Passos N.46, Dezembro 2003

Natal, “a bênção a todas as formas da criação”

Um conhecido crítico literário e intelectual de primeira linha do mais secular dos jornais italianos, Pietro Citati, diz que sente uma nova e forte atração pelo catolicismo. Ele acabou de publicar um livro sobre as grandes religiões e diz encontrar em expressões populares católicas, como o presépio, uma coisa única: “A bênção a todas as formas da criação”. Esse sentido de positividade em relação a todas as coisas é, de fato, o cerne do acontecimento cristão. Uma positividade que penetra na história com o Natal. Citati não é um pobre pastor, num uma senhora devota. É um intelectual culto. No entanto, sua visão do fato descrito pelo presépio é a mesma dos primeiros homens que acorreram a Belém.

Uma coisa única aconteceu,algo que muda o sentido do mundo. Por causa desse nascimento, a vida deixa de ser essa sucessão de eventos que levam o “duro afadigar-se” - como dizia o desesperançado Leopardi - a um “abismo pavoroso, imenso, em que se precipita e onde tudo se apaga” (Canto noturno de um pastor errante da Ásia). O horizonte da vida, com os seus amores e suas dores, não é mais dominado pelo nada, em que parecem precipitar-se todos os destinos. Na margem desse mar desconhecido, no Mistério poderoso e tremendo que pesa sobre todos os eventos, enxergamos um ponto, um pequeno barco. Uma coisa única aconteceu.
Como ficou testemunhado pelo reencontro de um povo, abalado pelos acontecimentos do atentado em Nassíria, no Iraque, em torno dos sinais e dos gestos de fé, há em muitos - ainda que confusamente - a percepção de que sem a esperança cristã a vida se esvazia de sentido. Não é em si mesmo, nem sozinho, que o homem encontrará força e razão para sustentar a vida; frágil e contraditória, ela não tem como escapar do domínio do nada. Há necessidade sempre, todos os dias, de algo que nos liberte do mal, do primeiro mal que é considerar a vida uma corrida difícil e inútil. Nenhuma construção civil, nenhum esforço de melhora pode se sustentar baseado numa consciência dominada pela inutilidade do existir. O Natal é, por isso, o evento que abre a possibilidade de uma vida civil marcada pela construtividade e pela acolhida.

O menino que nasce de Maria é o ponto em que a vida dos homens impõe uma derrota ao nada. É um ponto humano, uma presença, que hoje revive no mistério da Igreja e no testemunho de muitas pessoas. Não é uma conquista filosófica nem uma meta ética para pessoas que se sentem adequadas. É de novo Citati quem nos leva à percepção disso, com lúcida inteligência: “A redução da religião a ética é uma verdadeira catástrofe. Na origem do cristianismo encontramos ladrões, há um crime, coisa bem distante da ética. O cristianismo é um acontecimento religioso, mas isso, hoje, quase ninguém parece perceber”.
O cristianismo é uma jovem mulher, “por cujo calor” nasceu um menino: que algo tão simples carregue o significado do mundo é um fato que somente os simples de coração podem reconhecer, aqueles que, de fato, têm fome e sede de vida.