Passos N.44, Outubro 2003

O verdadeiro revolucionário da nossa época

Domina todas as coisas, arrancando a existência do nada, e não somente no princípio, mas continuamente.

João Paulo II escreveu esses versos em Tritico romano, o seu mais recente livro de “meditações”. E nós os dedicamos a ele, por ocasião do 25º aniversário de seu pontificado. O Mistério “domina todas as coisas, arrancando a existência do nada”.
Na história do mundo e naquela, breve e dramática, de cada homem, a novidade só é dada pela ação do Mistério, que “continuamente” gera a vida. Na Carta à Fraternidade do último mês de junho, padre Giussani escreveu que “o eu deve ser continuamente exaltado por um renascimento do real, por uma re-criação que, na figura de Maria, se comove diante do Infinito”. Gerar não é só dar vida a homens e plantas, aos animais e ao cosmo todo: o Mistério tira a existência do nada, irrompendo nela discretamente, “quase como um sussurro”, dizia Clemente Rebora; fazendo-lhe companhia; comunicando-lhe o sentido de uma bondade infinita, maior do que a morte.

Nestes anos, num mundo convulsionado e violento, frente a homens confusos e em meio às profundas insídias do desespero, o Papa foi o grande evento nessa diversidade. Sua presença não coincide com o discurso. Sua proposta não se resume a uma sábia exortação, a um exercício dialético ou a uma estratégia. Não; ele, no vigor físico das primeiras viagens e, agora, na força da sua paciência e da oblação, foi e é, antes de tudo, uma presença. Sinal daquela Presença que, tal como trouxe de novo à vida o filho da viúva de Naim, traz a vida arrebatando-a do nada, todos os dias.

A figura de João Paulo II impressionou, durante todos esses anos, pelo testemunho de positiva afirmação do valor infinito da existência.
A sua humanidade e até o seu temperamento foram tão livre e profundamente tomados pela humanidade de Cristo que se tornaram uma atração poderosa e clara. Por esse motivo, a sua presença é vista com simpatia por milhões de pessoas. Uma simpatia que torna simples o coração de todos, mesmo em meio às muitas dificuldades da vida.

A cultura em que vivemos, como recordou em Passos, há alguns meses, o filósofo francês Finkielkraut, mete o homem contemporâneo numa situação terrível. De fato, somos cercados por uma ideologia que nega o valor do presente e a vida como “dom”. Nas propostas da mentalidade dominante, todas as possibilidades de realização parecem residir num fugidio futuro. E, assim, o presente se torna apenas o lugar do ressentimento, do qual é preciso fugir para uma existência que pode ser definida como o reino do faz-de-conta e da máscara. Infelizmente, com certa freqüência a própria fé cristã é entendida e proposta como variante de alguma ideologia ou como uma vaga consolação.
Nessa situação, João Paulo II não se meteu a fazer análises ou criar projetos. Está vivendo e comunicando a própria comoção diante do evento cristão, a própria familiaridade com Maria, primeira porta através da qual o Mistério, que domina todas as coisas, se fez carne. E continua, assim, a sustentar a esperança dos homens.
Em meio a tantos intelectuais que se definem de vanguarda e a tantos profetas – inclusive violentos – de um mundo melhor, ele é o verdadeiro revolucionário da nossa época.