verdadeira, sobretudo, porque realiza o homem como liberdade e não como mecanismo. De fato, a paz vem da adesão livre a uma Presença maior que as capacidades do homem, e mais forte que o mal. Do contrário, até o justo desejo de paz - se não for educado a ter uma razão adequada - pode se transformar na tentativa de impor a todos a própria visão do mundo (tachando quem não a aceita como inimigo da paz).
Nestes meses de tremor e de paixões, poucos lembraram a verdade que se enraíza na experiência. A maioria contribuiu com conversa fiada e slogans que transmitem e às vezes fomentam hostilidade. Entre os poucos, o Papa não se alinhou em favor ou contra ninguém, mas afirmou com palavras fortes que “só Cristo pode renovar os corações e dar novamente esperança aos povos”: por isso convidou a todos a reconhecerem na própria vida que a paz é um dom de Deus, e a assumirem suas responsabilidades como homens livres. E por isso recebeu, entre outras, a adesão ecumênica de protestantes e ortodoxos. Oferecendo ao mundo um verdadeiro exemplo de paz.