Amor, dinâmica do Ser. Amizade, fruto extremo do Amor

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Notas da Palestra da abertura de Luigi Giussani aos exercícios Espirituais da Fraternidade de Comunhão e Libertação. Rímini, 3 de maio de 1996

Esta manhã, lendo o Corriere della Sera – como raramente me acontece, traindo, assim, a indicação que o meu caríssimo Reitor da Faculdade de Teologia de Venegono que me deu como conselho, quando fui ordenado padre: ler todos os dias o jornal –, eu notava a riqueza tanto da quantidade de nomes – conhecidos ou não – quanto da qualidade das pessoas citadas, e de repente me pareceu que o denominador comum de todas aquelas citações era este: cada uma daquelas pessoas – mais ou menos seriamente – identificava o problema que a sua vida tinha de enfrentar e servir com um pormenor fixado por ela ou a ela fixado pelas circunstâncias de trabalho; com um pormenor, portanto, escolhido como tal, ou então indicado pelas necessidades do seu trabalho, de qualquer tipo fosse este trabalho.
Se o denominador comum era um só – um pormenor, o problema da vida reduzido a um pormenor, selecionado entre toda a riqueza dos fatores que compõem o mistério do mundo ou o jogo do mundo –, nascia disto uma confusão de Babel, uma torre de Babel. Eu começava a comparar a resposta de um com a do outro... uma confusão de torre de Babel. E depois era como se cada um – tendo dito aquilo que tinha de dizer, tendo identificado o ponto sobre o qual queria se responsabilizar, tendo dito aquilo que tinha de dizer para responder a esse senso de responsabilidade –, fosse embora pelo seu caminho, mais solitário que em companhia.
Não sei bem entrar em detalhes sobre isto; nem me convém fazê-lo, por hora; voltaremos a falar este ano desta solidão melancólica e presunçosa, cínica, desesperada, ou pretensiosa diante de resultados que a história nunca leva, depois, a efeito.
E eu pensava em como Dante fala do divino – tal como nos foi dado ouvir, meditar, de tal forma que, de certo modo, é quase impossível nos desligarmos totalmente da atração desta claridade –, quando Dante, introduzindo ao Mistério, fala de "luz intelectual cheia de amor; amor de verdadeiro bem, cheio de letícia; letícia que transcende toda doçura" (Dante Alighhieri, Paraíso XXX, VV. 40-42).
Eu disse justamente "claridade". As palavras da terra, do presente, do passado, do futuro, como sentimentos, são lidas à luz do sol. Mas o que é que faz a diferença entre nós, que dizemos: "cremos", compartilhando com maior ou menor intensidade e fidelidade, mas compartilhando, aprovando o que diz Dante, e todos aqueles que vivem desta forma que se deduz pelo que escrevem no Corriere della Sera, e que eu hoje contava (dez, vinte, trinta, quarenta...)?
Talvez uma palavra diga tudo: para que se perceba tudo o que sugere a palavra de Dante, é exigida uma simplicidade; é necessária uma simplicidade, uma simplicidade de crianças. É o que diz Jesus no Evangelho: "Agradeço-Te, ó Pai, porque revelaste estas coisas aos simples e as mantiveste ocultas àqueles que crêem saber. Sim, ó Pai, assim foi do Teu agrado" (Cf. MT 11, 25-26).
Isto me faz lembrar uma passagem da liturgia ambrosiana: In simplicitate cordis mei laetus obtuli universa ("na simplicidade do meu coração Te dei tudo, reconheci que sou todo Teu"); ou uma outra frase dessa mesma liturgia: Notam faciam gloriam nominis mei in laetitia cordis eorum ("tornarei evidente a Minha presença pela letícia do coração deles").
Que imensa simplicidade pode expulsar a acusação de presunção de semelhante paz! Com efeito, a letícia é justamente um legado de Jesus: "Eu vos disse tudo o que disse para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena" (Cf. Jo 15, 11). Jesus fala em nada menos que alegria, poucas horas antes de ser feito prisioneiro e assassinado.
No grande discurso inteiramente redigido por João, nos últimos capítulos do seu Evangelho (Jo 14-17.), Jesus fala também de letícia. E São Paulo faz eco a esta urgência de letícia (Cf. Rm 12, 12; C1 1, 24; 2 Cor 6, 10.13, 11; F1 3, 1.4, 4; 1 Ts 5, 16.). A letícia só pode ser da por uma clareza, algo que parece claro ao coração, a que o coração pode com humildade, reconhecendo próprios limites; estes não se objeção a pensar, a ver, a sentir e fazer coisas que, sem esta companhia que provém de Cristo, é impossível encontrar em qualquer ou parte: é uma obra que excede mãos que a fazem, as mãos humanas que a realizam.
De fato o Cartaz de Páscoa desse ano parece, chamar a atenção pouco para estas coisas; nele aparece uma palavra que abre o horizonte para a compreensão do mistério de relacionamento com Deus: a esperança. "A esperança – diz o Cartaz é uma certeza do futuro, por causa de uma realidade presente". A certeza do futuro só pode encontrar em algo que está presente, que é visto, experimentado, encontrado ou pressentido no presente.
É um presente que coloca a tão possível esperança: letícia e alegria existem só na esperança. Por isso, é a presença de Cristo, tornada conhecida pela memória, que nos torna certos do futuro; é a presença de Cristo que pode ter um nexo coercivo com o futuro, impositivo com o futuro.
Hoje mesmo, chegaram às minhas mãos três cartas. Estas três cartas, que leio entre muitas outras, deixaram-me ainda mais pensativo a respeito desta impossibilidade para mundo, para a minha situação de homem – qualquer que seja ela – de ser verdadeiramente feliz ou, até mesmo, alegre, que é uma palavra sobre-humana: a palavra "alegria" não existe no vocabulário, no léxico homem. Por isto, a complicação é obscura, equívoca, evidentemente equívoca demasiadas vezes; de qualquer forma, em última instância uma complicação muitas vezes inútil no produto do pensamento e atitude que mantêm na sociedade aqueles senhores do Corriere de Le Será cujos nomes eu lia hoje.

A primeira carta nos vem do coração da Sibéria, de Novosibirsk, onde o pároco é um conhecido amigo nosso: padre Pezzi. “Caríssimo Padre Giussani, este tempo me parece vivo de uma dramaticidade nova, de um aspecto de dramaticidade novo: o fato de me dar conta do fluir da humanidade de Cristo nas minhas veias. O que é que dominava Cristo? Era a glória do Pai n'Ele, no Filho, que o Pai fosse conhecido, amado. E o que é que domina a minha humanidade? É a finalidade, é aquilo que sinto ser a finalidade da minha vida e do meu tempo e do mundo: a glória de Cristo. Isto é o mais verdadeiro que a mesquinhez das minhas traições, que continua a existir da mesma forma. Como isto acontecia na consciência do homem Cristo? Acontecia como relacionamento com o Pai, como consciência de ser o enviado do Pai, pelo qual ia para um lado e não para outro. E como pode acontecer para mim? Como consciência de um relacionamento gerativo real, concreto, objetivo, não decidido por mim: relacionamento que tenho com o Padre Massimo e a Fraternidade em que Deus me colocou, relacionamento que me abre e aproxima de você, do Carisma, e desta forma me abre ao horizonte da Igreja inteira e a Cristo. Nestes dias, rezarei para que as pessoas que participam destes exercícios da Fraternidade estejam contentes [laeta: contente], contentes de querer bem a Cristo desejosas de viver o impacto com a realidade de acordo com aquela finalidade que é a glória com Jesus Cristo na história. Seu, por graça do Senhor, padre Pezzi”.

Eis a segunda carta. “Caríssimo Padre Giussani, recebi há alguns dias a carta de Feliciane, na qual me é comunicada a minha designação como responsável regional da Fraternidade nesta região; e de bom grado respondo aceitando esta tarefa. Desejo comunicar-lhe apenas duas das muitíssimas coisas que o coração me sugere. A primeira: sou realmente grato por tê-lo encontrado. Sou-lhe grato por ter suscitado em mim e em tanto amigos uma fé tão viva e apaixonante, e porque você é sinal evidente da companhia de Deus na minha vida. Não poderia ter-me acontecido algo mais bonito, mais verdadeiro em toda a minha vida [mais simples do que isso “se more” (“Se morre”, num dialeto italiano)]. A segunda coisa: sou grato pela responsabilidade a que sou chamado, pois nestes anos o responder está se tornando lentamente a própria modalidade da minha vocação na família, no trabalho, no Movimento, no mundo. Peço ao Senhor que o mantenha entre nós ainda por muito tempo e que eu possa humildemente segui-lo, para que, olhando para você, ame cada vez mais a Cristo. Um abraço. Domenico".

Esta terceira carta é realmente simples: ''Querido papai, estou contente de que você pregue os Exercícios Espirituais com padre Giussani em Rímini, e espero ir eu também quando for grande como você. Você nos faz rezar o Glória a São Pampuri quando vamos à escola todas as manhãs. Você é mesmo um grande papai. Pedro" (de sete anos).

O sacrifício que fizemos vindo aqui – que para muitos é grandíssimo, mas para todos é grande –, o sacrifício que aceitamos é para que este trabalho dê frutos em nós, para aqueles que estão próximos a nós e para toda a Igreja, para a nossa pobre pátria e para o mundo, todo pobre; onde não existe Cristo existe uma pobreza que se vê bem, uma pobreza que toca as raízes do nosso eu humano – inteligência e afeição.
Peçamos a Deus, no início destes dias que cada um de nós tenha o espírito destes três amigos (um padre, um responsável da Fraternidade e um menino de sete anos), e nos dê a fé em Jesus e uma esperança viva para o nosso futuro, porque é esta esperança que nos faz agir hoje: o futuro parte do hoje, mas retorna antes de mais nada ao hoje, tornando-o denso e fascinante. Esperar... lembrem-se do que dizia o nosso Péguy: "Para esperar, é preciso ter recebido uma grande graça" (Charles Péguy, Il pórtico Del mistero della seconda virtù, Milão, Jaca Book, 1986, p. 167, cf. Litterae Communionis [CL] nº 8, março/ abril de 1988, pp. 28-31). Se não existe este presente de experiência de um grande dom, não se pode esperar de um futuro: todos avançam sem esperança, sem real esperança. E a grande graça que recebemos é que soubemos que Deus se tornou um de nós e está conosco. Por isto de pé
– peçamos o dom do Espírito Santo.

Ó vinde, Espírito Criador

O tema destes Exercícios Espirituais – esta é a minha breve mensagem desta noite – nunca foi enfrentado, propriamente como tema nunca foi colocado na primeira página (quem saberá por quê?). E a palavra que Cristo trouxe novamente ao mundo como realidade possível, que n'Ele é vivida como dedicação da vida e como sacrifício mortal, que o Pai exigiu d'Ele como condição para a salvação de todos os homens, para que a Sua piedade pelo homem se realizasse em um perdão universal, e em algo mais, como veremos. Mais do que o perdão? Sim, algo mais do que o perdão: a palavra que o vocabulário cristão usa é a palavra "misericórdia". Enquanto o perdão é uma realidade que quase matematicamente, a pessoa pode até reconstruir, quase sentindo a possibilidade de se aproximar dessa realidade – se a pessoa errou sete vezes, sete castigos e está tudo certo; sete penitências e está tudo certo –, a misericórdia não! Há algo que excede, há uma possibilidade de exceder até o fato de se ter razões adequadas para o perdão – ao menos tal como nos parece–, tanto que se tem a impressão de que Deus faz uma "injustiça" perdoando até aquilo.

O professor Lobkowicz – que é uma das personalidades leigas mais importantes, mas sobretudo mais fascinantes, por causa da sua fé e do seu espírito de sacrifício e do seu esforço para fazer com que a lgreja seja reconhecida em todo o mundo intelectual e político em que vive –, encontrando um grupinho de jovens do Movimento, em Eichstâtt, disse: "Rodando o mundo, eu me dei conta de que entre todos os movimentos vocês são os únicos para os quais a amizade é uma virtude" Virtude: a expressão da vida do homem em relação com o Destino.

Pois bem, a amizade é o tema destes Exercícios, enfrentado como uma abordagem inicial, como primeira aproximação que deverá se tornar o ponto de referência, o critério de referência para todas as Escolas de Comunidade, para todas as reuniões de Escola de Comunidade, para todas as reuniões da Fraternidade, para todas as reuniões das comunidades, para todas as discussões, porque a amizade exprime de forma suprema a grandeza do homem: a imitação de Deus, que é o homem, à qual o homem é chamado.
Com efeito, a natureza do ser, a natureza de tudo o que existe, de tudo o que é real, até da última, mesmo que pequenina, forma de vida, vem de Deus. A natureza do Ser, tal como nos é a apresentada Pelo Novo Testamento, a revelação de Jesus, o Mistério que faz todas as coisas, tal como se revelou a nós através do Filho de Deus feito homem,através de Jesus, a natureza do Ser é amor: Deus caritas est.
Se a natureza do Ser é amor, então a virtude suprema presente no homem, que é a criatura feita à Sua imagem e semelhança, será esta caritas, este amor.
"Disto todos saberão que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros" (Jo 13, 35). Neste sentido, justamente, o nosso grande menestrel cristão, personagem significativa do século XIII, Jacopone de Todi dizia aquela frase famosa: Amor, amor, grita todo o mundo; Amoré, amore, omne cosa conclama; todas as coisas gritam, podem gritar "amor", se passam através da consciência, inteligência e afeto, do homem. E o homem, todo homem, grita "amor, amor" a qualquer coisa que veja ou toque, de que se sirva, que respeite e conheça.
Mas o que é que "amizade" acrescenta à Palavra amor? Em que sentido é distinguível do amor? No sentido em que a amizade é um amor recíproco. Um amor recíproco: sem reciprocidade não existe amizade, então, é um cálculo? Em Primeiro lugar, não pode ser cálculo esta abolição da estranheza entre um homem e outro homem, quem quer que seja o outro. Quem quer que seja o outro! Não apenas seu filho, não apenas sua mãe, mas o homem que passa pela rua e vem sabe lá de onde.
É abolida a estranheza. Estou falando daquilo que é o milagre humanamente mais fascinante e persuasivo do fato cristão, da Igreja de Deus, para quem a vive, para quem busca vivê-la, para quem pede ao Espírito o dom de vivê-la.
A abolição da estranheza não é cálculo, justamente porque é caridade, ou seja, a natureza expressa de Deus; ela coincide com a expressão de Deus. Se a atividade de Deus é governada total, exaustivamente por esta palavra, ela, usada de forma tão radical, quer dizer imediatamente amor, sem nenhum tipo de cálculo. Sem nenhum tipo de cálculo, sem nenhum interesse: puro, amor puro, gratuidade. Eis por que se chama caritas: charis é uma palavra grega que quer dizer gratuidade, que indica gratuidade total, absoluta, sem nenhum cálculo: puro nu e cru amor.
E isto já faz uma diferença terrível na amizade, se ela deve ser o dar-se recíproco, amor totalmente gratuito. Pode-se entender isto por certos instantes supremos do relacionamento entre um pai e um filho, entre um homem e a mulher por quem este estiver apaixonado, no ímpeto de generosidade em circunstâncias absolutamente excepcionais para com o próprio irmão; mas, normalmente, o amor tem como que um retorno: um fascínio, uma ajuda; não sei, cada um pode refletir sobre si mesmo.
Para esclarecer bem o que quero dizer, sinto não conseguir encontrar uma expressão melhor do que a que está contida nas Poesias de Ada Negri; naquela poesia – precisamente – intitulada Minha juventude, que começa assim: "Não te perdi. Permaneceste no fundo/ do ser. És tu, mas uma outra és:/ sem folhas nem flor, sem o luzente/ riso que tinhas naquele tempo que não volta,/ sem aquele canto. Uma outra és, mais bela [ela escreve isto aos setenta anos!]./ Amas, e não pensas em ser amada: por cada flor que desabrocha ou fruto que se avermelha/ ou criança que nasce, ao Deus dos campos/ e das estirpes graças no teu coração" (Ada Negri, “Mia giovinezza”, im Mia giovinezza, Milão Rizzoli, 1995, p.78, cf. Litterae Communionis, nº 46, julho/ agosto de 1995, PP. 44-48). Desde quando eu tinha vinte anos, e li esta poesia pela primeira vez, até agora não tenho nenhuma vergonha de lê-la relê-la, identificando totalmente uma mensagem assim tão pura com a mensagem de Cristo. Você ama a flor não porque a colhe e a cheira, mas Porque existe (o Ser, o Mistério do Ser, do qual participa aquela flor), ama o fruto não porque o morde, mas porque existe. Mas sobretudo a outra comparação é extremamente clara e convincente: você ama a criança não porque é sua, mas porque existe. Portanto, sem interesse, sem cálculo, sem nem mesmo o pequeno prazer, colocado em questão, de ver um belo menino de cabelo encaracolado.
Mas não é apenas esta impossibilidade de um interesse próprio, esta abolição do próprio interesse: é que na criança que se ama porque existe – porque existe! –, como no fruto, como na flor, como em qualquer coisa que se ama porque existe, é o Mistério que se mostra. E, realmente, a mãe diz: "Que será desta criança?", e de todas as outras coisas o homem diz: "De que é feita esta realidade, tão precisa e tão fugidia justamente na sua raiz última?". Pois essa realidade não se faz por si só; não há flor alguma que se faça por si só, não há nenhuma árvore que se faça por si só; não há nenhuma criatura que se faça por si só, e não há homem algum que se faça por si só. O Mistério, que está por trás de cada coisa, é como a perspectiva inexorável de cada coisa que se vê.

Por isto, há uma conseqüência muito grande para a nossa vida moral. Na semana passada, na reunião do Conselho da Presidência de CL, nós nos perguntamos: "Podemos retomar as características do nosso método, do método implícito no nosso carisma?". Respondi que a primeira implicação metodológica do nosso carisma é ter aprendido que a aproximação de qualquer coisa – pessoa, ainda mais – deve partir de uma hipótese positiva.
O fato de que Deus seja amor, de que a natureza de Deus seja amor, quer dizer que o objetivo de tudo o que existe é absolutamente positivo, absolutamente positivo!
No funeral de um homem que fez muitíssima caridade, e que morreu tragicamente eu dizia à esposa e aos filhos, durante a Missa: "Quanto bem fez este homem! E é certo que Deus não pode anular nem mesmo uma única boa obra (uma só!) feita pelo homem! Porque, se a natureza do Ser é amor, aquela única ação pode resgatar vidas inteiras".
Esta é a estranha questão que a palavra misericórdia deixa entrar no âmbito da palavra perdão, como uma resposta que a nós parece "irracional", injusta ou irracional, porque tem razões – nos parece – suficientes, não pode ter razões suficientes. No entanto, o Mistério supera isto! Não sei de que maneira, mas supera. Talvez lhes possa ser útil esta citação do livro que publicamos pela editora Rizzoli, Kristin filha de Lavrans. Constatei que até agora, ninguém compreende a sua linha secreta, que é esta: ''O último pensamento claro [está escrito nas últimas páginas, quando Kristin está para morrer] que teve foi que teve estaria morta antes que aqueles sinais [os sinais feitos misteriosamente por Deus em sua mão] tivessem desaparecido, e isto lhe deu um grande prazer. Era um milagre, algo incompressível, mas uma coisa certa: Deus, ela sabia tinha feito um pacto com o qual a ligava a si eternamente; independentemente da sua vontade [é isto que chamei "aparência irracional ou até injusta"] dos seus pensamentos terrenos, este amor sempre havia existido nela [é o "sim" de São Pedro], sempre havia agido como o sol sobre a terra, que no final dá os seus frutos. Ninguém iria poder destruir estes frutos, nem o fogo dos desejos carnais, nem o orgulho, nem a ira louca. Fora serva de Deus, ainda que rebelde, relutante, infiel no coração, com uma oração falsa nos lábios; uma serva desajeitada, impaciente diante das dificuldades, indecisa, mas Deus havia desejado mantê-la assim mesmo a seu serviço" (Sigrid Undset, Kristin figlia di lavrans, Milão, Rizzoli, 1996, p.691).
Por isto no ano passado lemos no livro da Bíblia intitulado da Sabedoria aquele prólogo famoso: “Deus não criou a morte, nem se alegra com a ruína dos vivos. Ele criou tudo para a existência; as criaturas do mundo são boas, nelas não há veneno de morte, nem os infernos reinam sobre a terra. porque a justiça de Deus é imortal. Mas o homem busca a morte” (Cf. Sb 1, 13-16).
Uma positividade total na vida deve guiar o espírito do cristão, qualquer que seja a condição em que se encontre, qualquer remorso tenha, qualquer injustiça sinta pesar sobre si, qualquer escuridão o circunde, qualquer inimizade, qualquer morte o assalte, porque Deus, que fez todos os seres, é pelo bem, Deus é a hipótese positiva sobre tudo o que o homem vive. Ainda que esta positividade pareça às vezes ser vencida, em nós, pelas tempestades da vida, e pareça quase dar lugar a uma capacidade que o homem tem de hostilidade, de ódio contra a fidelidade de Deus. Há alguns dias, lemos no breviário, no capítulo 66 de Isaías: "Alegrai-vos com Sião [que e a comunidade da Igreja], e exultai por sua causa todos vós que a amais; tomai parte no seu júbilo todos vós que a lamentais! Podereis alimentar-vos, saciar-vos com fartura com seu leite que consola; podereis deliciar-vos nas riquezas de sua glória. Pois assim fala o Senhor: ‘Vou fazer correr a paz para ela como um rio, e as riquezas das nações qual torrente a transbordar. Vós sereis amamentados e ao colo carregados e afagados com carícias; como a mãe consola o filho, em Sião vou consolar-vos.Tudo isso vós vereis e os vossos corações de alegria pulsarão; vossos membros, como plantas, tomarão novo vigor [os vossos ossos de morto, como plantas, tomarão novo vigor]" (Is 66, 10- 14a).
E o Salmo 77, que lemos hoje, diz: "Com tudo isso, eles pecaram novamente, não deram fé às maravilhas do Senhor. Foram seus dias consumidos como um sopro, e seus anos bem depressa eles encurtaram. Quando os feria, eles então o procuravam, convertiam-se correndo para ele: recordavam que o Senhor é sua rocha e que Deus, seu Redentor, é o Deus Altíssimo. Mas apenas o honravam com seus lábios e mentiam ao Senhor com suas línguas; seus corações enganadores eram falsos e, infiéis, eles rompiam a Aliança. Mas o Senhor, sempre benigno compassivo, não os matava e perdoava seu pecado; quantas vezes dominou a sua ira e não deu largas à vazão do seu furor. Recordava-se que eles eram carne, sopro que passa e jamais torna a voltar" (S1 77, 39).
Um dos maiores pecados que o homem pode cometer, portanto, um pecado diabólico (o diabolismo pode penetrar em nós retornando com ênfase depois da tentativa original), qualquer que seja o motivo pelo qual o cometa – por causa dos seus pecados, por causa da impossibilidade de fazer o bem que deseja, de reparar as brechas feitas pelo tempo e pelas circunstâncias nas paredes das suas construções –, é perder a confiança em Deus. Deus, como misericórdia, tudo vence. Certamente, é preciso não esquecer a essência da questão: por mais que tivesse cometido pecados, Kristin aderira, Deus a havia escolhido e ela respondera – "Eu aderi, eu quis aderir".
O cristão, para viver o amor, não precisa fazer somas e adições de virtude e de perfeição: deve – não obstante aquilo que é – aceitar o desígnio de um Outro, deve estar disponível ao querer de Deus. Esta é a sua vocação, como me dizia em um bilhete uma amiga nossa: "Caro abade – ela me chama "o seu abade" –, hoje descobri uma coisa: a vocação é a estrela que brilha na noite escura das circunstâncias".

Mas é preciso que passemos a uma segunda observação. Se o amor é o que salva o homem, fazendo-o participar, na misericórdia, da própria natureza de Deus, a vida do homem é, mesmo assim, breve, é como um sopro: "Eles eram carne, sopro que passa e jamais torna a voltar" (S1 77, 39). Assim, cada um de nós, quando é "comprimido" pela imponência evidente da pequenez das suas coisas, o que faz? Na vida, o que eu faço? Que posso fazer? Como sou útil? A quem sou realmente útil? E assim todos duvidamos até dos melhores gestos.
No entanto, é o contrário! Se Deus faz todas as coisas para o bem sendo a sua natureza amor – todo instante que o homem vive é grandíssimo: é relação com o Infinito, todo instante é relação é grandíssimo, como a morte de Cristo na cruz, como o instante que a mãe que dá à luz, como o instante da mulher que lava os pratos, como o instante do homem que vai para o seu trabalho, todos os dias, de manhã, as oito, oito e meia.
Se não se vive a fé no Deus bom que fez todas as coisas, no Deus amoroso que fez todas as coisas, então tudo se apequena. Como sofremos tantas vezes, aliás, todos os dias, como somos tentados por "tudo se apequena' negativamente não vale a pena, e tudo se perde. Pelo contrário, no mistério do amor, na grande Presença do mistério amor, tudo é grande! "Mamãe, para você tudo é grande!" eu ouvi uma menininha dizer a sua mãe, que ia à Missa em Tradate, nos primeiros meses do meu sacerdócio, enquanto eu passava veloz de bicicleta: “Mamãe, para você tudo é grande! Freei para aderir, eu também, à frase, mas já estava longe, levado para longe pela velocidade da bicicleta.
"Morte, onde está a tua vitória? diz São Paulo” (1 Cor 15, 55). Assim, São Francisco quer morrer sobre a terra nua: que verme é aquele estendido na terra? Não, é São Francisco! Nome pelo qual o céu e terra ardem de luz e de afeição.

Em terceiro lugar, todo homem é objeto da amizade, todo homem é objeto da amizade, parte da amizade de Deus que se revela nele. Não apenas todo instante, mas todo homem é digno daquele amor em que Deus nos fez, criando-nos todo homem! Todo homem: não é possível aproximar-se de um homem, se não for com esta consciência. Mesmo de manhã, quando você pega o trem e o vagão está cheio, e, se você é cristão, fez as orações da manhã, pode pensar que todas aquelas pessoas que você não conhece, não só não lhe são estranhas, mas você entende deve dar a vida por elas, como
Cristo. "Senhor, ofereço-te o meu dia e a minha vida por estas pessoas”.
Mas que quer dizer oferecê-las por? Para que tenham dinheiro? Para que ganhem na loteria? Se Deus quiser estas circunstâncias, muito bem, que aconteçam; se Deus as quiser: não as quis para mim, pode acontecer que não as queira nem para eles. É pelo seu destino! Quantas vezes tivemos de refletir sobre isto: olhar para uma pessoa que dizemos amar sem pensar nunca na perspectiva do seu destino, no destino da criança diante dos olhos da mãe, da moça perto do moço que lhe quer bem, de qualquer um, eu dizia antes. Não conheço nenhum deles que estão no trem, mas não posso olhar para eles sem dizer: "Senhor, que destino terão? Faze com que tenham o destino da vida eterna conTigo ! Salva-os Jesus, como salvas a mim, como estou certo de que me salvas; pela tua misericórdia, não por aquilo que sou”.
Tácito, grande escritor de história romana, falando dos hebreus do seu tempo, dizia: “Eles são entre si incansavelmente leais e disponíveis, mas para com os outros ferozmente estranhos e hostis” (Tácito, Historiae V, 5.). Que isto não aconteça também conosco! Porque não é uma coisa a se dizer somente do Hebreus não mas é de se dizer de cada um de um de nós! Quantas vezes, quantas pessoas conhecemos e quantas vezes nos aproximamos delas como se fossem estranhas, e no entanto o seu destino pertencia ao nosso, porque o nosso era idêntico ao delas,e amá-las significava amar o seu destino.
Eu usei a palavra amizade, usei novamente a palavra amizade: Não pode existir amizade entre nós, não podemos nos dizer amigos, se não amamos o destino do outro acima de qualquer coisa, para além de qualquer interesse.
Mas, pelo contrário, constatamos estas rupturas na unidade, estas estranhezas, em grupos na mesma comunidade, na mesma paróquia, no mesmo movimento. E quando existe uma preferência, ela está bem ligada a um prazer, a uma instrumentalização, a um interesse.

Por isto, nunca ousamos enfrentar este tema, mas este ano será o critério com o qual – eu dizia antes – julgar tudo. Que esta estranheza, Senhor, não seja verdadeira entre nós, e que entre nós seja verdadeiro o amor em primeiro lugar, e portanto a amizade, o desejo recíproco, que é voto do destino bom – ou seja, Tu, o Destino final –, conforte e confirme todo relacionamento nosso e o torne capaz de qualquer espécie de generosidade.
Este tema será desenvolvido amanhã em duas palestras principais. Dou esta indicação porque quem fará a meditação amanhã, é pela primeira vez, um sacerdote do Movimento, mas não italiano, e sim espanhol: padre Garcia.
Eu havia dito que, se o Movimento é internacional, é preciso que os sacerdotes de qualquer nação ou país possam falar todos, porque os Exercícios da Fraternidade são o dia do retiro para todas as comunidades do mundo. “Padre Garcia, por exemplo...”, eu disse rindo, há algumas semanas, e ele, naturalmente, ficou vermelho e se esquivou. No dia seguinte, da Espanha, de Madri, chegou um telefonema: "Nós nos reunimos como centro do Movimento e estamos disponíveis ao que o Centro de todo o Movimento internacional decidir: cada um de nós está pronto".
Assim, amanhã padre Garcia fará as duas meditações: a primeira, com o título "A amizade como método de relacionamento entre Deus e o homem, entre Deus e a criatura", de manhã, e, à tarde, a segunda: "A amizade como fonte da verdadeira moralidade". Límpido e claro, terá somente um defeito: não falará na sua língua. Não é como eu, que fui trinta vezes à Espanha e todas as vezes, antes de falar, dizia: "Peço desculpas, porque não conheço o espanhol". Ele, ao contrário, vem e fala em italiano, por isso nós também sejamos mais atentos do que de costume, como gratidão a ele pela generosidade com que nos serve.
O que padre Garcia nos dirá amanhã deverá se tornar, diante do tema da Escola de Comunidade deste ano – Em busca do rosto do homem –, um ponto crucial, pois a origem do rosto humano é Deus; assim, o relacionamento de Deus conosco, e a grandeza do rosto humano, o esplendor do rosto humano, está na resposta positiva a Deus, na moralidade perseguida, desejada, pedida. De tal forma que venhamos a entender finalmente o verdadeiro sentido do provérbio que nos diziam quando éramos crianças: "Entre dizer e fazer, existe um mar no meio". Veremos que, com seriedade, teremos de trocar a palavra "mar" por aquele mar imenso de abandono e de nobreza de coração, de generosidade e de confiança, que se chama “pedir”. Nós descobriremos o pedir como início da verdadeira moralidade. Aqui está o segredo pelo qual a misericórdia pode perdoar até sem parecer respeitar razões ou justiças. O homem que pede, ainda que estivesse destruído pelo seu mal, o homem que pede é realmente filho de Deus. “Entre o dizer e o fazer tem o pedido no meio", assim indiquei uma coisa grande, a coisa grande da qual nos aproximaremos amanhã, o mistério da bondade de Deus. Mas nos aproximaremos deste mistério durante as meditações sobre a Escola de Comunidade ao longo de todo este ano.