Algo que vem antes
Página UmNotas das palavras de Luigi Giussani na Assembléia de Responsáveis de Comunhão e Libertação; janeiro de 1993
A “Página Um” deste mês é constituída por uma palestra de Dom Giussani de 1993, publicada em português na época pela revista 30Dias, em sua edição de outubro de 1993 e no suplemento É, se opera, de junho de 1994. É uma preocupação fundamental de método, justamente, que nos leva a retomar este texto. Numa passagem crucial de um encontro realizado em Milão (ver Passos de novembro), padre Julián Carrón disse: “Esse é o desafio que temos diante de nós. A capacidade de obediência é dar precedência àquilo que vemos acontecer bem diante dos nossos olhos, a esse ‘Algo que vem antes’ de que Dom Giussani nos lembrava constantemente, respondendo a um risco que está sempre à espreita, que é o de trocar de método”. No mesmo período, retomando outra vez o texto de Dom Giussani numa conversa com um grupo de responsáveis de CL, Carrón reiterava: “Todas essas coisas esclarecem o que está em jogo para nós neste momento: ou deixamos tudo ser determinado por esse ‘algo que vem antes’ que acontece, e isso gera todo o resto, até mesmo a comunhão, ou, do contrário, introduzimos inexoravelmente uma outra coisa; não por má-fé, mas porque é inevitável. Desde que me dei conta disso, só de pensar me arrepio, pois estamos numa encruzilhada, no ponto decisivo da questão. Devemos dar a nós mesmos todo o tempo de que precisarmos para nos ajudar a entender esse problema até o fundo”. Sendo assim, boa leitura. E bom trabalho.
Gostaria agora de apontar brevemente os fatores determinantes e constitutivos de um “movimento”. O primeiro fator constitutivo de um movimento é o deparar-se da pessoa com uma diversidade humana, com uma realidade humana diferente.
O movimento é a dilatação de um acontecimento, do acontecimento de Cristo. Mas como é que esse acontecimento se dilata? Ou seja, qual é o fenômeno inicial, original, pelo qual determinadas pessoas ficam impressionadas e atraídas e se unem? É uma catequese (aquilo a que nós chamamos “Escola de Comunidade”)? Não, toda e qualquer catequese vem depois, é instrumento de desenvolvimento de algo que vem antes.
A forma como o movimento – o acontecimento cristão – se torna presente é o fato de nos depararmos com uma diversidade humana, com uma realidade humana diferente, que nos toca e nos atrai porque – de maneira obscura, confusa, ou de maneira clara – corresponde a uma espera constitutiva do nosso ser, às exigências originais do coração humano.
O acontecimento de Cristo se faz presente “hoje” num fenômeno de humanidade diferente: um homem se depara com esse fenômeno e reconhece aí um pressentimento novo de vida, algo que aumenta sua possibilidade de certeza, de positividade, de esperança e de utilidade na vida, e que o move a seguir.
Jesus Cristo, esse homem de dois mil anos atrás, se encerra, se torna presente, sob a tenda, sob o aspecto de uma humanidade diferente. O encontro, o impacto, se dá com uma humanidade diferente, que nos toca porque corresponde mais às exigências estruturais do coração que qualquer forma que possa assumir nosso pensamento ou nossa imaginação: nós não esperávamos uma coisa dessas, nunca sequer teríamos sonhado com isso, era impossível, é algo que não pode ser encontrado em outro lugar qualquer. A diversidade humana em que Cristo se torna presente está, propriamente, na maior correspondência, na impensável e impensada maior correspondência dessa humanidade com que nos deparamos às exigências do coração – às exigências da razão.
Esse deparar-se da pessoa com uma diversidade humana é algo extremamente simples, absolutamente elementar, que vem antes de tudo, de qualquer catequese, reflexão ou desenvolvimento: é algo que não precisa ser explicado, mas tão-somente visto, interceptado, que suscita um maravilhamento, desperta uma emoção, constitui um chamado, move a seguir, por sua correspondência à espera estrutural do coração. “Pois, na verdade”, como diz o cardeal Ratzinger, “nós só podemos conhecer aquilo com o qual se dá em nós uma correspondência” (Il Sabato, 30.1.93). O critério da verdade está na correspondência.
Deparar-se com uma presença de humanidade diferente vem antes não apenas no início, mas em cada um dos momentos que se seguem ao início: um ano ou vinte anos depois. O fenômeno inicial – o impacto com uma diversidade humana, o maravilhamento que nasce desse impacto – está destinado a ser o fenômeno inicial e original de qualquer momento do desenvolvimento. Pois não se dá nenhum desenvolvimento se esse impacto inicial não se repete, ou seja, se o acontecimento não continua a ser contemporâneo. Ou o impacto se renova ou nada progride, e logo a pessoa teoriza o acontecimento que ocorreu, e tateia em busca de pontos de apoio que substituam Aquilo que realmente está na origem da diversidade. O fator que está na origem é sempre o impacto com uma realidade humana diversa. Portanto, se o que aconteceu no início não volta a acontecer e se renova, não se realiza verdadeira continuidade: se a pessoa não vive agora o impacto com uma realidade humana nova, não entende o que lhe aconteceu antes. Só se o acontecimento reacontece agora é que o acontecimento inicial se esclarece e se aprofunda e, assim, se estabelece uma continuidade, um desenvolvimento.
Esse primeiro fator aponta para o fato de que “tudo é graça”. Deparar com uma realidade humana nova é uma graça, é sempre uma graça – do contrário, se transforma na descoberta procurada dos próprios pensamentos, ou na afirmação presunçosa das próprias capacidades críticas. A diversidade que notamos, a origem da diversidade humana com a qual nos deparamos, é gratuidade absoluta. O acontecimento inicial só prossegue se partimos continuamente do fato de nos depararmos com uma realidade humana nova: “Buscai todos os dias o rosto dos santos e extraí conforto de seus discursos”, dizia o convite contido num dos documentos da cristandade primitiva, a Didaquê. A continuidade com o que aconteceu no início só se realiza, portanto, mediante a graça de um impacto sempre novo e maravilhado, como se fosse a primeira vez. Do contrário, em lugar desse maravilhamento dominam os pensamentos que nossa evolução cultural nos torna capazes de organizar, as críticas que nossa sensibilidade formula ao que vivemos e ao que vemos as outras pessoas viverem, a alternativa que pretenderíamos impor, etc.
O impacto com uma diversidade humana é fundamental também eticamente. A percepção desse impacto exige a atitude original com que o Criador nos faz, ou seja, a atitude da criança que se abandona e segue: “Senhor, meu coração não é orgulhoso, nem se eleva arrogante o meu olhar; não ando à procura de grandezas, nem tenho pretensões ambiciosas! Fiz calar e sossegar a minha alma; ela está em grande paz dentro de mim, como a criança bem tranqüila, amamentada no regaço acolhedor de sua mãe” (Salmo 131). Para poder admitir esse fenômeno de diversidade humana, é necessário o olhar da criança: uma humildade, uma disponibilidade, uma simplicidade de coração, uma pobreza de espírito que alguns adultos, mesmo aqueles a quem já aconteceu o primeiro impacto, podem ter perdido. Quando isso ocorre, o acontecimento original, que deu início (neles) à memória, transforma-se num fato do passado, permanece apenas como uma “devota lembrança”. Ao passo que, com essa simplicidade ou disponibilidade, um homem pode até ter errado durante anos, mas consegue retomar melhor que alguém que foi impávido e não teve de que ser repreendido.
É nessa “pobreza de espírito” e “simplicidade de coração” que se aplica a liberdade humana. Como dissemos em Passos de experiência cristã: “Também na experiência cristã, de forma máxima nela, fica claro como em uma autêntica experiência são empenhadas a autoconsciência e a capacidade crítica (capacidade de verificação!) do homem, e como uma experiência autêntica está bem longe de se identificar com uma impressão que se teve, ou de reduzir-se a uma repercussão sentimental. É nessa ‘verificação’ que, na experiência cristã, o mistério da iniciativa divina valoriza existencialmente a ‘razão’ do homem. É nessa ‘verificação’ que se demonstra a ‘liberdade’ humana: pois o registro e o reconhecimento da correspondência exaltante entre o mistério presente e o próprio dinamismo de homem não podem acontecer senão na medida em que está presente e viva a aceitação da própria dependência fundamental, do essencial ‘ser feitos’, na qual consiste a simplicidade, a ‘pureza de coração’, a ‘pobreza em espírito’. Todo o drama da liberdade está nessa ‘pobreza em espírito’: e é um drama tão profundo que acontece costumeiramente quase sem que o homem se dê conta” (a obra se encontra hoje publicada em Giussani, L., O caminho para a verdade é uma experiência, São Paulo, Companhia Ilimitada, 2006, p. 185; nde.).
Portanto, alguém que, tocado por uma diversidade, partisse em busca de seu destino procurando ele mesmo “fazer” o seu caminho, perderia tudo: a pessoa deve seguir. Essa presença humana diferente com a qual a pessoa se deparou é um outro em relação a ela, ao qual ela precisa obedecer. Mediante um impacto sempre novo, seguindo e obedecendo, se estabelece uma continuidade com o primeiro encontro.
Eu gostaria de dar um exemplo a esse respeito. Formulemos a hipótese de que se reúnam hoje algumas pessoas que já viveram a experiência de que acabamos de falar e, tendo a lembrança impressionante de um acontecimento pelo qual foram tocadas – que lhes fez bem, que até qualificou sua vida –, queiram retomá-lo, preenchendo uma “descontinuidade” que se foi criando ao longo dos anos. O motivo pelo qual essas pessoas ainda se sentem amigas é uma experiência do passado, um fato que aconteceu, mas que, no presente – como dizíamos –, se transformou numa “devota lembrança”. Ora, como é que elas podem restabelecer uma continuidade com o acontecimento inicial pelo qual foram tomadas? Se, por exemplo, elas dissessem: “Vamos nos juntar para formar um grupo de catequese”, ou “para uma nova iniciativa política”, ou, ainda, “para desenvolver uma atividade caritativa”, “para criar uma obra”, etc., nenhuma dessas respostas seria adequada para vencer a descontinuidade. É necessário “algo que vem antes”, algo do qual todas essas coisas são apenas instrumento de desenvolvimento. Em outras palavras, é preciso reacontecer aquilo que lhes aconteceu no início; não “como” aconteceu no início, mas “o que” aconteceu no início: o impacto com uma diversidade humana, em que o mesmo acontecimento que as moveu na origem se renova. É em torno disso que essas pessoas se unem e, seguindo alguém, se lembram do que aconteceu no início. E todos os principais fatores da experiência que viveram no passado vêm à tona outra vez, mais maduros e mais claros. Na renovação do primeiro impacto – e, portanto, da surpresa pela correspondência entre uma presença humana diferente e as exigências estruturais do coração –, a pessoa sente o reflexo do mesmo acontecimento que se deu dez ou vinte anos antes, na sala de aula do ensino médio ou em seu grupo na universidade.
Sem a presença dessa experiência – o encontro com uma realidade humana diferente –, qualquer “gancho” mediante o qual alguém tentasse retomar aquilo que foi interrompido não constituiria uma continuidade. A continuidade com “aquela época” só é restabelecida quando acontece outra vez, hoje, o mesmo acontecimento, o mesmo impacto. Dez ou vinte anos depois, a mesma experiência prossegue se a pessoa tem como ponto de partida o fato de se deparar, agora, com uma realidade nova, e se, “como a criança amamentada no regaço de sua mãe”, se abandona, segue, obedece. Pois essa diversidade não surge de sua imaginação ou de seu pensamento, de sua habilidade dialética ou de sua obstinação, de tudo aquilo, enfim, que a manteve distante durante tantos anos: é a esse algo que lhe é outro, irredutivelmente novo – um acontecimento –, que ela deve obedecer.
Nesta altura, podemos delinear o segundo fator.
No impacto que sempre se renova com uma presença de humanidade diferente, como é que a surpresa, a esperança e o pressentimento que nascem desse impacto e nos movem a seguir podem ser educados, “desenvolvidos”? O principal instrumento dessa educação é o que nós chamamos “Escola de Comunidade”; e é principal porque sistemático e coerente, e por isso explicativo e unificador. A “Escola de Comunidade” é o instrumento de desenvolvimento – como consciência, como afeição e como instigação que nos mobiliza na maneira como empregamos os relacionamentos – desse “algo que vem antes”, da experiência do encontro com uma realidade humana diferente.
No desenvolvimento do trabalho implicado pela “Escola de Comunidade”, o aspecto essencial, portanto, é dar a si mesmo a “razão” das palavras que são usadas. E “razão” significa: experiência da correspondência entre a realidade com a qual nos deparamos e as exigências estruturais do coração.
Nesse sentido, então, o aspecto primordialmente importante da “Escola de Comunidade” é alguém que “ensine”: alguém – ou algumas pessoas – em quem o impacto inicial se renove e se dilate, oferecendo-se como ponto de partida para que a primeira surpresa se repita nos outros. É preciso que quem guia a “Escola de Comunidade” comunique uma experiência na qual se renove o maravilhamento inicial, e não, em vez disso, exerça um papel ou uma “tarefa”. Não pode ser comunicação de uma experiência uma postura que parte de um conhecimento de si mesmo como papel, que é motivada por uma visão de si mesmo como domínio e superioridade, com a pretensão de ensinar. Pois só o Espírito de Deus ensina: é o Espírito que gera o primeiro sobressalto e que o renova.
Alguém que, guiando a “Escola de Comunidade”, comunica uma experiência na qual reacontece a surpresa inicial desenvolve essa comunicação dando razão das palavras que são usadas. Dar razão das palavras que são usadas significa comunicar a experiência da correspondência entre o acontecimento de uma Presença e o que o coração originalmente espera, com a luz e o calor que essas palavras projetam e oferecem. Assim, o fato de dar razão de cada palavra faz “passar de luz em luz”, como diz São Paulo, introduz à descoberta cada vez mais clara da verdade, pois cada palavra usada esclarece uma resposta a uma necessidade do coração que está em busca de seu destino.
Reaparece, aqui, a pobreza de espírito implicada pelo primeiro fator. Realmente, sem pobreza de espírito não ouvimos o que nos é comunicado: prevalece a objeção dos pensamentos de sempre, aquilo a que estamos mais apegados ou que pretendemos. É por isso que diziam ao cego de nascença: “Mas o que você quer aprender de um ignorante que não estudou a lei!” – que não estudou psicologia, filosofia e teologia, diríamos hoje. No entanto, quem segue e obedece se desenvolve, e, quanto mais segue, mais deseja seguir.
Há um corolário a esse segundo fator. A melhor posição para podermos entender o que nos é dito, paradoxalmente, é a paixão por comunicá-lo a outras pessoas – a paixão por comunicar a outras pessoas aquilo que nos é dado experimentar. Um exemplo simples e bonito disso é uma carta escrita por um amigo nosso do Canadá. Nessa carta, ele conta que no ano passado um jovem médico, chamado Mark, uma pessoa intensa e dramática, cheia de questionamentos e de dúvidas, entrou na pequena comunidade do Movimento de Montreal. Depois de um ano de convivência atribulado, “era como se ele nunca tivesse aderido”, escreve John, o autor da carta. No final do ano, Mark recebeu um convite para um importante estágio de dois anos na Universidade de Buffalo. “Não vou”, foi sua resposta imediata. “Por que não vai?”, perguntou John. “Se eu aceitasse, teria de abandonar vocês. E eu não posso abandoná-los.” Mas aí John lhe sugeriu: “Aceite! Vá para Buffalo e procure comunicar aos outros aquilo com que você se deparou aqui”. Ele aceitou, e depois de poucos meses viu-se cercado por mais pessoas do que as que tinha deixado em Montreal. Mas isso não é tudo. Dois meses depois de sua partida, uma moça da comunidade de Montreal – uma enfermeira – foi contratada pelo hospital em que Mark havia trabalhado até viajar. Passaram-se poucos dias e a enfermeira-chefe do hospital foi procurá-la, apontou o dedo para ela e lhe disse: “Mark Basik!” E ela perguntou, surpresa: “O que você quer dizer com isso? É verdade, eu conheço o Mark Basik; ele é um dos meus amigos mais queridos...” “Eu já imaginava”, respondeu a enfermeira-chefe. “Você e o Mark fazem as coisas da mesma maneira.” Essa mulher se deparou com um fenômeno de humanidade diferente, ou seja, aconteceu para ela o primeiro impacto.
Quis citar esse episódio sobretudo pela primeira parte, pois nele fica claro como, numa propensão missionária, aquilo que havia sido comunicado a esse jovem médico já não encontrou nele o monte de “mas”, “se” e “porém” que antes o deixariam todo enredado.
Chegamos, assim, ao terceiro fator, ao qual farei apenas uma breve menção.
O terceiro fator é, por assim dizer, “todo o resto”. Em outras palavras: é impossível que, da experiência que descrevi até aqui, não nasça um sujeito novo, um protagonismo novo no mundo, uma companhia empenhada na realidade de um modo diferente – ou seja, mais humana, mais correspondente à espera do coração –; é impossível não nascerem tentativas de partilha da necessidade emergente – gestos e iniciativas de caridade –, não surgir um grupo que queira renovar realmente a unidade dos católicos na política, com toda a paciência necessária para isso, não se criarem atividades novas para aqueles que não têm trabalho, etc. O acontecimento, cuja relação profunda com o coração é esclarecida pela “Escola de Comunidade”, torna-se inevitavelmente um sujeito que age no mundo. Daqui nasce a obra – a opus Dei –, pois a obra nada mais é que um eu em relação com o Ideal, um eu que, em sua relação com o Ideal, busca mobilizar a realidade de acordo com esse Ideal, qualquer que seja a situação em que se encontre: construindo uma família ou aderindo à vocação à virgindade, trabalhando ou visitando os idosos no asilo de seu bairro.
(traduzido por Durval Cordas)