Passos N.48, Março 2004

Maria, a primeira contemporânea de Jesus

Falando em Mineápolis (EUA) durante a apresentação do livro do padre Giussani Por que a Igreja, o novo arcebispo de Boston, dom Sean O’Malley, citou a revista inglesa The Economist, que dedicou uma capa a Maria e à devoção de que ela é objeto entre judeus, cristãos e muçulmanos.
Toda a mídia está com os holofotes voltados para a estréia de Paixão, o filme de Mel Gibson que relata os últimos instantes da paixão de Cristo. No jornal italiano La Repubblica, o escritor Pietro Citati dedicou o grande artigo da página de Cultura à crucificação de Jesus narrada pelos Evangelhos. Carlo Ossola, membro do Collège de France, desenvolveu a última palestra (de uma série que reuniu em Paris os maiores estudiosos de poesia) em torno da representação da Virgem Maria no Hino de Dante, no Paraíso.
Parece que a figura de Cristo e de Sua Mãe vivem um momento de grande popularidade. Claro, não é a primeira vez que a cultura, os meios de comunicação e, de modo especial, o cinema voltam-se para eles. Mas nos últimos anos parece que o interesse pelo fenômeno religioso se contentava em pintar a fé cristã como um confuso sentimento de existência, como uma variável new age, ou, no máximo, como uma filosofia comportamental.

Mas o fato é que Maria e Jesus continuam a despertar interesse. Ainda que confusamente, se compreende que na realidade histórica de Jesus e daquela que O gerou teve início a maior revolução da história. E, portanto, não cessaram as tentativas de tornar essas figuras mais próximas, mais contemporâneas de nós e, assim, mais próximas das nossas felicidades e das nossas dores: tê-los - Jesus e Maria - bem perto da aventura do nosso cotidiano, e das angústias que podem acompanhá-lo. Tê-los aqui como uma renovação do humano, como recomeço, sempre.
A contemporaneidade de Cristo é o que qualifica a fé: o reconhecimento de uma Presença. Se não fosse assim, a fé se reduziria a um subjetivo (embora piedoso) esforço de imaginação. Isso foi bem compreendido por Kierkegaard, que escreveu em seu Diário: “O único relacionamento ético que se pode ter com a grandeza (e com Cristo) é a contemporaneidade. Reportar-se a um defunto é uma atitude estética, em que a sua vida perdeu a incidência, não julga a minha vida, me permite admirá-lo... e me deixa também à vontade para aderir a outras categorias: não me constrange a julgar, em sentido decisivo”.
A imaginação cansa, e a amizade renova. O modo como Cristo se torna contemporâneo é a Igreja, a sua vida de sacramento e de amizade.

Existencialmente, o sentido da Igrejaé captado através do encontro com uma amizade. Esse é justamente o cume da vida da Igreja. De fato, desde quando os cristãos eram um pequeno grupo que se reunia sob o Pórtico de Salomão, em Jerusalém, a amizade entre eles sempre foi motivo de escândalo ou de conversão para quem os observava com espírito malévolo ou com alma limpa. Feitos de amizade são aqueles que renovaram e renovam a face da Igreja e das suas comunidades em todo o mundo.
Trata-se de uma amizade diferente das demais, não baseada no interesse ou na “correspondência” de temperamentos. Uma amizade que não censura, que não se escandaliza. Que cuida para que em tudo - da vida pessoal ao engajamento cultural, social e político - o mais simples seja “deixar acontecer o próprio sim” (como disse em Mineápolis dom O’Malley) na presença de Deus. Como ocorreu com Maria, a primeira contemporânea de Jesus.