A forma do testemunho

Página Um
Julián Carrón

A síntese de Julián Carrón na Assembleia Internacional dos Responsáveis de Comunhão e Libertação.
Cervinia, 29 de agosto de 2016



1. O definir-se do testemunho
“As circunstâncias pelas quais Deus nos faz passar são fatores essenciais e não secundários da nossa vocação, da missão a que nos chama. Se o cristianismo é anúncio do fato de que o Mistério se encarnou num homem, a circunstância em que se pode tomar posição sobre isso, em frente a todo o mundo, é importante para o definir-se mesmo do testemunho” (L. Giussani, L’uomo e il suo destino. Milão: Marietti, 1999, p. 63).
Cada um de nós pode julgar se a maneira como temos testemunhado a nossa tentativa de viver e comunicar o cristianismo, na circunstância histórica em que estamos, tem sido adequada ou não. A primeira verificação da forma do nosso testemunho é feita por nós, por nossa própria conta. Se não fizermos essa verificação, mesmo se depois repetimos as palavras que nos dissemos, tudo será abstrato. Com efeito, se aquilo de que falamos e que recebemos não tomar e não envolver primeiramente a nós mesmos, será inútil também para os outros: se não passar através de nós, se não se encarnar em nós, se não nos penetrar até às entranhas, o que é que comunicamos? Palavra, palavras, palavras. Por isso não há outra maneira para extrair conclusões de tudo o que dissemos, a não ser a experiência presente.
Portanto, o que vimos? Que experiência as coisas que vimos e vivemos nos fizeram realizar? E, em segundo lugar, estamos disponíveis a seguir e a ceder ao que vimos acontecer em nós nestes dias? A nossa obediência é Àquele que está em ação em tudo o que aconteceu em nós e ao nosso redor, se tivemos um mínimo de ternura por nós mesmos, um mínimo de amor por nós mesmos, pela nossa vida, pela nossa realização, para reconhecer isso. E, se não aconteceu nada, é melhor irmos embora, fechemos as portas e joguemos a chave no lixo.
A frase de Dom Giussani continuava: “Do modo como se obtém essa posição [a forma do testemunho] em nós, dá para entender se e o quanto vivemos o pertencer, que é raiz profunda de toda a experiência cultural. De fato, uma expressão cultural nasce de um pertencer, brota daquilo a que se pertence. Não é garantido termos uma consciência do pertencer formulada mesmo que teoricamente, podemos não ter uma consciência do pertencer adequada, mas é de fato aquilo a que pertencemos o que decide em relação à nossa expressão cultural” (Ibidem). É aquilo a que pertencemos, de que participamos, que define a nossa expressão cultural. Por isso, se não tivermos feito experiência de pertencer ao acontecimento que nos ocorreu, nossa expressão cultural será necessariamente determinada por outra coisa, por outro pertencer. A verificação daquilo a que pertencemos é, então, a nossa forma de estar presente no real.
Repetimos muitas vezes essa frase, mas é como se nunca terminássemos de penetrar sua profundidade, de entender seu significado, porque as circunstâncias nos provocam sem tréguas, se revelam cada dia mais decisivas e nos pedem uma ação, para entendermos sempre mais o que é a fé, o que significa viver a fé, que experiência nós fazemos da fé nesta circunstância histórica, em relação à qual se define o testemunho, a forma do testemunho. Não podemos, com efeito, viver a fé fora da história, não podemos imaginar um testemunho que seja a-histórico. Nós não vivemos no ar, vivemos nas circunstâncias, diante dos desafios, num momento concreto do tempo: por isso a forma do testemunho pode ser diferente, porque fica determinada em relação às circunstâncias históricas. Isto não significa renunciar à origem na nossa experiência, mas que essa origem se encarna nas circunstâncias históricas, de tal modo que podemos verificar se ela resiste à evolução dos tempos, à pressão das mudanças.

2. Uma mudança de época
Definimos a circunstância histórica atual com a expressão do Papa Francisco: “Hoje não vivemos uma época de mudança, mas uma mudança de época” (Discurso aos participantes do V Congresso da Igreja Italiana. Florença, 10 de novembro de 2015). Uma mudança de época! Que disponibilidade precisamos ter, nós e toda a Igreja, para aceitar o desafio que essa mudança de época representa para a nossa fé! Toda a Igreja, todos nós nos encontramos diante desse desafio e temos uma tarefa à qual não nos podemos furtar. Mas para não nos furtarmos a ela é preciso deixar-nos provocar, deixar-nos chamar pelas circunstâncias em que estamos, para encontrar a forma mais adequada de testemunho da fé no momento histórico atual. É por isso que há anos nos perguntamos: que significa ser uma presença agora? Que estamos fazendo no mundo?
A Igreja, na medida em que vive na história, é chamada constantemente a ler os “sinais dos tempos”, como dizia Bento XVI no texto que citamos nos Exercícios da Fraternidade (cf. “Eu te amei com amor eterno, tive piedade do teu nada”. Encarte de Passos, n. 182, 2016, p. 10-11), para identificar a forma adequada do testemunho. Não é apenas uma urgência de hoje, mas uma constante na história da Igreja e na nossa história, como está bem ilustrado no livro de Marta Busani sobre o nascimento de Gioventù Studentesca (Gioventù Studentesca: Storia di un movimento cattolico dalla ricostruzione alla contestazione. Roma: Studium, 2016). Nós nascemos dentro da tentativa feita pela Igreja ambrosiana para responder ao desinteresse crescente dos jovens pela proposta cristã, sempre mais percebida como formal e sem incidência sobre a vida. Assim, chegando a Milão em 1955, Giovanni Battista Montini expressa seu desejo de encontrar um “cristianismo moderno, vivo, novo, para dar às gerações que virão” (M. Busani, Gioventù Studentesca..., op. cit., p. 14). Com sua tentativa pastoral, o novo arcebispo tentava responder ao formalismo que parecia dominar no modo de viver a fé e aos sintomas já visíveis de afastamento dos jovens, e convidava todos a ajudá-lo. Poderíamos dizer que Giussani respondeu plenamente a esse apelo do seu bispo.
O Movimento, enfim, é uma forma, um modo pelo qual Dom Giussani, com toda a sensibilidade da qual era capaz, buscou dar testemunho de Cristo naquela circunstância histórica particular. O Movimento é a forma, o modo pelo qual Cristo nos alcançou, nos fascinou, nos tomou; é o modo no qual o cristianismo se tornou interessante para nós, no qual Cristo se tornou uma presença real na nossa vida. E nós o descobrimos através da experiência, por Sua capacidade de nos atrair, de nos fascinar e, no pertencer, de mudar a nossa vida.
Mas essa dinâmica nunca para, porque as circunstâncias mudam constantemente. Por isso, é preciso sempre escrutar os sinais dos tempos para encontrar a forma adequada do testemunho. Quais são os sinais desta mudança epocal? Podemos indicá-los fazendo referência a pessoas que não pertencem à Igreja mas têm a simplicidade de olhar necessária para identificar o que está acontecendo (insegurança e medo) e identificar suas raízes. “As raízes da insegurança – disse recentemente o conhecido sociólogo Zygmund Bauman – são muito profundas. Vão fundo na nossa maneira de viver, estão marcadas pelo enfraquecimento dos laços [...], pelo esmigalhamento das comunidades, pela substituição da solidariedade humana pela competição”. E acrescentava que dessa falta de laços vem o medo: “O medo originado por essa situação de insegurança [...] difunde-se por todos os aspectos das nossas vidas” (“Alle radici dell’insicurezza”, entrevista por D. Casati. Corriere della Sera, 26 de julho de 2016, p. 7).
Substancialmente é o mesmo diagnóstico que Dom Giussani formulava há mais de vinte anos e de maneira ainda mais radical. O que “caracteriza o homem de hoje [é] a dúvida sobre a existência, o medo do existir, a fragilidade do viver, a inconsistência de si mesmo, o terror da impossibilidade; o horror da desproporção entre si e o ideal”. E continuava: “Este é o fundo da questão, e daqui se reparte para uma cultura nova, para uma criticidade nova”. Essa necessidade do homem de hoje – quer dizer, de cada um de nós – é de fato o ponto de partida e o termo com o qual qualquer tentativa de resposta é chamada a se comparar. Toda e qualquer tentativa faz a verificação da sua pertinência em relação a essa situação humana, a esse “hoje” do homem. Se não responder a essa necessidade, não vai interessar ao homem, não vai interessar a nós. “O mundo de hoje é levado novamente ao nível da miséria evangélica; no tempo de Jesus o problema era como fazer para viver, e não quem tinha razão” (“Corresponsabilità”. Litterae Communionis-CL, n.11, 1991).

3. Tentativas de resposta
É inevitável que, diante desta situação, da qual não se pode deixar de partir, apareçam diversas tentativas de resposta, diversas culturas que indicam posições de fundo. Estou consciente de que na vida pessoal e social há muitas outras dimensões que a tornam realmente complexa. Mas quero-me deter em duas posturas que hoje me parecem prevalecer.

a) Muros
Podemos indicar o primeiro com uma palavra: muros. Esta posição de fundo propõe a criação dos muros para defender de algum modo o que ainda resta, para tentar nos proteger, em suma. Muitas vezes o Papa Francisco nos lembrou dela. Ao evidenciar essa postura não se quer, obviamente, subestimar ou excluir as medidas de segurança e as leis necessárias para prevenir qualquer violência e nos defender adequadamente de eventuais agressões. Mas são suficientes? Sobretudo, são suficientes no que se refere à profundidade do problema que estamos tendo de enfrentar? Novamente Bauman, com sua agudeza, nos desafia: “Uma vez que novos muros forem levantados e mais forças armadas forem convocadas nos aeroportos e nos espaços públicos; uma vez que a quem pede asilo por guerras e destruições essas medidas forem recusadas e mais imigrantes forem repatriados, tornar-se-á evidente como tudo isto é irrelevante para resolver as verdadeiras causas da incerteza” (“Alle radici dell’insicurezza”, cit.). O Papa também ressaltou isso alguns meses atrás: “Eu sempre disse que construir muros não é solução: vimos cair um, no século passado. Não resolve nada” (Coletiva de imprensa durante o voo de retorno de Lesbos, Grécia, 16 de abril de 2016). Analogamente, as contraposições ideológicas – que são formas diferentes de construção de muros – serão irrelevantes para resolver as causas reais da incerteza, porque o problema não é “quem tem razão”, mas “como se faz para viver” nesta situação. Não se superam a insegurança e o medo com muros, eles têm raízes tão profundas em nós que, como diz Bento XVI, não podem ser resolvidos a partir de fora: “O homem não poderá jamais ser redimido simplesmente a partir de fora” (Carta encíclica Spe salvi, §25).
Quando construímos os muros, por acaso a incerteza diminuiu, foi vencida, foi derrotada? Pensemos em certos muros reais construídos aqui e ali no mundo: tornou-se mais seguro viver? Pensemos em quando nos fechamos em nossos quintais para defender os espaços que ainda nos restam. Fica vencida a incerteza? Só na aparência, pois o vírus permanece mesmo dentro das fortalezas. De fato, o problema não são principalmente os riscos que podem vir de fora, mas o medo de viver, a insegurança existencial, a dúvida sobre a existência que carregamos conosco. Por isso, mesmo se construirmos muros, continuava Bauman, “os demônios que nos perseguem [...] não vão evaporar nem desaparecer. Aí poderemos acordar, e desenvolver os anticorpos” (“Alle radici dell’insicurezza”, cit.) adequados, se estivermos em condições. É um problema de tempo, não de discussões. Cedo ou tarde chegaremos ao finalmente.

b) Diálogo
A tentativa de levantar muros pode ser contraposta a uma segunda postura, que podemos descrever com outra palavra: diálogo. Muitos homens de hoje, como vimos em numerosas ocasiões este ano, estão sinceramente à procura de uma resposta adequada às necessidades próprias e alheias, depois das tantas derrotas ideológicas, e assim os descobrimos como companheiros de caminho para nós. Vimos isso nos interlocutores que encontramos apresentando A beleza desarmada (J. Carrón, A beleza desarmada. São Paulo: Cia. Ilimitada, 2016). A história recente tornou-nos a todos menos presunçosos e mais disponíveis a um diálogo, até com pessoas aparentemente muito distantes, mas com as quais temos as mesmas perguntas em comum. Ainda que venham de histórias ou trajetórias absolutamente diferentes, de lugares distantes, é como se – paradoxalmente – a situação hodierna nos tornasse a todos companheiros de caminho mais disponíveis a nos escutarmos. Nós não somos alheios ao desafio de encontrar respostas adequadas, e temos de verificar se estamos disponíveis a considerar o que, no diálogo, os outros nos oferecem e se o que podemos compartilhar da nossa experiência também tem valor para eles. Tem razão, pois, o Cardeal Tauran, que, justamente numa situação em que seria de pensar em formas de resposta diferentes, mais rígidas, não se cansa de insistir sobre a inevitabilidade de um diálogo desarmado: “A resposta é sempre e de todo modo o diálogo, o encontro, [...] a única estrada percorrível é a do diálogo desarmado. Substancialmente, a meu ver, dialogar significa ir ao encontro do outro desarmados, com uma concepção não agressiva da própria verdade, e todavia não desorientados”. Não há outra via? pergunta-lhe o entrevistador. “Absolutamente não. Estamos condenados ao diálogo” (“Un altro passo verso l’abisso ma il sangue si può fermare con il coraggio del dialogo”, entrevista de P. Rodari, la Repubblica, 27 de julho de 2016, p. 8).

4. “O diálogo é vida”
A palavra “diálogo” ocupa significativamente uma posição central na origem da experiência de GS proposta por Dom Giussani. Quando, em 1959, em Gioventù studentesca: reflexões sobre uma experiência descreve o “raio”, o primeiro gesto que marcava a participação em GS, Dom Giussani afirmava que “fazer o raio significa dialogar”. “Diálogo é comunicar a própria vida pessoal a outras vidas: diálogo é compartilhar a existência dos outros na própria existência”. Esta era a primeira forma que Dom Giussani propunha aos jovens estudantes dos liceus com os quais se relacionava. E, para esclarecer a natureza do “diálogo” proposto por ele, contrastava-o com outra acepção conhecida que a palavra assumira no debate da época relativo à escola, ou seja, a da “dialética”: “É evidente que esse diálogo está bem longe da concepção racionalista que o vê como dialética, como confronto mais ou menos lúcido de ideias e de medidas mentais. O nosso diálogo é recíproca comunicação de nós mesmos por meio dos sinais das palavras, dos gestos, da postura: o acento não é colocado sobre as ideias, mas sobre a pessoa enquanto tal, sobre a liberdade. O nosso diálogo é vida, da qual as ideias são uma expressão” (L. Giussani, O caminho para a verdade é uma experiência. São Paulo, Cia. Ilimitada, 2006, p. 71-72).
Poucos anos depois, em 1964, em Apontamentos de método cristão, Dom Giussani usa a categoria de “diálogo” para identificar a missão, a presença no ambiente dos jovens de GS. “O instrumento da convivência com toda a realidade humana feita por Deus é o diálogo. Portanto, o diálogo é o instrumento da missão”. Podemos afirmar que “a história da Igreja é história da construção da unidade, feita de capacidades de valorização do positivo, de diálogo. Basta pensar no encontro entre o Cristianismo e as várias civilizações”. Como Dom Giussani descreve o diálogo? “O diálogo é propor ao outro aquilo que eu vivo e é atenção àquilo que o outro vive, por um amor ao outro que não implica absolutamente o compromisso daquilo que eu sou.” “O ‘outro’ é essencial para que a minha existência se desenvolva, para que aquilo que eu sou seja dinamismo e vida. Diálogo é esse relacionamento com o ‘outro’, seja quem for e como for” (Ibidem, p. 224, 217-218, 224, 225).
Diálogo ou dialética. É impressionante reler essas coisas à luz do que dizíamos no início: “Do modo como se obtém essa posição em nós, dá para entender se e o quanto vivemos o pertencer, que é raiz profunda de toda a experiência cultural. De fato, uma expressão cultural nasce de um pertencer” (L. Giussani, L’uomo e il suo destino, op. cit., p. 63). Qualquer expressão cultural nasce de um pertencer. O confronto, a dialética, a contraposição têm sua origem numa concepção “ideológica”, qualquer que seja sua matriz. O diálogo, porém, expressa de maneira constitutiva a experiência cristã, vivida em sua verdade: sendo o cristianismo uma graça, um dom recebido gratuitamente por meio de um encontro, o que podemos fazer senão compartilhar no encontro e no diálogo incansável com os outros o que nos foi doado? Não há outra maneira de torná-los partícipes da verdade que recebemos a não ser compartilhá-la, comunicá-la a eles por meio da vida; justamente, por meio do testemunho. Mas essa postura pode ser encontrada igualmente em quem, tendo descoberto algo de decisivo para si em outra experiência, quer compartilhá-lo com outros.
Portanto, cada uma das nossas expressões culturais é um teste do nosso pertencer. Vemos isso também nestes tempos: às vezes a gente fica mais próxima de pessoas que por anos estiveram longe do que de algumas pessoas de casa. Porque a vida não dá desconto.
É como aconteceu em meados dos anos 1960, a época à qual Dom Giussani faz remontar o início da crise de GS que culminaria no ’68: “Eles, que depois deixariam GS, punham a tônica numa concepção segundo a qual o cristianismo era entendido na prática como uma forma de empenho moral e social. Fazendo assim, eles perdiam de vista a natureza específica mesma do fato cristão, e então acabavam inevitavelmente por repropor a esperança deles na ação e na organização do homem, e não no gesto gratuito com que Deus escolheu entrar na história. A meu ver, nessas pessoas essa postura ainda não era consciente nem teorizada criticamente, mas na prática inspirava a vida deles todos os dias. Determinou-se então um conflito que pode ser esquematizado assim: na minha opinião e na de outros, a realidade que salva o homem e o mundo são Cristo e a Igreja, dos quais a unidade dos crentes (entre eles e com a autoridade) é expressão suprema e sinal na história. [...] O outro grupo, por sua vez – pondo a tônica principalmente no compromisso prático e organizacional, além de numa abordagem aos problemas sociais inspirada prioritariamente em exigências de ordem moral –, depositava toda esperança na engenhosidade das iniciativas do homem e na sua capacidade de ação, no fundo sem reconhecer outros valores senão os que pudessem ser reconduzidos a isso. A crise, pela qual fomos duramente perturbados, no fim de 1965 já estava, portanto, em ação” (L. Giussani, Il movimento di Comunione e Liberazione. 1954-1986: Conversazioni con Robi Ronza. Milão: BUR, 2014, p. 62-63).
A nossa história é tão rica de vidas e de experiências, que provê todos os elementos para vermos até que ponto é verdadeiro o que diz Dom Giussani, não só por ser ele quem o diz, mas porque o andamento das coisas o comprova. Com efeito, se em certo momento muda a aparência, porque se faz uma experiência de vida diferente, também há de ser diferente a expressão cultural. Por isso, cada um de nós, na sua maneira de se colocar com determinada expressão cultural, expressa efetivamente o seu pertencer.

5. A origem da expressão cultural
Qual é, então, a origem do nosso modo de nos colocarmos no real? Só se identificamos a origem da nossa expressão cultural, a origem das nossas tentativas de resposta, é que podemos ter a clareza do caminho e deixar-nos retomar quando nos perdemos. Qual é a origem dos muros, da dialética, da contraposição? E qual é a origem do diálogo como compartilhamento, como comunicação de nós mesmos e não como mero confronto de ideias?

a) Insegurança existencial
Também aqui, como sempre, a história vem em nosso auxílio. Para mim foi muito esclarecedor (já lhes falei disso em outras ocasiões) ver como se desenrolou a tentativa de resposta ao ’68. Quem havia ficado no Movimento tentou encarar os desafios postos pelo ’68, como nós fazemos agora perante as atuais circunstâncias. É inevitável, diante de um desafio não dá para não tentar responder, quanto mais quisermos verificar se a fé tem que ver com tudo. Referindo-se às nossas várias tentativas do início dos anos 1960, Dom Giussani, em agosto de 1982, falando aos responsáveis dos universitários e retomando a observação de um dos presentes, discerne a raiz da qual provinha aquela expressão cultural: identifica-a numa insegurança existencial. É “uma insegurança existencial, isto é, [...] um medo profundo, que faz o apoio nas próprias expressões. Esta observação [...] é de uma importância capital. Uma pessoa cheia de inseguranças, ou que tem um medo e uma ânsia existencial no fundo, dominante, busca a segurança nas coisas que faz: a cultura e a organização [...]. É uma insegurança existencial, é um medo de fundo, que faz conceber como próprio ponto de apoio, como razão da própria consistência, as coisas que se fazem num âmbito cultural ou organizativo” (L. Giussani, Uomini senza patria. 1982-1983. Milão: BUR, 2008, p. 96-97).
Mas a coisa mais terrível, para mim, é o que observa logo depois: “Assim, toda a atividade cultural e toda a atividade organizacional não se tornam expressão de uma fisionomia nova, de um homem novo”. A razão é óbvia: elas são sinais da nossa insegurança existencial. De fato, continua, “se fossem a expressão de um homem novo, poderiam até nem existir, quando as circunstâncias não o permitissem, mas aquele homem ficaria de pé. Ao passo que, pelo contrário, muitos dos nossos aqui presentes, se não fossem essas coisas, não ficariam de pé, não saberiam por que estão aqui, não saberiam a que aderem: não fica, não consiste, porque a consistência da minha pessoa é a presença de Outro” (Ibidem, p. 97). Por isso, justamente no início da contestação estudantil, em novembro de 1967, dizia o seguinte dos universitários do Movimento presentes numa das primeiras manifestações da Universidade Católica de Milão: o esforço de responder “foi tão generoso, mas quão verdadeiro?” (A. Savorana, Vita di don Giussani. Milão: BUR, 2014, p. 391). Levaremos este juízo para o túmulo! “Generoso” não equivale a “verdadeiro”. Nosso ímpeto ideal e nosso desejo de expressar a fé para responder aos desafios da vida não nos livram automaticamente do risco de que a nossa postura nasça de uma insegurança existencial; com efeito, ele está sempre à espreita e pode originar uma maneira de se pôr no real – ou seja, uma cultura – não adequada para responder à situação do homem. Houve uma incapacidade, naquela ocasião, como disse Dom Giussani em 1972, “de ‘culturalizar’ o [nosso] discurso, de levar nossa experiência cristã até o nível em que ela se torna juízo sistemático e crítico, passando, portanto, a sugerir formas de ação” (A longa marcha da maturidade, Passos, n. 92, 2008, p. 24). Naquela ocasião, não fomos capazes de dar um valor cultural à nossa posição, e nem sempre soubemos expressar uma posição cultural original à altura da experiência que encontramos.

b) Certeza
Qual é o contrário dessa insegurança existencial? A certeza. De onde nasce a capacidade de diálogo, a capacidade de encontrar o outro, a capacidade de compartilhar a nossa existência com a existência do outro? De uma certeza. Sempre me impressiona pensar em Dom Giussani: de onde lhe vinha esse olhar para a realidade? Que vivia ele, para poder dar-se conta do equívoco de fundo que se havia insinuado na tentativa de responder às provocações do ’68? Foi esta a graça que Deus nos deu: um homem que, em certo momento, nos fez descobrir a origem daquela nossa tentativa, desmascarando um equívoco que se aninhava nela. Por isso, sempre pudemos recomeçar das nossas cinzas. Então, que Dom Giussani nos tenha repreendido e retomado incansavelmente é uma desgraça ou é a comprovação da misericórdia de Cristo, o testemunho de Cristo que acontece perante os nossos olhos para não nos deixar acabar no nada? Que certeza devia ter Dom Giussani para não sucumbir à insegurança existencial! De fato, todos tinham a fé: em 1982 ele não estava falando dos que tinham ido embora do Movimento; não, referia-se aos que tinham ficado e pertenciam. Mas ele não se cansava de nos advertir do risco de agir movidos por uma insegurança existencial, a fim de que também em nós, como nele, a posição cultural e a ação brotassem da certeza originada pela fé.
Com isso, Giussani está-nos dizendo que há um modo de entender e viver a fé que pode não derrotar a insegurança existencial. E isto tem como consequência uma forma de estar presente no real que pode ser generosa: mas quão verdadeira? Como respondeu num Conselho Nacional de 1981, logo depois do referendo sobre o aborto, a quem estava com a justa preocupação de que a fé assumisse a dignidade da cultura: “Eu lhes pergunto se o problema de uma fé que se torna cultura, capacidade de cultura, não está muito mais na certeza da fé do que na esperteza da passagem para a cultura” (Fraternidade de Comunhão e Libertação, Documentação audiovisual. Milão: Conselho Nacional de CL, 30-31 de maio de 1981). É impressionante, porque entre as duas afirmações sobre o risco da falta de uma posição cultural original se passaram quase dez anos (de 1972 a 1981), mas Dom Giussani continua firme, não muda seu juízo. Está tão enraizado nele como convicção, que o repete dez anos depois, quando haviam mudado os protagonistas, mas estes também se haviam desviado de novo: o problema da cultura é o problema da fé. Este é o testemunho da permanência de Cristo na história: Cristo testemunha-nos na história, num homem, a vitória sobre o nada, sobre a insegurança, sobre a confusão.
Se quisermos remontar ao início do cristianismo, o mesmo Evangelho oferece-nos uma documentação originária do que estamos dizendo em relação aos discípulos: quase não há uma página em que não se vejam duas posições diferentes diante da realidade, a de Jesus e a dos que O seguiam; não dos que não O seguiam, mas dos que pertenciam – por assim dizer – à mesma história, quer dizer, dos Seus. Vemos isso nas reações deles quando pedem que Jesus mande descer fogo dos céus sobre os samaritanos; ou então em Pedro, que havia até vivido tudo o que acontecera, nos anos vividos com Jesus, dia após dia, com toda a riqueza sem fim de sinais: em muitas ocasiões o vemos reagir não a partir da certeza da relação com Ele, mas como presa de sua insegurança, prisioneiro de suas medidas. Assim arranca da espada no horto das oliveiras e Jesus lhe diz: “Guarda a espada na bainha! [...] Ou pensas que eu não poderia recorrer ao meu Pai, que me mandaria logo mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26,52-53). De onde vinha em Jesus a certeza necessária para não reagir dialeticamente? Que percepção do real ele tem de ter! “Será que não vou beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11). O que torna Jesus o que é, é Seu diálogo com o Pai, é seu vínculo com o Pai. Sem isto, até Ele teria cedido ao comportamento de Pedro.
Portanto, o Evangelho põe-nos constantemente diante (vimos citado em outros momentos) de duas maneiras diferentes de estar presente no real: a de Jesus e a dos que estavam com Ele. São duas posturas que, num sentido analógico, também vimos ilustradas nos protagonistas da obra-prima de Victor Hugo, Os miseráveis: Javert e Jean Valjean. Ambos, em certo sentido, têm fé e fazem referência a ela; ambos querem estar à altura dela, mas originam-se neles duas posturas diferentes. É interessante o monólogo de Javert depois de ter lido a Bíblia; refiro-me ao belo roteiro do musical que saiu nos cinemas. Sua reflexão é esta: “Lá, na escuridão, um fugitivo em fuga longe de Deus, longe da Graça. Deus é minha testemunha, jamais cederei. [...] Senhor, fazei que eu o encontre, que eu possa vê-lo em segurança atrás das grades! Nunca terei paz até lá! [ou seja, enquanto não conseguir estabelecer a ordem] Eu juro. Eu juro pelas estrelas!” (Les misérables, direção de Tom Hooper, USA-UK, 2012).
Esta é uma forma de conceber a tarefa que nasce da fé: estabelecer a ordem na realidade. Ao contrário, a postura de Jean Valjean, que nasce de outra experiência de fé, suscitada pelo gesto absolutamente gratuito de misericórdia, perturbador, do bispo de Digne, é a de um homem que acha que sua tarefa seja, a partir dessa experiência, testemunhar a misericórdia da qual foi objeto. Ficamos de frente a duas situações: a aplicação implacável da lei para trazer ordem conforme a própria imagem do desígnio de Deus; ou então uma familiaridade com a experiência humana, que deixa a coisa mais complexa, de modo que Jean Valjean percebe que a maneira adequada de relação com todos é somente aquela da qual ele foi objeto, e por isso percebe que se trata unicamente de compartilhar com os outros o gesto de misericórdia que Deus realizou para ele por meio do monsenhor.

6. O caminho da certeza
Ora, se a expressão cultural tem como ponto de apoio, tem como nascente a certeza, a questão que temos à frente, amigos, é qual é a via para atingir a certeza que nos pode colocar desarmados na realidade, diante das circunstâncias históricas atuais.
E aqui, de novo, se voltarmos para a origem da nossa história, veremos como, num texto de 1955 destinado aos responsáveis da Ação Católica de Milão, Risposte cristiane ai problemi dei giovani, Dom Giussani escreve que a tarefa do cristão não é “diretamente mudar o rosto do mundo resolvendo seus problemas”, mas “levar Cristo, ou seja, pôr no mundo a semente da solução” (Risposte cristiane ai problemi dei giovani, agora em Realtà e giovinezza: La sfida. Turim: SEI, 1995, p. 144) dos problemas. E que quer dizer isto? Num texto precedente, de 1954, achamos a resposta: “A realidade do Reino de Deus não pode ser medida pela quantidade de pessoas que enchem as igrejas em determinadas festas ou circunstâncias, ou pelos centros paroquiais lotados de jovens espectadores para algum torneio interessante de futebol, ou pelas salas de cinema paroquiais que arrecadam muito”, mas só é medida por sua capacidade de “criar personalidades autênticas” (L. Giussani; C. Oggioni, Conquiste fondamentali per la vita e la presenza cristiana nel mondo. Milão: Presidenza diocesana milanese della Gioventù Italiana di Azione Cattolica, 1954, p. 20-21).
E como nasce uma personalidade cristã autêntica? Primeiramente é preciso notar que na proposta de Dom Giussani há um forte centramento na pessoa, no eu, no “sentido cristão do eu”, como insistirá desde o início de GS até ao fim de sua vida. A comprovação disso, no livrinho citado de 1955, Risposte cristiane ai problemi dei Giovani, Dom Giussani evidencia o fenômeno do desejo, como dimensão constitutiva do homem, do sujeito, da pessoa: define originariamente o eu. Nisto se destaca uma novidade da sua abordagem: o desejo, com efeito, era visto com certa cautela, senão com suspeita, em muitos ambientes católicos da época e em tantas outras perspectivas de reflexão ligadas a eles. Ao ressaltar o desejo, expressa-se o profundo centramento sobre o eu, sobre a pessoa, considerada em sua concretude e sua originalidade, que caracteriza a proposta de Dom Giussani. Ele escreve: “Mas um fenômeno, sobretudo, subtende o arco vibrante da vida humana – um fenômeno, sobretudo, é a alma comum de todo e qualquer interesse humano – um fenômeno é a mola de todo e qualquer problema: é o fenômeno do desejo. O desejo que nos impulsiona para a solução dos problemas – o desejo, que é a expressão da nossa vida de homens, em última instância, encarna aquela atração profunda com que Deus nos chama para si” (L. Giussani, “Risposte cristiane ai problemi dei giovani”. In: Realtà e giovinezza: La sfida, op. cit., p. 127).
Que diferença no modo de considerar o desejo! Para Dom Giussani, ele encarna a atração profunda com que Deus nos chama para si.
Que consolo teríamos todos os dias se levássemos em consideração todos os instrumentos que temos à disposição para nos darmos conta daquilo que somos! Lendo o Salmo 62: “Sois vós, ó Senhor, o meu Deus! / Desde a aurora ansioso vos busco! / A minh’alma tem sede de vós”. Que é essa sede, senão o desejo? A sede! “Minha carne também vos deseja, / como terra sedenta e sem água! / Venho, assim, contemplar-vos”. Só um homem que tem essa sede pode dar-se conta do valor do que lhe aconteceu, ou seja, que “vosso amor vale mais do que a vida” (“Salmo 62”, Laudes de segunda-feira. In: Livro das horas. São Paulo: Cia. Ilimitada, 2016, p. 43). A sede e a graça. O desejo e a presença que responde a ele.
Desse profundo centramento na pessoa, no eu, ele nunca se desviou ao longo dos anos, permitindo-nos recuperar constantemente o caminho. Confirma isso um texto de 1998 (o anterior era de 1955, este é de 1998!). Durante uma Equipe dos universitários, a quem perguntava “Por que um movimento como o nosso insiste tanto assim no eu, e por que só agora essa insistência?”, Giussani responde: “Você me faz reagir meio imediatamente quando me diz ‘só agora’, porque o começo do Movimento era dominado pelo problema da pessoa! E a pessoa é um indivíduo, a pessoa é um indivíduo que diz ‘eu’ [...]. De qualquer forma, os primeiros anos, a primeira década, antes de o ’68 trazer um grande motim pondo em foco afanosamente não tanto o eu, mas a sua ação na sociedade, a conquista do poder [este foi o desvio] [...], antes do ’68, eu dizia, o tema com que sempre começávamos os Exercícios, os Retiros, era constituído por uma frase de Jesus [...]: ‘Que adianta se vocês ganham o mundo inteiro e perdem a vocês mesmos?’. Aliás, Ele disse literalmente: ‘Que adianta alguém ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida? E que poderia alguém dar em troca da própria vida?’ [...]. Isto explica por que o nosso dizer, o conteúdo da nossa conversa, está sempre centrado na humanidade, no valor humano das coisas; e o valor humano não é da ‘humanidade’, mas do indivíduo, da pessoa”. E continua: “A frase de Jesus que na época eu citava tantas vezes, como um refrão contínuo, do ’68 em diante diminuiu um pouco, mas agora nós a retomamos, porque o resultado da política ou da ‘revolução’ mostrou as consequências extremas de uma falta de consciência, de autoconsciência do eu”. E agora parece mais claro o que nos dizia em 1998: “No tempo em que vivemos, chegamos como à costa arenosa de uma aridez, de um deserto humano, onde o sujeito da pena é o eu: não a sociedade, mas o eu, porque na sociedade se matam todos os ‘eus’ possíveis e imagináveis. Ao passo que, para nós, a sociedade nasce da existência do eu. [...] De qualquer forma, agora, o desenvolvimento do Movimento, a dinâmica do Movimento chegou a um ponto desde o qual se entende [...] que o único recurso para frear a invasão do poder está naquele vértice do cosmos que é o eu, e é a liberdade [impressionante!] [...]. O único recurso que nos resta é uma retomada potente do sentido cristão do eu. [...] A insistência sobre o valor do eu desenvolveu-se então desde o início, assim como as circunstâncias o exigiam – porque sempre foi uma preocupação nossa responder aos problemas partindo das circunstâncias em que vivemos [...]. O destaque ao valor do eu não só foi a razão de um aprofundamento, de um desenvolvimento da religiosidade como categoria fundamental do eu, senão também a origem fascinante da relação com todos os níveis do conhecimento” (L. Giussani, In cammino. 1992-1998. Milão: BUR, 2014, p. 337-343).
O destaque ao valor do eu é, pois, um desenvolvimento da religiosidade, do sentido do Mistério. A partir dele, Dom Giussani indica-nos também a tarefa: “A frase de Jesus que lhes citei é trágica, mas também é trágico o fato de eu não tê-la ouvido citada, a não ser raras vezes, por outros, porque para nós, no início, foi justamente o ponto de referência. Por isso, realizem-na vocês, realizem vocês toda a dinâmica, desenvolvam também vocês a dinâmica – que temos levado adiante por anos – da razão principal da nossa amizade, da nossa companhia e da nossa amizade: que é a realização do coração, das exigências do coração, sem a qual o niilismo seria a única consequência possível” (Ibidem, p. 344).
Não são coisas de pouca conta. Ou percorremos essa via ou terminaremos no niilismo. Por isso nos encorajava a percorrê-la: “Realizem [e] [...] desenvolvam [...] vocês [toda] a dinâmica [...] da razão [...] da nossa amizade: que é a realização do coração”. Só a realização do coração é a resposta ao nada: nem os muros nem a dialética, mas uma experiência em nós, na qual vemos vencido o niilismo, uma vitória sobre o niilismo justamente em virtude da experiência que fazemos. A realização do coração é a verificação da fé. E é só dessa verificação da fé, só dessa realização, só dessa certeza que poderá vir uma expressão cultural adequada para as circunstâncias em que somos chamados a viver, segundo todas as dimensões do real. Por isso, Dom Giussani convida-nos à personalização da fé, da qual falava desde o começo, assim como desde o começo da história do Movimento dominava a palavra “verificação”, porque a questão é a originação do sujeito, tanto naquela época como hoje.
É impressionante ver onde Dom Giussani põe a esperança! “Quanto mais duros são os tempos, mais é o sujeito que conta [...]. O que conta é o sujeito, mas o sujeito [...] é a consciência de um acontecimento, o acontecimento de Cristo, que se tornou história para você através de um encontro, e você o reconheceu. Devemos colaborar, ajudar-nos no surgimento de sujeitos novos, ou seja, de gente consciente de um acontecimento que se torna história para eles, senão podemos criar redes organizacionais, mas não construímos nada, não damos nada de novo ao mundo. Por isso, o que mede o crescimento do Movimento é a educação para a fé da pessoa: reconhecimento de um acontecimento que se tornou história. Cristo tornou-se história para você, [...] está dentro do seu ser” (L. Giussani, Un evento reale nella vita dell’uomo. 1990-1991. Milão: BUR, 2013, p. 39).

7. A experiência da verificação da fé
Se nós quisermos atingir aquela certeza que nos torna sujeitos novos, não há outra possibilidade além de refazermos hoje a mesma estrada que nos foi proposta desde o início. Não se trata de discutir, mas de refazermos a experiência da verificação da fé como resposta ao nosso desejo, às nossas exigências humanas. Diante da samaritana, Jesus dirige-se ao desejo, à sede daquela mulher, não às tentativas desajeitadas que ela tinha feito para saciá-la; porque, mesmo que houvesse identificado os erros, se não houvesse respondido à sua sede, aquela mulher os teria cometido de novo. Porque não é apenas uma afirmação, mas é uma experiência, é uma história particular o que muda a mentalidade: é uma experiência pessoal que, justamente por cumprir o nosso desejo, nos permite introduzir-nos na realidade de acordo com um modo de olhar e um modo de tratar diferentes. Por isso, desde o início Dom Giussani põe em foco a experiência, a questão da experiência. Agora podemos entender mais todo o seu alcance. Numa carta de 1962 a Montini, dedicada a esclarecer sua insistência sobre a “experiência”, ressalta que, na consciência dos jovens, “normalmente as ‘palavras’ cristãs” não correspondiam a “nenhum apelo concreto”. Os estudantes sentiam “a doutrina cristã abstrata e sem significado para a existência deles”. Portanto, a experiência era necessária para que se pudessem entender e viver as ideias que intelectualmente expressam a realidade cristã. É justamente a experiência pessoal que, portanto, tornava possível uma redescoberta profunda do ensinamento da Igreja (cf. M. Busani, Gioventù Studentesca... , op. cit., p. 484, 231). Se nós também não fizermos esse trabalho, também em nós as palavras se esvaziarão de significado, escorrerão por entre os nossos dedos.
Por isso a experiência é crucial: a experiência de cada um de nós. Mas ela, como sempre nos ensinou Dom Giussani, precisa de um critério de verificação, que se identifica com o “senso religioso”, ou seja, com as perguntas últimas da razão, com o conjunto de exigências e de evidências elementares com que o homem é lançado dentro do confronto com tudo o que existe, que Giussani havia colocado em primeiro plano identificando e desenvolvendo o tema lançado por Montini na carta pastoral de 1957. O senso religioso torna-se assim o critério de verificação da validade do cristianismo, da tradição que os jovens de GS haviam recebido.
A palavra “verificação” é uma das mais usadas na vida de GS nos primeiros anos. A própria vida de GS é considerada uma verificação, um desafio a verificar o anúncio cristão, ou seja, se e como Cristo responde ao desejo do homem. Dom Giussani afirma, falando do começo de GS: “Quase logo depois do início surgiu um problema: ‘E agora que somos dez, vinte, trinta, que fazemos?’, eu perguntava. Primeiro se discutia, como acontecia normalmente em toda parte; mas eu sentia a urgência de que o ímpeto cheio de alegria e certeza daquele conteúdo de anúncio se desenvolvesse. Então tomou corpo aquela postura programática que chamamos de verificação. Se Cristo é realmente a resposta para a vida, isto de algum deve ser ‘visto’” (L. Giussani, Un avvenimento di vita, cioè una storia. Roma; Milão: EDIT-Il Sabato, 1993, p. 341). E em Apontamentos de método cristão escreve: “Um encontro que não fosse também chamado e proposta para verificação seria tão vazio que a memória não o recordaria nem mesmo como encontro; seria um acontecimento tão inútil que não chegaria a fazer parte da história” (O caminho para a verdade, op. cit., p. 172). Temos algo de mais atual para dizer do que isso? Essa observação convida-nos a uma atenção contínua, a levar a sério a advertência de Dom Giussani, relatada por Savorana em seu livro: “‘É possível tornar-se fidelíssimo no uso de um método como fórmula e transmiti-lo, aceitá-lo, sem que esse método continue a inspirar um desenvolvimento: um método que não desenvolva uma vida é um método sepulcral, é silicificação’ (petrificação)” (Vita di don Giussani, op. cit., p. 254). Podemos evitar o risco de acabar, com as mesmas palavras, na petrificação do método, se não nos limitarmos a repetir as palavras – experiência, verificação –, mas realmente fizermos a experiência e a verificação do que nos é dado, o que é diferente de repetir as palavras.
De onde se vê se fazemos experiência ou não, se realizamos ou não a verificação? Do fato de partirmos da certeza ou da insegurança. Porque a repetição das palavras não vence a insegurança. Só a experiência e a verificação da fé vencem a insegurança, a incerteza. Por isso o problema não é quem diz ter razão, mas se no fim emerge diante de você uma pessoa cheia de certeza ou não, e dá para reconhecê-lo por como vive, por como está presente no real. Sabem qual é o sintoma? “A certeza de ser amado permite-me abraçar a realidade”, disse um de vocês. Como confirmação disto, escutemos estas palavras estupendas de Dom Giussani, durante uma Equipe dos universitários de 1980: “O sintoma da certeza é ter simpatia por tudo o que se encontra. De fato, a simpatia por tudo o que se encontra só é dada pela presença em nós da certeza do destino. Sem certeza não há possibilidade de simpatia, a não ser formal, por quem repete as nossas coisas e por quem concorda conosco [procuramos quem concorda conosco] [...]. Quanto mais uma pessoa é forte, em termos de certeza de consciência, mais o seu olhar, até no modo habitual de andar na rua, abraça tudo, valoriza tudo, e não lhe escapa nada. Vê até mesmo a folha amarela no meio da planta verde”. Facilmente podemos descobrir e distinguir quem tem essa certeza, quem constrói muros ou quem abraça tudo, quem é dialético ou quem dialoga, quem sempre discute sobre como deveriam ser as coisas ou quem conta a própria experiência e compartilha com o outro o que vive, abraçando tudo, valorizando tudo, sem que lhe escape nada, nem sequer a folha amarela no meio da planta verde. “Só a certeza do significado último é que faz sentir, como se fôssemos um detector, a mais remota faísca de verdade escondida em cada um [o detector que detecta até o que o outro tem escondido!]. E, para ser amigo de outro, não é necessário que ele descubra que o que você diz é verdade e venha com você [não é necessário que quem encontramos nas apresentações d’A beleza desarmada venham conosco]. Não é necessário, eu vou com ele, por aquele tanto de faísca de verdade que tem” (L. Giussani, Certi di alcune grandi cose. 1979-1981. Milão: BUR, 2007, p. 155-156). E ainda, como nos lembramos muitas vezes nestes tempos: “Ressalta-se o positivo, mesmo em seu limite, e abandona-se todo o resto à misericórdia do Pai” (L. Giussani; S. Alberto; J. Prades, Generare tracce nella storia del mondo. Milão: Rizzoli, 1998, p. 159).

8. Como se define a forma do testemunho?
A descoberta da forma do testemunho só pode emergir de dentro de um caminho como o delineado. Nos nossos diálogos sempre aparece o risco de reduzir o testemunho a uma estratégia. Nós, com efeito, tentamos sempre nos poupar do caminho. O testemunho não é uma estratégia que se imagina, que se programa no papel, e tampouco a nova palavra de ordem para repetir. É uma maneira diferente de estar presente no real que nasce da verificação da fé: surpreendemo-nos diferentes na forma de enfrentar a vida. Tendo sido investidos da certeza de Cristo, experimentando uma plenitude afetiva de outro modo impossível, podemos olhar para tudo de maneira diferente, mais verdadeira, mais livre: nós somos os primeiros a ficar surpresos com o fato de olharmos o real de maneira diferente. É uma surpresa. O fruto cristão é uma surpresa do caminho do pertencer a Cristo. Não é só uma surpresa para os outros, é uma surpresa primeiramente para nós: eu descubro em mim dinamismos que não são meus, formas de agir que são diferentes das de antes.
A forma do testemunho não deve ser confundida, portanto, com uma estratégia, mas tampouco deve ser reduzida a bom exemplo, a uma adequação nossa, como me disse um de vocês: “Essa expressão é difícil para mim, ‘forma do testemunho’, porque se penso no meu testemunho vejo toda a minha inadequação”.
A este propósito, uma das coisas que mais me marcam na forma como Deus faz as coisas, onde se demonstra como Deus não fica absolutamente bloqueado pela nossa inadequação, é que, quando quer mostrar que é Ele em ação, escolhe a inadequação mais absoluta: a esterilidade. Para comunicar a todos que é Ele quem atua, faz uma mulher estéril dar à luz; pensemos nas figuras bíblicas de Sara, Ana, Isabel. Então o testemunho não é um problema de adequação, mas depende do fato de alguém ter em si algo que não podia originar por si só, e justamente por isso dar testemunho d’Aquele que tornou possível o milagre nele. O testemunho é de Cristo em nós, é Cristo que dá testemunho de Si através da nossa vida. Nesse sentido, é impossível reduzir o testemunho a um bom exemplo. A estéril, com efeito, não gera um filho porque seja melhor: se ela, estéril, dá à luz um filho, é porque é Outro quem atua. Aquele fato dá testemunho de Cristo, que o faz acontecer. Desta forma, temos de superar a preocupação com a inadequação, que pertence a uma redução do testemunho a bom exemplo, que é uma parte do testemunho, mas não é a coisa decisiva. O testemunho é principalmente de Cristo em mim, é o testemunho que Cristo dá em nós, através da mudança que provoca na nossa vida e à qual eu consinto livremente. São Paulo o diz: “Ora, trazemos esse tesouro em vasos de barro, para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós” (2Cor 4,7). Por isso, o encontro com Cristo é descrito por Dom Giussani como o deparar com uma realidade humana diferente. Você depara com uma realidade humana que tem uma “’diferença qualitativa’, [...] uma diferença de vida que você percebe. [...] Quantas vezes, quantos entre nós ouviram dizer: ‘Você é diferente dos outros, há algo de diferente’”. Pois bem, “o encontro é o deparar com uma diferença qualitativa ou [...] com uma diversidade: é ‘o deparar com uma diversidade que o atrai’”. É uma diversidade que o atrai agora – atrai você a diversidade vista em alguém – a maneira com que Cristo se torna presente aos homens. E atrai “na medida em que passa pelo filtro da comparação e do trabalho do juízo”. Você vai descobrir que uma diversidade o atrai por corresponder mais ao seu coração, atrai por ser mais bela. Atrai e “é mais bela pois mais verdadeira, que a beleza é o esplendor da verdade”. E por isso não pode ser senão desarmado. “Por isso, é uma diversidade mais bela pois mais verdadeira, que lhe corresponde mais, atrai mais, ou seja, lhe corresponde mais”. Insiste: “É mais bela pois é mais verdadeira, porque o critério do verdadeiro é o coração” (L. Giussani, Ciò che abbiamo di più caro. 1988-1989. Milão: BUR, 2011, p. 72).
Esse percurso não é mecânico, não pode acontecer sem nós, tudo passa por meio da nossa disponibilidade. “Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido” (Lc 1,45). Feliz és tu, Maria, que confiaste na palavra de Deus e a verificaste. Por isso as palavras de Isabel são o reconhecimento do que viu acontecer nela quando Nossa Senhora apareceu diante de seus olhos: o sobressalto do menino que trazia no ventre, a sua vibração. “Logo que a tua saudação ressoou nos meus ouvidos, o menino pulou de alegria no meu ventre” (Lc 1,44). Analogamente, essa disponibilidade a nos deixarmos gerar por Outro comprova o nosso pertencer. Só uma pessoa realmente certa pode aceitar o desafio representado pela consciência que a Igreja alcançou no Concílio Vaticano II de que não existe outra forma de comunicação da verdade senão a que passa pela liberdade. A Igreja, e por isso o cristão, não precisa impor nada. “A verdade não se impõe senão por força da própria verdade” (Concílio Vaticano II, Declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa, §1). Na raiz, é a plenitude de Deus, o que cria o espaço da liberdade é a plenitude que Deus vive. Lembro-me ainda de como fiquei marcado quando soube que nas religiões mesopotâmicas a razão pela qual os homens foram criados era para livrar os deuses do peso do trabalho. Pelo contrário, o Deus de Abraão, que em Cristo se revela como Trindade, vive na comunidade trinitária uma tamanha plenitude, que gera uma criatura livre com a qual compartilha livremente essa Sua plenitude. Por isso, Deus não se assusta com a liberdade humana, foi Ele quem criou o homem livre, porque prefere ser reconhecido e amado livremente, por um homem livre, como nos lembra Péguy: “Por esta liberdade [...] sacrifiquei tudo, diz Deus, / Pelo prazer que tenho em ser amado por homens livres, / Livremente” (“Il mistero dei santi innocenti”. In: I Misteri. Milão: Jaca Book, 1997, p. 343).
Por isso a nossa tarefa não é mudar diretamente o rosto do mundo resolvendo seus problemas, mas levar Cristo, que é a semente da solução dos problemas.

9. A tarefa
Então, qual é a tarefa do Movimento? Originar um adulto certo, um adulto que tenha tanta certeza a ponto de introduzir no mundo uma posição original perante toda e qualquer dimensão da vida humana, pessoal e social. A posição original tem que ver com a autoconsciência, com a consciência cheia da fé, com aquela consciência de fé que dá uma certeza autêntica: é preciso essa certeza que nasce da fé para poder estar presente no real, para poder ter o olhar justo, sem o qual partiríamos de outra posição (pelo simples fato de não podermos deixar de partir de alguma posição). Como aconteceu com Maria Madalena diante do túmulo vazio: depois de todos os milagres que havia visto, não podia não chorar, porque os fatos passados não lhe davam a certeza necessária para poder ficar diante da morte. Não se vive de uma lembrança devota, não se vive de ter comido e bebido com Ele, mas se vive de algo que está acontecendo agora. É preciso uma presença. O “Maria” (cf. Jo 20,11-18) de Jesus – que era como dizer-lhe “Não chores!” – tem que ver com a fé. De que tipo de fé precisamos, então? De que tipo de certeza? Que tipo de presença de Cristo precisa haver na nossa vida para que não sejam o choro, a insegurança e o medo o que domina a nossa posição na realidade, para que não sejamos derrotados apesar de tudo o que vimos? O cristianismo é uma presença presente, e todo o passado, tudo o que vivemos, a verdade de tudo o que vivemos é colocada à prova, está sob avaliação no presente, no modo como encaramos o presente. O choro de Maria Madalena ficará diante de todos nós, porque, se Ele não continua presente, o passado todo não é suficiente para acabar com o choro.
No entanto, quando está presente, regenera as nossas comunidades. “No fim de umas férias na praia passadas com um grupo de dezesseis famílias de amigos de Varese e Friburgo (Suíça), de modo nenhum formal – escrevem alguns amigos nossos – nasceu em nós o desejo de arrecadar uma oferta livre para depositar para a Fraternidade. Isto pelo maravilhamento e pela gratidão pelos dias que passamos juntos, durante os quais, também graças ao trabalho feito juntos sobre os Exercícios e sobre o texto do encontro com os novos inscritos na Fraternidade, fizemos experiência de uma verdadeira amizade em Cristo e de como o caminho do Movimento e o pertencer a ele dentro da Fraternidade é realmente para um ‘a mais’ nas nossas vidas”.
Só fazendo experiência dessa regeneração das nossas comunidades é que podemos responder ao convite que nos dirigiu o Papa Francesco: “Para o renascimento duma Europa cansada mas ainda rica de energias e potencialidades, pode e deve contribuir a Igreja. A sua tarefa coincide com a sua missão: o anúncio do Evangelho, que hoje, mais do que nunca, se traduz sobretudo em sair ao encontro das feridas do homem, levando a presença forte e simples de Jesus, a sua misericórdia consoladora e encorajante. Deus quer habitar entre os homens, mas só o pode fazer através de homens e mulheres que, como os grandes evangelizadores do Continente, sejam tocados por Ele e vivam o Evangelho sem outras ambições [gente que O busque dia e noite, dizia-nos Dom Giussani em 1968]. Só uma Igreja rica de testemunhas poderá de novo dar a água pura do Evangelho às raízes da Europa [e do mundo; num mundo global o problema é o mesmo]. A propósito, o caminho dos cristãos rumo à plena unidade é um grande sinal dos tempos [como podemos ver em muitos amigos ortodoxos ou também não cristãos], ditado pela exigência de responder urgentemente ao apelo do Senhor ‘para que todos sejam um só’” (Discurso na entrega do Prêmio Carlos Magno, 6 de maio de 2016).
Dom Giussani testemunhou-nos: “O mundo foi conquistado para o cristianismo em última instância por esta palavra que resume tudo: ‘misericórdia’” (Generare tracce nella storia del mondo, op. cit., p. 159).