Acima do otimismo, a esperança

Página Um
Julián Carrón

Palavras pronunciadas na apresentação de Hope, segundo volume de Is It Possible to Live This Way? (Dublin, 9 de janeiro de 2009; Nova York, 17 de janeiro de 2009)

1. Espera: estrutura do homem
“Alguém alguma vez nos prometeu algo? E então por que esperamos?” (Pavese, C. O ofício de viver. Trad. de Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988, p. 308). Dom Giussani sempre citou essa pergunta do poeta italiano Cesare Pavese para nos apontar a estrutura do homem: a espera. Cada um de nós pode reconhecer em sua experiência até que ponto sua vida é repleta de espera, qualquer que seja a forma como essa espera se apresenta em cada pessoa. Podemos, assim, dizer que a espera é a própria estrutura de nossa natureza, a essência de nossa alma. Diz Dom Giussani em O senso religioso: “Ela não é um cálculo: é dada. A promessa está na origem, desde a própria origem da nossa criação. Quem fez o homem o fez ‘promessa’. Estruturalmente o homem espera; estruturalmente é mendicante: estruturalmente a vida é promessa” (O senso religioso. Trad. de Paulo Afonso E. Oliveira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, p. 83).
Essa espera se impõe a nós com uma evidência tão clara, que acreditamos saber o que esperamos. Infelizmente, em muitas ocasiões temos de reconhecer o quanto François Mauriac está coberto de razão, ao escrever: “Sempre me enganei a respeito do objeto de meus desejos. Nós não sabemos o que desejamos” (Groviglio di vipere. Milão, Mondadori, 1986, p. 201; trad. ital. de: Le nœud de vipères, 1932). Isso é dramaticamente confirmado no diário do mesmo Pavese. Quando o escritor recebeu a mais famosa premiação literária italiana, o Prêmio Strega, comentou: “Obtiveste também o dom da fecundidade. És senhor de ti mesmo, de teu destino. És célebre como quem não tenta sê-lo. Entretanto tudo isso terminará. Esta tua profunda alegria, esta ardente saciedade, é feita de coisas que não calculaste. Foi-te dada. A quem, a quem, a quem agradecer? A quem insultar no dia em que tudo desaparecer?” (op. cit., p. 385). E no dia da entrega do prêmio: “Em Roma, apoteose. E daí?” (id., ibid., p. 407).
Nós também, muitas vezes, como Pavese, nos surpreendemos com o mesmíssimo pensamento depois de ter conseguido, como ele, o que esperávamos: “E daí?” Por quê? Por que, depois de ter obtido aquilo com que sonhávamos, nos vemos com essa pergunta insidiosa nos lábios? Paradoxalmente, é no momento da decepção que o homem se torna consciente da verdadeira natureza da espera que o constitui e que lhe revela o mistério de sua pessoa, esse “mistério eterno do nosso ser”, de que fala o poeta Giacomo Leopardi (Pensamentos, LXVIII). O que é isso que esperamos e que nada, nem mesmo o sucesso mais retumbante, é capaz de substituir?
Foi ainda a genialidade de Pavese, tão leal com sua experiência a ponto de ficar maravilhado com ela, que deu resposta a essa pergunta: “O que o homem busca nos prazeres é infinito, e ninguém jamais renunciaria à esperança de alcançar essa infinitude” (op. cit., p. 209). Nada é capaz de nos satisfazer, pois o que buscamos em tudo o que nos agrada, nos prazeres, é um infinito. É isso que nos permite entender nossa decepção. De fato, a própria experiência da decepção evidencia de que é feito o nosso coração. Se eu não tivesse um desejo sem limites, também não teria a experiência da decepção.
Se essa é a condição humana, devemos nos fazer uma pergunta: existe um fundamento real a partir do qual possamos esperar que nossa sede de felicidade seja saciada? A situação atual, em que parece que tudo está para desmoronar bem diante dos nossos olhos, torna essa pergunta ainda mais urgente. É possível ter esperança?
Essa pergunta nos introduz no segundo ponto.

2. A graça necessária para esperar
“Para esperar, minha criança, é preciso ser muito feliz, é preciso ter obtido, recebido uma grande graça”, diz o poeta francês Charles Péguy (“Il portico del mistero della seconda virtù”. In: I Misteri. Milão, Jaca Book, 1997, p. 167; trad. ital. de: Le porche du mystère de la deuxième vertu, 1911). Com essa afirmação, Péguy assume uma atitude que é o extremo oposto de qualquer presunção, pois reconhece que a possibilidade da esperança não se fundamenta em algo construído por nós mesmos, mas numa graça, ou seja, em algo dado, doado. É essa graça que torna razoável a esperança.
Observemos um exemplo simples, que nos permite entender a verdade do que diz Péguy. Alguém que teve a graça de uma situação familiar normal fez experiência de quê? De ter chegado a uma certeza inabalável: “Minha mãe me quer bem”. Isso não é algo que alguém nos deva; ter tido uma mãe assim é uma graça. Mas será que alguém que teve uma experiência desse tipo pode pensar que em algum momento na vida, apenas um, sua mãe deixará de lhe querer bem? De jeito nenhum! Seja lá o que for que eu faça, não posso pensar que minha mãe vai deixar de me querer bem; eu teria de eliminar de mim mesmo toda a experiência que fiz. E sobre o que se apoia essa certeza quanto ao futuro? Na certeza da experiência presente.
Com essa experiência no olhar, podemos nos introduzir de modo simples em toda a maneira como Dom Giussani aborda o tema da esperança, de que trata no livro que estamos apresentando hoje (Is It Possible to Live This Way? Vol. 2. Hope. Montreal, McGill-Queen’s University Press, 2008).
O que é essa “grande graça” de que fala Péguy? A fé em Jesus Cristo. A grande graça é a certeza da fé. A fé, como explica Dom Giussani, é o reconhecimento de uma Presença, que permite ao homem uma experiência de correspondência tão única às expectativas do coração, que leva a reconhecer que somente o divino pode ser sua origem. Andrei Tarkovski, famoso cineasta russo, põe na boca de um de seus personagens, do filme Andrei Rublióv: “Você mesmo sabe que às vezes algo não dá certo, ou por cansaço, ou porque está farto de alguma coisa, e nada lhe traz nenhum alívio até que, de repente, se depara com o olhar simples de alguém, com um olhar simples no meio de uma multidão – então, é como se você tivesse comungado, pois tudo se torna imediatamente leve...” (Andrei Rublióv. Roteiro literário. Trad. de Márcia Vinha. São Paulo, Martins, 2008, p. 114). A experiência presente dessa Presença, analogamente à da mãe, é o fundamento da esperança.
Explica Dom Giussani: “A esperança, que não é outra coisa senão a expansão da certeza da fé no futuro” (É possível viver assim? Trad. de Neófita Oliveira e Francesco Tremolada. São Paulo, Companhia Ilimitada, 2008, p. 211. Daqui em diante, os números de página se referirão a esse livro). Se a fé é reconhecer com certeza uma Presença que tem tamanha correspondência à espera do coração, a esperança é ter uma certeza quanto ao futuro que nasce dessa Presença. É a expansão para o futuro da certeza do presente.
No início da encíclica Spe salvi, Bento XVI fala de uma “esperança fidedigna”: “A redenção nos é oferecida no sentido de que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceito, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros dessa meta, se essa meta for tão grande que justifique a canseira do caminho” (nº 1).
Por isso, a esperança é o teste mais elementar para percebermos se a nossa fé é uma experiência – precisamente, uma experiência de certeza tão real, que nos permite apoiar tudo nela -, ou se, ao contrário, é uma categoria mental ou dialética, incapaz, portanto, de nos fornecer um ponto de apoio real. Assim, Dom Giussani insiste: “A grande graça da qual nasce a esperança é a certeza da fé; a certeza da fé é a semente da certeza da esperança” (p. 154). Aquilo em que se fundamenta a esperança é um presente: “Mas um presente é realmente presente à medida que você o possui; por isso, a esperança é a certeza no futuro que se apoia numa posse já dada” (p. 156), numa grande graça, justamente.
Por isso, a esperança cristã é tudo, menos algo não razoável. Não é uma esperança que paira no ar, sem um ponto de apoio, uma espécie de otimismo irracional contraposto à evidência dos dados do presente. Pelo contrário, sua razoabilidade se apoia plenamente num conhecimento verificado na experiência. Logo, podemos dizer que se apoia numa posse já dada.
Mais uma vez, isso nos é recordado, com palavras análogas, pela Spe salvi: “A fé não é só uma inclinação da pessoa para realidades que devem vir, mas que ainda estão totalmente ausentes; ela nos dá algo. Dá-nos já agora algo da realidade esperada, e essa realidade presente constitui para nós uma ‘prova’ das coisas que ainda não se veem. Ela atrai o futuro para dentro do presente, de modo que ele já não é o puro ‘ainda não’. O fato de esse futuro existir muda o presente; o presente é tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se nas presentes e as presentes nas futuras” (nº 7).
E novamente: “A promessa de Cristo não é uma realidade apenas esperada, mas uma verdadeira presença” (nº 8).
É com essa Presença à minha frente que, neste instante, posso olhar sem medo para todo o alcance da minha espera, de meus desejos mais profundos. Na companhia dessa Presença, posso ousar fazer a verdadeira pergunta.
E isso me conduz ao último ponto desta noite.

3. A realização do desejo
“Esses desejos serão satisfeitos, sim ou não? Este é o ponto. Esses desejos, feitos segundo as exigências do coração, podem estar certos de serem realizados [...] só na medida em que uma pessoa [...] se abandona à Presença” (pp. 159-160). Eu tenho esperança porque deposito toda a minha certeza no poder da grande Presença que reconheci pela fé, sabendo que a exigência de felicidade que me constitui se realizará de acordo com a forma que o Mistério escolher.
Isso significa que meu desejo só se realiza na medida em que me abandono à Presença que a fé reconheceu. As exigências do coração dizem que o objeto do coração existe, existe no futuro, pois o homem está destinado a ser feliz, justo, verdadeiro. Mas a certeza de que isso acontecerá não pode ser sustentada pelo nosso coração. A certeza de que isso acontecerá só pode derivar da Presença que a fé reconhece: não vem de nós, mas d’Ele, da Presença excepcional que a fé reconhece.
A dinâmica da esperança é um desejo que não poderia resistir com o tempo, que sucumbiria sempre a uma amarga decepção, se não fosse sustentado, mantido enquanto razão, pela fé, pela certeza do poder da grande Presença. Por isso, da consciência de que não somos nós, mas de que é a Sua presença que realiza o desejo do nosso coração, nasce o pedido a essa Presença. Nossa liberdade se expressa como pedido a essa Presença, pedido de que se realize. São Bernardo o sintetiza numa fórmula muito bonita, quando diz que o “desejo total” (Sermo 1 pro dominica I novembris) é ele mesmo a forma mais forte de invocação a Deus.
E como é que Deus responde a essa invocação?
A forma da resposta a essa invocação não é, como frequentemente pensamos, fruto da nossa imaginação...
Essa forma não é, como muitas vezes pensamos, uma imagem nossa, um produto da nossa imaginação. Pelo contrário: “Essa forma não é outra coisa senão a própria grande Presença” (p. 163). Essa é uma coisa que podemos entender muito bem em nossa experiência: não é o presente que uma pessoa me dá que constitui a resposta plena a minha exigência de felicidade; o que me torna feliz é a própria pessoa, não os presentes que ela me dá! “A contemplação dos bens que nos dás é para nós certamente um agradável revigoramento”, escreve Guilherme de Saint-Thierry, “mas, sem a tua presença, não nos sacia perfeitamente” (La contemplazione di Dio. Milão, Fabbri, 1997, p. 65; trad. ital. de De contemplando Deo, 1121-1124).
Esperar, portanto, não significa esperar “algo” de Deus, mas o próprio Deus. Pelo fato de nossa natureza ser desejo do Infinito, o próprio Deus é o único capaz de saciar o desejo.
Isso é muito bem expresso por Santo Agostinho: “Seja o Senhor Deus a tua esperança; não esperes alguma coisa do Senhor teu Deus, mas seja o próprio Senhor teu Deus a tua esperança. Muitos [...] esperam de Deus algo além d’Ele; mas tu, busca o próprio Senhor teu Deus; [...] esquecendo-te das outras coisas, lembra-te d’Ele; deixando tudo para trás, lança-te para Ele. [...] Será Ele o teu amor” (Enarrationes in Psalmos, 39, 7-8).
A forma da resposta ao desejo do homem é o próprio Cristo. Cristo é a única esperança de realização de nossa afetividade. Só Ele, só Ele é capaz de saciar, de satisfazer realmente a afetividade.
Nada mais é capaz de nos satisfazer realmente. Por isso, a esperança é a realização da afeição: só Ele é capaz de satisfazer, de realizar realmente a afeição. Todos os homens, assim, ardem de desejo; mas como é difícil encontrar alguém que diga: “A minh’alma tem sede de vós” (Sl 63,2)!
Cristo, a Presença reconhecida pela fé, é o único fundamento razoável da esperança. Sem Ele, a vida do homem carece de um fundamento no qual se apoiar.
Afinal – como confirma Santo Tomás de Aquino –, “a vida do homem consiste no afeto que principalmente o sustenta e no qual encontra sua maior satisfação” (“Secunda secundae”. In: Summa Theologiae, q. 179, art. 1). A satisfação está na afeição a Cristo, a satisfação é Cristo.

(traduzido por Durval Cordas)