Passos N.52, Julho 2004

Evento cristão e idolatria

Uma parte das filosofias e até dos poderes hoje mais badalados sempre se constituíram com uma identidade polêmica em relação ao fato religioso, quase que encontrando nessa aversão a sua principal razão de ser.
Trata-se, em muitos casos, de polêmicas toscas, baseadas na ignorância, quando não na má-fé. Sob muitos aspectos, os estudos históricos cuidaram de esclarecer a questão, mostrando, por exemplo, o quanto foi criativa e rica de invenções e aquisições, em todos os campos, aquela época que os mais obstinados insistem em chamar de “obscura” Idade Média.
Mas, para esses polemistas, mais do que a história ou os fatos interessam as opiniões – como escreveu Nietzsche, “Não há fatos, mas só interpretações” – e como manipulá-las para se chegar a um consenso.

Da retomada dessas discussões, existem duas lições a tirar.
De uns tempos para cá voltou a tomar corpo uma polêmica com clara direção anti-religiosa. Em várias ocasiões e a partir de fatos diversos, filósofos, jornalistas e os assim chamados maître à penser colocaram no banco dos réus o senso religioso, acusado de ser a causa – mais ou menos direta – de todos os problemas. O atraso social, científico, e até político, estaria ligado (nos indivíduos e nos povos) à persistência de um forte espírito religioso. Numa palavra, a religiosidade seria antimoderna.

Não é uma “moda” nova. Antes de tudo, que a verdadeira oposição – como ocorre na Bíblia – não é entre religiosos e anti-religiosos, mas entre religiosos e idólatras. É surpreendente como muitos desses pensadores estão tão irados com a religião quanto dispostos a fixar para si e para os outros uma espécie de ídolo, objeto da fé e das homenagens dos devotos. Para alguns, é ainda a jacobina “deusa Razão”, ou o instrumento que calcula o que se pode medir e manobrar, e que presume dominar todos os fenômenos, censurando os que escapam ao seu controle. Tal ídolo pode, também, coincidir com muitas coisas: termina-se por crer que o valor absoluto é a política, ou a organização, ou o bem-estar, ao ponto, por exemplo, de considerar a “saúde” como ídolo ao qual se deve sacrificar tempo e dinheiro, ou a “fama” como remédio para o tédio de uma vida insignificante. Há, mesmo, os que escolhem como ídolo a afirmação da vida como mero fenômeno orgânico.
O outro elemento que se sobressai é que tais polêmicas escondem, na realidade, o seu verdadeiro objetivo, que é propriamente a Igreja, pois muitas outras expressões religiosas merecem os seus aplausos (em nome, talvez, do chamado multiculturalismo). A recente Constituição européia é um exemplo eloqüente desse anticatolicismo. Mas, negando o Mistério que dá valor infinito à pessoa, abandona-se o homem nas mãos do poder.

O evento cristão, como intuíram grandes gênios modernos, de Rimbaud a Dostoiévski, é o único capaz de colocar em xeque a tranqüilidade de todos os tipos de poder. De fato, não se trata de uma religião, de um discurso com o qual qualquer outro discurso mantém um ou vários pontos de contato, mas da presença, na história, de um Deus que propõe a sua vitória como a única possível sobre a vida e sobre a morte, como a relação possível com o destino. Topamos com essa proposta quando temos amor à verdade mais do que a nós mesmos, ou, em outras palavras, quando temos um coração simples e estamos dispostos a reconhecer a positividade de uma presença, mais do que aceitar se meter numa polêmica ácida, equivocada e vazia.