Passos N.67, Novembro 2005

A urgência da razão

Nas últimas semanas os jornais italianos trouxeram o reaquecimento de um debate que há vários meses parecia ter perdido o vigor. É a discussão sobre a fé e o seu valor “público”, ou seja, a sua relação com a capacidade de raciocinar do ser humano e a sua incidência sobre a convivência civil e os problemas daí decorrentes. Esse é um debate que sempre nos interessou. O Movimento Comunhão e Libertação foi, muitas vezes, objeto de curiosidade e também de polêmicas justamente nesse campo: visto, de um lado, com simpatia e, do outro, com desconfiança, porque afirmou e afirma – num mundo secularizado – que Deus está vivo, presente, e tem a ver com tudo o que existe. Com simpatia, por parte de católicos e de espíritos liberais que não se limitam a considerar Deus ou o cristianismo como algo ultrapassado, lembrado apenas na hora das preces ou do funeral. Com desconfiança, por parte de quem, herdeiro de uma tradição que se autoproclama iluminada, pensava ter conseguido relegar o problema de Deus para um cantinho da história, ou incluí-lo entre as patologias individuais.

Não é um debate novo, alguns fatos, porém, o recolocaram na pauta. Antes de tudo, o fato de no campo laico ter surgido, por parte de algumas personalidades eminentes, uma espécie de “dissenso” em relação às posições laicas e violentamente anti-religiosas manifestadas por ocasião de grandes debates sobre questões delicadas: por exemplo, por ocasião do referendo sobre a procriação na Itália, alguns desses laicos reconheceram, na posição católica, um maior respeito à razão e uma melhor consciência da situação cultural contemporânea.
Em segundo lugar, a entrada em cena de fenômenos ligados a uma suposta matriz religiosa (o terrorismo fundamentalista islâmico, assim como a maciça imigração) coloca questões sérias e inadiáveis a respeito da identidade que as pessoas dizem ter. E enfatizam a diferença entre cristianismo e outras respostas ao problema religioso. Tais fenômenos se juntam a outros, não menos importantes, que indicam o enfraquecimento do tecido social em que vivemos e uma perda das razões da convivência e da tendência a um ideal de bem comum.
Terceiro e mais decisivo fator de novidade, o forte apelo e o fascínio exercidos pela pessoa e pelo magistério de João Paulo II e Bento XVI, vistos como dois dos poucos interlocutores preparados para tratar dos grandes problemas da nossa época.

Nós sabemos muito bem que o cristianismo é conhecido e se comunica por meio da vida e não de debates. Assim, não temos a ilusão de que desse tipo de debate decorra um “crescimento” da fé. Aliás, por vezes o tédio e o desconforto prevalecem diante da presunçosa pequenez de certos argumentos, do tipo: “O Papa está querendo fazer as leis”. Todavia, é evidente – sobretudo em certas intervenções – que o cristianismo exerce uma forte atração sobre homens que não se protegem atrás de preconceitos ou estereótipos. E esse é o ponto: por quê? Bento XVI o disse, em duas recentes ocasiões (numa catequese de quarta-feira e numa mensagem enviada a alguns protagonistas do recente encontro de Norcia). Comentando o Salmo 134, o Papa relembrou o apelo de Deus a Israel, que havia se bandeado para a idolatria. A verdadeira alternativa não é entre fé em Deus e não-fé. A fé é um dom, uma graça. A verdadeira alternativa é entre quem – talvez dramaticamente – aceita a hipótese de que Deus existe e quem a exclui, terminando por escravizar-se aos ídolos, “obra das mãos do homem, um produto dos desejos humanos”. Esse é um fato evidente na sociedade em que vivemos. Estamos cercados por ídolos, que não correspondem ao coração do homem e só o deixam num espantoso desespero, indiferente a tudo e a todos. Muitos laicistas puderam constatar de perto a cegueira e a falsidade de certos ídolos. E o ídolo colocado em ponto de destaque pelos homens do século XX foi o Estado. Por isso, quando o Papa indica que há algo que vem antes do Estado, que existe um grande Pai que inscreveu na natureza dos seus filhos algo de inviolável, eis que os novos pregadores laicos protestam contra a invasão de campo e erguem barricadas para defender o recinto das suas seguranças, que ninguém pode ameaçar. No entanto, os homens livres, que têm uma fé ou não têm nenhuma e que não fecharam a porta à possibilidade de ocorrer uma novidade, percebem que o que está no ar é algo racionalmente verdadeiro. E urgente.