A evidência da experiência

Página Um
Julián Carrón

Notas das palavras de Julián Carrón na Assembleia de Responsáveis de Comunhão e Libertação da Itália, Pacengo (Verona), 27 de fevereiro de 2011

Hoje de manhã, quando acordei, pensando no dia de ontem, fui invadido por uma surpresa cheia de gratidão pelo fato de o Senhor ainda ter piedade do nosso nada; e logo me lembrei de uma passagem de Dom Giussani que um amigo me leu esta semana: “Especialmente nestes tempos, tenho pensado no que explica por que o nosso Movimento cresceu sem nenhum programa, sem nenhum projeto e sem nenhuma pretensão: cresceu do nada. A última coisa que nos passava pela cabeça era que ainda pudéssemos estar vivos na semana seguinte, que ainda existíssemos. Nós nascemos, não digo com esta humildade, mas com este senso realista do pouco que somos” (L’uomo e il suo destino. In cammino. Gênova: Marietti, 1999, pp. 76-77). Essa é exatamente a impressão que muitas vezes me invade: o fato de ainda existirmos, não de existirmos como organização, mas de existirmos, de o Senhor continuar a ter piedade do nosso nada, da nossa insignificância, e de a nossa liberdade poder despertar constantemente diante da excepcionalidade da Sua presença. Parece-me que o dia de ontem foi uma confirmação disso.
As perguntas que fizemos a nós mesmos foram: como é que o percurso sobre É possível viver assim? foi e é uma ajuda para que a inteligência da fé se torne inteligência da realidade? E o que é que a apresentação pública de O senso religioso (juntamente com o artigo de Natal publicado no L’Osservatore Romano e o panfleto “As forças que mudam a história são as mesmas que mudam o coração do homem”) ativou na vida do Movimento? Porque seria lógico esperar que agora estivéssemos em melhores condições para julgar. No entanto, o que temos notado em alguns é uma reação amedrontada ao encontro no Palasharp (a apresentação do livro de Dom Giussani); em outros, vemos uma posição confusa em relação ao momento histórico-político. Há quem tente resolver o problema fazendo análises, convidando para vir à comunidade o especialista do momento (o político, o psicólogo, o jornalista), para obter um “suplemento” de juízo; reduzindo, assim, o carisma do Movimento a reflexões devotas e “internas”, que não servem para viver.
A questão é muito, muito séria. Para que serve a fé? Ou, dizendo de uma outra forma (sobretudo levando em conta as dificuldades que apareceram na Escola de Comunidade sobre a primeira premissa de O senso religioso): onde é gerado o nosso juízo?
Nosso ponto de partida – sinteticamente falando – foi o que Dom Giussani respondeu na entrevista que concedeu a Angelo Scola: “O coração da nossa proposta é antes o anúncio de um acontecimento que se dá e que surpreende os homens do mesmo modo que, há dois mil anos, o anúncio dos anjos em Belém surpreendeu alguns pobres pastores. Um acontecimento que se dá, independentemente de qualquer consideração sobre o homem religioso ou não religioso. É a percepção desse acontecimento que volta a suscitar ou potencializa o sentimento elementar de dependência e o núcleo de evidências originais a que damos o nome de ‘senso religioso’” (Un avvenimento di vita, cioè una storia. Roma: Il Sabato, 1993, p. 38). Para nós, isso aconteceu num encontro, que se prolongou numa história; aconteceu conosco essa intensificação das evidências originais; e tivemos a experiência de uma correspondência tal que é incomparável, tamanha é a excepcionalidade daquilo que a nós se apresentou e nos aconteceu no encontro com Cristo: qualquer outra experiência (apaixonar-se por uma mulher ou sofrer por um amigo) é uma “analogia velada” (Giussani, L. L’io rinasce in un incontro (1986-1987). Milano: BUR, 2010, p. 44).
Portanto, deveria ser fácil julgar; se se intensificaram todas as evidências originais que são o critério de juízo, se tivemos uma tal experiência de correspondência que é incomparável com qualquer outra, tudo pareceria pronto para uma comparação imediata, instantânea. No entanto, temos ouvido dizer que estamos confusos, e muitas vezes estamos mesmo. Como sucede quando, para tentar entender a confusão da política, a pessoa lê todos os jornais, e tudo fica ainda mais confuso! Ou quando procuramos “especialistas” para resolver os problemas que temos na política, na escola ou na vida afetiva. Com isso, o cristianismo acaba por se demonstrar inútil, apesar das nossas intenções, apesar dos nossos discursos, apesar das nossas lógicas; e ficamos alienados como todos: dependemos sempre de alguém de fora da experiência. E então questionamo-nos: mas, então, qual é a conveniência humana da fé, qual é a razoabilidade da fé?
A isso se acrescentam duas outras formas de complicação.
Uma está ligada à relação entre a Escola de Comunidade transmitida por videoconferência e os encontros que são feitos nas comunidades locais. Numa reunião, uma pessoa me disse que percebia que alguns participam da videoconferência e não dos encontros de Escola de Comunidade. E onde estaria o problema? “Na videoconferência, que desresponsabiliza as pessoas”, disse ela. Eu repliquei: “Será que não é o contrário? Será que, por não estarmos nesse nível nas nossas comunidades locais, é difícil suportar os nossos encontros?” No dia seguinte, recebi esta carta de uma amiga nossa: “Ao longo destes anos, fiz o seguinte percurso. Primeiro: ‘Cristo atrai-me toda a si, tão belo é’, como diz o título dos Exercícios da Fraternidade que mudaram a minha vida. Segundo: agora só quero viver desta maneira; se a realidade me der a possibilidade de escolher, não quero nada menos do que isso. Mas quero dizer que durante muitos anos sofri na Escola de Comunidade, que era pesada e chata. Eu achava que era um problema meu, mas continuei a ir sempre; não para marcar presença, mas porque objetivamente era o único caminho que eu tinha para viver a relação com Cristo segundo o carisma que eu encontrei. E para mim isso é indispensável, a qualquer custo. Depois, apareceu a sua Escola de Comunidade: foi uma dádiva infinita, maior que qualquer esperança ou imaginação. Recuperei o gosto do início, a Escola de Comunidade voltou a ser vital. Quando chega a hora dos avisos, eu penso: ‘Como, já acabou?’ O ponto não é você ser ótimo, o ponto é que você se apresenta como um amigo que está fazendo uma descoberta e a comunica a nós e nos estimula a fazê-la também. Enfim, para mim é um alento infinito. Por isso não tenho vontade de ir à Escola de Comunidade local, que é tão emperrada e aborrecida, onde, para mim, não só não há atrativos, mas também tenho a grande tentação de olhar apenas para o que não vai bem. Eu pergunto-lhe isto porque, senão, onde poderia fazer esta pergunta?” A ela vou responder diretamente o que é necessário para o seu caminho pessoal. Mas o que é que essa sua urgência nos pede?
A segunda dificuldade é uma coisa que eu observei muitas vezes nestas últimas semanas: alguns acham que seríamos mais influentes historicamente se fizéssemos coisas diferentes das que estamos fazendo; por exemplo, se déssemos outros juízos, mais “específicos”, pois os nosso seriam abstratos demais. O que nos diz este complexo de inferioridade?
Neste fim de semana manifestou-se com clareza aquilo que está no centro de todo o nosso método (e sobre o qual devemos ter ideias realmente claras, submetendo a razão à experiência): qual é a natureza do cristianismo, qual é a natureza do nosso Movimento. Porque, se não adquirirmos uma clareza a esse respeito, no fundo pensaremos sempre que seria melhor fazer outra coisa (um partido, uma consulta de psicologia, assistência social); e há mesmo quem tente fazer isso, procurando reduzir o carisma a alguma dessas variantes, em nome de uma pretensa falta de influência histórica. Como se nada tivesse acontecido na nossa história, como se já não tivéssemos vivido o ano de 1968, quando tudo parecia mais influente que o cristianismo e a comunhão cristã! Todos nos lembramos daquele episódio em que Dom Giussani, vendo um universitário que participava das barricadas, lhe pergunta: “O que fazes?” “Estou aqui com as forças que mudam a história.” E Giussani lhe responde com a frase genial que retomamos num panfleto recente: “As forças que mudam a história são as mesmas que mudam o coração do homem”.
Assim, queremos perguntar-nos cada vez mais, juntamente com o Papa, “o que poderia em última análise mover o homem no seu íntimo” (Bento XVI, Sacramentum caritatis, 2): o que é realmente concreto, o que é que realmente tem incidência sobre a raiz do eu, para que possa mudar também a história? Se não formos claros a este respeito – e isso mostra até que ponto é adequado o trabalho que estamos fazendo –, o senso religioso não desperta; se o cristianismo não é capaz de despertar o nosso eu, somos como todos, e o que vivemos não é decisivo nem para nós nem para os outros. Que tenacidade e que certeza teve Dom Gius, ao longo de toda a nossa história, para não ceder nesse ponto! E diante de qualquer tentativa de buscar alguma solução fora da experiência, Dom Giussani continuamente volta a propor um método diferente. Já desde o primeiro capítulo de O senso religioso, ele nos lembra que, se a pessoa quer entender o que é o senso religioso, não deve procurar a resposta em outro lugar (no que diz a internet, no que dizem os livros, no que dizem os especialistas). Não. E por que não? Porque Dom Giussani tem alguma fixação? Ou porque a experiência nos mostra que o método dialético da multiplicação dos pontos de vista nos leva a acabar ainda mais confusos? Podemos ler tudo o que se diz a respeito de uma coisa mas, se não partirmos da experiência, não temos um critério de juízo para julgar nem mesmo aquilo que se lê... O método é a experiência – diz ele: “Não partir de uma investigação existencial seria como pedir a um outro a consistência de um fenômeno que eu vivo. Se não fosse confirmação, enriquecimento ou contestação como consequência de uma reflexão que eu pessoalmente já fiz, o parecer de outrem seria somente a substituição de um trabalho que me cabe e um veículo de opinião inevitavelmente alienante” (Giussani, L. O senso religioso. Trad. Paulo Afonso E. Oliveira. Brasília: Universa, 2009, p. 22).
Padre Pino dizia ontem: “Dom Gius sempre proclamou a precedência do fato sobre as interpretações. Entre nós, o problema não pode ser fazer a melhor interpretação de Giussani, pois isso é gnose. Se for um conflito de interpretações de acordo com a história de cada um, então haverá apenas opiniões e nenhum juízo, nenhuma libertação, nenhuma novidade”. E a autoridade, depois, teria de fazer uma síntese das diferentes interpretações. Eu estaria aqui apenas para administrar o ponto em torno do qual devemos estar de acordo, como se fosse uma questão de poder.

Tudo isto explica qual é o desafio que temos à nossa frente, amigos, se quisermos seguir Giussani já desde o primeiro capítulo de O senso religioso e focar a experiência; pois, caso contrário, precisaremos sempre de um especialista, de um suplemento de verdade fora da própria experiência. Ou a experiência traz as razões em si mesma (“a experiência traz a evidência consigo”, dizia uma de vocês ontem de manhã), ou teremos sempre de ir buscá-las fora. Mas, assim, tudo ficaria arruinado. E, mais grave ainda, assim tornaríamos o cristianismo “inútil”. No entanto, todos sabemos e todos aceitamos que para responder ao desejo de realização não bastam as muitas setas que apontam para o Mistério; é preciso outra coisa, que não é uma dialética ou um conflito de interpretações, mas um fato, ou melhor, “o” Fato. Pois o dualismo, em que muitas vezes estamos mergulhados até a medula, não é vencido por um discurso, mas por uma experiência. Sem isso, a nossa inteligência da fé não se torna inteligência da realidade, e por isso nós não somos decisivos. A nossa contribuição só será decisiva “se a inteligência da fé se tornar inteligência da realidade”, como disse Bento XVI.
O que aconteceu nestes dias? Dizia ontem um de vocês: “Cristo é Memor mei”. E os testemunhos que ele tinha ouvido faziam-no dizer: “Os meus olhos viram, as minhas mãos tocaram o Verbo da vida. Eu sou memor Domini porque Ele é Memor nostri, Memor mei, ou seja, há Alguém que me arranca do meu nada, que se torna tão evidente aos meus olhos que toda a minha vida é preenchida pela Sua memória, pela Sua presença, e eu vejo o que Ele é porque tenho mais consciência da irredutibilidade do meu eu”. Ou, como descrevia um outro: “Estou mais consciente da natureza da minha necessidade. Devo confessar que, estando há tanto tempo no Movimento, tinha reduzido a minha pergunta humana. Você era feliz e eu não, e entendi que ninguém consegue, sozinho, manter-se na posição adequada a que o encontro com Cristo o abriu. Se eu não vivo pessoalmente essa desproporção estrutural, não sou um sujeito”. Enquanto o ouvia, eu recordava o que diz Dom Gius: “É preciso prestar muita atenção, porque muito facilmente não partimos da nossa experiência verdadeira, isto é, da experiência completa e genuína. De fato, muitas vezes identificamos a experiência com impressões parciais, reduzindo-a, assim, a uma mutilação, como frequentemente acontece no campo afetivo, no namoro ou nos sonhos com o futuro. E mais frequentemente ainda confundimos a experiência com preconceitos ou esquemas, talvez inconscientemente assimilados do ambiente. Por isso, em vez de nos abrirmos naquela atitude de espera, de atenção sincera, de dependência, que a experiência sugere e exige profundamente, impomos à experiência categorias e explicações que a bloqueiam e angustiam, presumindo resolvê-la” (Giussani, L. O caminho para a verdade é uma experiência. Trad. Neófita Oliveira e Giovanni Vecchio. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2006, pp. 104-105). Por quê? Porque não partimos das nossas verdadeiras necessidades, às vezes nem sabemos quais são. No que é que podemos ver que Cristo se lembra de nós, que Cristo está presente no meio de nós? No fato de nos tornar mais conscientes da nossa necessidade, do nosso mistério, da irredutibilidade do nosso eu, da desproporção estrutural; e isso leva a uma descoberta de mim mesmo, da verdadeira natureza do meu eu, de quanto sou mendicante, de quanto sou dependente.
Então, qual é o critério da verdade e da clareza? É que se dê o acontecimento de Cristo – que contém a evidência das razões, que me arranca de toda a minha confusão, que me dá a clareza sobre o meu eu e sobre a realidade –! E, para isso, não basta todo o passado, toda a história; precisamos da contemporaneidade de Cristo agora, é preciso que Alguém continue a ter piedade de nós, pois de outra forma acabamos na mesma confusão de todos e somos inúteis para o mundo. Assim, quando vemos mais uma vez despertar o maravilhamento, isso não é óbvio, não é óbvio; o que aconteceu ontem não é óbvio: o fato de, passados seis anos da morte de Dom Giussani, o Senhor continuar a ter piedade de nós não é óbvio, mas exige de nós uma disponibilidade a deixarmo-nos gerar.
Enquanto preparava a apresentação de O senso religioso, passou-me pela cabeça que a primeira tentativa educativa de Deus foi o povo de Israel. No entanto, desse mesmo povo nasceram duas figuras, que o Evangelho põe diante dos nossos olhos. Os escribas tinham levado a história a sério, tinham-se esforçado por estudá-la, conheciam a sua lógica, mas isso não os tornou disponíveis; a tentação do “já sabido” está sempre à espreita de todos, e os escribas são um exemplo disso – nós também, em nome do “já sabido”, poderemos não estar disponíveis ao que o Mistério faz agora, pois a verdadeira intenção da educação de Deus não é o “já sabido”, que seria o túmulo, mas a pobreza de espírito. Quem se mostrou aberto e disponível ao método de Deus foi Nossa Senhora, ou João e André, ou Zaqueu. Todos estaremos sempre diante dessas duas possibilidades. Não é apenas uma história do passado, mas uma história do presente: em nome do “já sabido”, podemos medir o presente, em vez de nos deixarmos tocar pelo presente e fazer a experiência da libertação.
Impressionou-me o relato de uma pessoa que está há muitos anos no Grupo Adulto e lembrou uma ocasião em que Dom Giussani, em 1992, citando o filósofo Finkielkraut, disse que só podemos conhecer por acontecimento: “Quanto mais eu encarava essa afirmação, mais tomava consciência e mais me parecia que se formava diante dos meus olhos o tipo humano que faz uma experiência como essa: um homem resoluto, um homem livre. Fiquei extremamente fascinado por essa concepção do conhecimento como acontecimento. Então perguntei a Giussani: ‘Mas tudo o que eu tentei fazer em todo este tempo no Grupo Adulto foi querer aprender seguindo você. Se tudo isso que eu aprendi é uma jaula, como é que eu posso viver constantemente diante deste acontecimento? O trabalho que eu construí em torno do meu eu pode-se transformar numa jaula, e posso ficar prisioneiro justamente do êxito da minha paixão, que era aprender. O oposto do homem livre, o oposto do homem pobre, resoluto, livre e criativo!’ Dom Gius respondeu-me: ‘Sim, o que você diz é verdade; a não ser que aquilo que você sabe lhe seja restituído por algo presente’. Gostei muito dessa frase, mas não a entendi e talvez nem tenha percebido que não entendi, mas lembrei-me dela durante muitos anos, como um ruído de fundo na minha memória, e como um rio subterrâneo foi voltando explicitamente à minha consciência, à medida que eu ouvia o Carrón nestes anos: ouvindo-o, fiz e faço a experiência de que Dom Gius falava”. Posso ser eu, pode ser um outro, não é isso que importa. O que é decisivo é se estou ou não disponível face àquele por meio do qual o Mistério se torna presente, restituindo-me o que eu já sabia; porque, se eu não estiver disposto a acolhê-lo como presente, estou acabado, estamos todos acabados. E isso onde é que se vê, em que se comprova? No fato de que eu estou disponível, de que não entendo mas me sinto novamente agarrado, que eu começo a respirar outra vez; é isso que me faz realmente entender.

Esta, amigos, é a única possibilidade de que o Movimento continue a ser Movimento: se nós nos deixamos gerar por algo presente, qualquer que seja a forma mediante a qual o Mistério o faz reacontecer, que pode ser – como dizíamos ontem – a pessoa que chegou por último, uma pessoa “velha”, uma pessoa “nova”, com história ou sem história, qualquer um. Porque a liberdade do Mistério se evidencia dessa forma. Temos visto isso acontecer em muitas ocasiões, como vocês exemplificavam ontem, pois, quando as pessoas se deixam gerar, percebemos o florescimento de figuras cheias de autoridade, que abandonam o estado de menoridade, porque se apoiam na evidência das razões da experiência que fazem, tornando-se assim protagonistas, não subordinados sempre carentes de alguma confirmação oferecida pelo chefe, por falta de evidências. E o teste desse protagonismo é o modo de estar na realidade, a lealdade com os dados, a afeição e até a dimensão cósmica daquilo que a pessoa vive.
Ao contrário do que poderíamos pensar, pôr isto em foco não apenas não diminuiu a amizade, mas gerou uma intensidade de relações de amizade antes desconhecida, não formal, de uma verdade que surpreende, uma amizade no essencial, no que mais nos interessa, e não apenas nas consequências, não no secundário. Pois, quando o drama da vida bate à nossa porta – como um amigo nos testemunhou ontem, falando da morte de seu filho –, não basta qualquer coisa que não seja Cristo: nenhuma outra coisa nos permite encarar os verdadeiros desafios da vida! Assim, é como se a palavra amizade adquirisse também aos nossos olhos uma intensidade de relacionamentos antes desconhecida, e isso vê-se no reflorescimento das comunidades, que são também geradas por estes “eus” novos, por estas criaturas novas, por estes protagonistas que são antes de mais nada uma dádiva para as próprias comunidades, e que ao mesmo tempo precisam de espaço, de acolhimento, de um abraço, se não quisermos perdê-los – porque eles têm a evidência, não são pessoas submissas.
Imaginem, amigos, o tipo de conversão que isso pede a quem detém uma responsabilidade, pois não é um projeto de conversão decidido nos gabinetes: a conversão é ao que o Mistério faz. Que outra forma de enfrentar a Quaresma é mais interessante, mais incidente e mais adequada do que acolher o Acontecimento presente, que o Senhor nos concede fazendo-o acontecer diante dos nossos olhos? Porque a responsabilidade é a conversão do eu ao Acontecimento presente. Peçamos a Nossa Senhora a graça de ter a sua simplicidade: a capacidade de acolher o novo que o Senhor faz, que nos é concedido para nós e para o mundo.