Basta olhar o que acontece

Página Um
Julián Carrón

Anotações da assembleia de Julián Carrón com os universitários de Comunhão e Libertação de Bolonha (Itália), 7 de março de 2012

Nick: Há pouco mais de um mês, ao introduzir o trabalho da Escola de Comunidade sobre o livro de Dom Giussani Na origem da pretensão cristã, Julián releu esta frase de Dom Giussani: “O acontecimento não identifica somente uma coisa que aconteceu e com a qual tudo teve início, mas é aquilo que desperta o presente, define o presente, dá conteúdo ao presente, torna possível o presente. O que se sabe ou o que se tem converte-se em experiência se aquilo que se sabe ou se tem é algo que nos é dado agora: há uma mão que no-lo oferece agora, há um rosto que vem avançando agora, há sangue que se derrama agora, há uma ressurreição que tem lugar agora. Fora deste “agora” não existe nada! O nosso eu não pode ser movido, comovido, ou seja, transformado, a não ser por uma contemporaneidade: um acontecimento. Cristo é algo que me acontece agora” (L. Giussani, Cartaz de Páscoa 2011).

Colocação: Quando conheci o Movimento, durante o ensino médio, depois de pouco tempo fui totalmente tomado e conquistado pelo entusiasmo e pela seriedade, que eu nunca vira antes, que aqueles jovens tinham, os quais depois se tornaram meus amigos. Durante essa experiência, a relação com os meus pais mudou bastante. Se no início ficavam irritados com as exigências e perguntas estranhas que eu lhes colocava, há algum tempo começaram a perceber algo de novo e diferente em mim, a perceber minha mudança. Mas, como você disse dia 25 de janeiro, o homem possui a estrutura para reconhecer a excepcionalidade de Cristo, mas essa estrutura fica frequentemente sepultada pela influência da sociedade e da história, que acabam por reduzir as nossas exigências originais. Portanto, embora percebendo alguma coisa, não pediam que acontecesse também com eles. Desde que vim para Bolonha, paradoxalmente agora que já não vivo com eles, deram um passo: as perguntas que inicialmente consideravam absurdas agora são eles que as colocam a mim, querem saber cada vez mais de mim, querem saber o que faço, perceberam que não conheciam uma parte de mim, da novidade que, como você dizia, se verifica não numa diferença, mas no apego àquilo que desejamos. E a coisa mais bela e libertadora é que a mudança deles não é fruto de um trabalho meu de convencimento, mas de uma abertura original do coração. Há duas semanas, o meu pai foi operado e ainda hoje os problemas de saúde não terminaram. No início, eu pedia simplesmente que tudo corresse bem e se resolvesse da melhor forma possível; nos dias de hospital, porém, ele bombardeava-me de perguntas e contava tudo o que se ia passando com ele: que não é dono da sua vida. Ao deparar-me com uma humanidade tão diferente, o meu pedido também mudou, completou-se: “Tu que estás dominando cada fibra do seu ser, peço que me domines também assim, me tornes atento às coisas, como ele”. É mesmo verdade que nada é tão inacreditável como a resposta a uma pergunta que não se coloca! A partir daí, mudei também de atitude diante do estudo e dos meus colegas de apartamento. O meu eu foi transformado por uma contemporaneidade, por um acontecimento. Cristo é algo que me acontece agora.
Julián Carrón: Basta olhar o que acontece. Porque o nosso ponto de partida – foi o que Dom Giussani sempre nos ensinou – é surpreender algo de novo que acontece agora. Bastaria essa simplicidade que a pessoa vê em si, que pode ver nos seus pais, para se lançar na estrada. Mas qual é a origem disso? Quem está em ação? É em relação a essa pergunta que você deve ser sério, porque – como eu disse recentemente – me impressiona muitíssimo o episódio dos discípulos regressando da missão: têm diante de si Jesus – ao passo que para nós Ele pode parecer abstrato –, o têm diante deles, carnalmente presente. Mas isso não basta para se darem conta dEle, da Sua diversidade, tanto é verdade que estão cativados mais pelo sucesso, pelos milagres operados, do que por Ele. Como é que Jesus manifesta amizade pelos seus amigos? Ele também poderia ter se unido à festa deles; Ele também poderia ter manifestado satisfação, foi Ele quem os encarregou dessa missão, não? Mas como é que Jesus se mostrou amigo dos discípulos? Como eu serei seu amigo diante do que você acabou de contar? Convidando você – como fez Jesus, a olhar mais longe: “Mas vocês estão percebendo? Não se alegrem somente pelo que aconteceu, alegrem-se pelo fato de que tudo isso é apenas o início daquilo a que os quero levar; e a coisa mais importante daquilo a que os quero levar é que vocês foram escolhidos, é que vocês são Meus amigos”. Porque se tudo o que contamos, tudo o que vemos, tudo aquilo em que surpreendemos uma novidade não nos leva a crescer na amizade com Cristo, então não nos serve para nos levantarmos da cama amanhã cedo. Eu não posso oferecer contribuição melhor do que recolocar perante vocês e perante mim próprio o modo como Jesus é amigo dos Seus amigos. A única coisa que responde a esta necessidade é uma relação! Se não crescemos na relação com Ele, na relação com os pais, as coisas que acontecem não fazem vir à tona a intensidade, o incremento, a profundidade. Jesus quer mesmo isso para nós. É preciso entender que jogamos tudo neste incremento. Por isso é que, no final da apresentação de Na origem da pretensão cristã, dissemos que não se trata sequer da imagem da mudança, mas de uma relação que cresce. É o desafio deste ano.

Colocação: Ontem, com alguns amigos, estivemos no enterro de uma amiga. Ainda em relação ao que você acabou de dizer, eu me dei conta de que, ao sair para o enterro, eu tinha na cabeça um monte de coisas, tinha feito uma análise de tudo, perguntava-me por que isso foi acontecer; por que com ela? Por que neste momento que já é dramático para a sua família, pelas escolhas que têm de fazer? Antes de entrar na igreja cumprimentei a filha, que é minha amiga, e o pai, os quais não choravam, abraçavam a todos, tudo muito bonito! Porém, mesmo na igreja, enquanto esperávamos o início da Missa, a única coisa que eu tinha na cabeça eram as dúvidas, as minhas perguntas. Mas houve um momento, um minuto antes de começar, em que entrou a filha, que é uma religiosa da São Carlos, acompanhada das outras Irmãs. Elas entraram e percorreram toda a igreja; criou-se um silêncio sepulcral, elas ajoelharam-se e começaram a rezar. Eu tinha um grande desejo de, entre outras coisas, conversar com ela e naquele momento ela nem sequer olhou para mim, nem percebeu que eu estava ali; mas eu disse: aqui acontece Cristo. De fato, quando no início cantamos “Se choram, és tu que choras” (eu não tinha conseguido chorar), senti um aperto no coração, e não por ter feito alguma análise, mas porque racionalmente a única posição que se podia ter era a daquelas Irmãs.
Carrón: Por quê?
Colocação: Nem sequer nos falamos, mas só pelo hábito que vestiam, pela maneira como se puseram a rezar, era razoável que a única coisa que vale na vida é dá-la toda a Jesus.
Carrón: Isso é o que elas faziam. E você?
Colocação: Eu senti um desejo infinito daquela coisa, de Jesus. Eu disse: não desejo outra coisa, porque todas as respostas que eu me poderia dar a mim mesmo – olha quanta gente boa, vão nascer coisas ótimas – não se seguram. Realmente senti um desejo de radicalidade total por ter dito: não desejo menos do que isto. É o que, a propósito da companhia, você disse também na síntese do domingo de manhã em Rímini (que eu, confesso, tive dificuldade de compreender no início).
Carrón: É preciso esperar que a vida nos ponha em condições de poder entender o que verdadeiramente nos acompanha perante estes fatos imponentes. Uma cerveja podemos tomar com qualquer pessoa; mas para encarar a morte – meninos, isto não é brincadeira! – nem todos nos acompanham, porque têm um medo louco; no melhor dos casos ficam calados porque não têm o que dizer ou não sabem por onde começar.
Colocação: De fato, eu não sabia para onde me virar; até ela entrar na igreja eu não tinha ideia do que dizer; estavam ali amigos meus, a minha namorada, e eu não sabia o que dizer. Hoje, na hora do almoço, encontrei-me com os meus amigos e tive de lhes dizer: “Precisamos nos ajudar, ajudem-me nisto porque a coisa que eu desejo é que Cristo aconteça agora”, e essa é a única, a única possibilidade de eu continuar nesta companhia. Se estou aqui dentro é porque agora, aqui, Cristo acontece.
Carrón: Eu lhe agradeço, porque assim podemos nos ajudar a entender uma coisa que, em meu entender, é decisiva. A pessoa, diante de um fato assim, não pode deixar de começar por usar a razão de um certo modo. Você utilizou a palavra “análise” (procurar entender por que aconteceu ou não aconteceu, etc), que é uma atitude enganadora, como me dizia recentemente um amigo perante uma situação semelhante. Não é que a pessoa deixa de usar a razão; usa-a, mas usa-a de modo analítico e, assim, não consegue encontrar uma resposta, não consegue sair da gaiola. É isso que predomina na maioria das vezes. Depois chega a filha com as outras Irmãs e colocam diante de todos um fato que consegue arrebatar toda a razão, na modalidade indicada por Dom Giussani e que tem como auge o uso da razão em João e André: nunca como naquele dia, diante da Sua presença, tinham usado tão plenamente a razão, segundo a exigência de totalidade que os impedia de ficarem pela análise e, em vez disso, abria de repente a resposta à exigência que tinham. Observando a nós mesmos em ação em ocasiões como esta, vemos que aquilo que Dom Giussani diz (de João e André e do uso da razão) pode ficar em nós como uma imagem poética, mas, no fundo, não sabemos verdadeiramente o que pretende dizer até que surpreendemos em nós mesmos esse uso da razão que a salva. Como me dizia esse amigo, ele também caíra na armadilha da análise relativamente à doença de uma nossa amiga, que evidentemente também me atingiu muito; começando um encontro, citei uma frase de Fogazzaro que me havia impressionado justamente pelo que estava acontecendo: “Senhor, tudo no mundo é vão, exceto o eterno”. Uma coisa assim coloca a todos nós diante do eterno. E ele dizia: “Esta frase representou, para mim, a possibilidade de ser salvo de um uso analítico da razão, abrindo-me para a totalidade”; como você dizia, para essa exigência de radicalidade total que é o ímpeto da razão, para essa exigência inexaurível que a razão tem. A questão é que temos de ser sérios – dizia eu – com este desejo de radicalidade total porque, se a pessoa não o faz, não vê até que ponto esse uso da razão é mais verdadeiro (isto é, responde melhor à natureza da razão como exigência de totalidade) e mais cedo ou mais tarde acreditará que se trata de coisa de visionários. Então agora você precisa observar: por que motivo a presença daquelas amigas se impôs com toda a sua razoabilidade? Porque acontece algo em que nós surpreendemos de tal maneira a resposta à exigência que temos que esta magnetiza toda a nossa razão. Cada um tem de verificar isso por si mesmo, de tal modo que se passe do desejo de radicalidade total à experiência da realização dessa totalidade. São coisas que acontecem todos os dias: uma amiga professora teve de enfrentar o caso de um seu ex-aluno que tentou o suicídio e, depois, ao me contar tudo, me dizia: “Hoje pude experimentar toda a conveniência da fé e fiz a experiência de uma companhia de Deus, que com o tempo me introduziu num modo de encarar as dificuldades [não fugir das dificuldades, não escapar delas, não esquecer as dificuldades: encarar as dificuldades!] toda dominada, mesmo no choro [nada foi deixado de lado], por uma indomável certeza”. É este o nosso objetivo, nós somos amigos para nos acompanharmos no percurso da estrada que nos permita – diante do drama da vida, qualquer que seja o aspecto desse drama – enfrentá-lo com uma indomável certeza. Isso é a passagem do desejo à experiência, à surpresa desta indomável certeza; o que a gente viu no outro o deseja para si próprio. E onde é que está a possibilidade de que esse desejo de totalidade e de radicalidade total suceda como uma surpresa, de tal forma que a certo ponto a gente diga “Mas como é possível?” Está no fato de você surpreender a si próprio com uma indomável certeza. Nós não podemos prever o que vai acontecer na vida, qual será o modo como a vida vai nos desafiar, não sabemos nada, não temos nada – nada! –, em nossas mãos, como vemos; mas ninguém pode nos impedir de fazer um caminho, a fim de que possamos enfrentar qualquer coisa que nos aconteça com essa indomável certeza. E esse é o caminho que estamos procurando fazer juntos, seguindo Dom Giussani. Como saber se o estamos fazendo? Se nós, diante dos pequenos ou grandes dramas que temos de enfrentar na vida, começamos a surpreender um tipo de certeza, mesmo no choro, na dificuldade, no cansaço. Todas as outras coisas são imprevisíveis, não sabemos qual vai ser o modo como o Mistério leva cada um ao seu destino, mas Cristo veio para ser companheiro do nosso destino. Por isso, se não aumentamos cada vez mais essa certeza dEle, os fatos do passado permanecem só como passado. Diante do presente estou eu, com toda a experiência que me permite manter uma certeza inabalável diante do real.

Colocação: A conclusão do curso está próxima e os meus dias são marcados pelo estudo, pela tentativa de me livrar dos exames todos e formar-me o quanto antes, pelo pensar e repensar que especialidade fazer; e quando volto para casa, junto à minha família, há uma situação que me desagrada, mas que existe, e por causa disso muitas vezes predominam a tristeza e a raiva. O resultado é que perdi o gosto por tudo, pelas coisas que faço, pelo estudo, pelos meus amigos; apenas me resta uma grande ansiedade porque gostaria de resolver tudo, mas não consigo. Então parei para pensar e me questionar como a minha forma de ser cristã incidia em tudo isto e notei que, para mim, neste momento, a fé, o fato de Cristo, não diz nada àquilo que eu sou, isto é, não altera o meu modo de viver e não o torna mais humano. O ponto não é que deixaram de acontecer episódios e encontros, que continuam a acontecer e me fazem dizer: “Isto é uma coisa fora do normal”, episódios ou encontros que me prenderam e graças aos quais a fé continua a me fascinar e a prender. Porém, no fim não se torna constitutiva de mim, não se torna critério e não altera o modo como eu olho e enfrento as coisas que preciso fazer e o que acontece comigo. Eu pergunto: o que é que falta?
Carrón: Veem? Eu lhe agradeço porque você conseguiu expressar muito bem essa fratura que sentimos em nós e nas nossas comunidades entre saber e crer. Não vemos como o crer incide sobre o saber, na vida; superar esta fratura faz parte do caminho que temos de percorrer. Não quero jamais “fechar” as coisas de que falamos. Como eu disse a quem a precedeu: “Olha, para passar do desejo à surpresa da certeza é preciso fazer um caminho”, também com você não posso fechar a partida com uma explicação, isso nunca, mas lhe devolvo a bola com uma sugestão de caminho, porque caso contrário ele nunca se tornará seu. Porque você já tem a resposta, a questão agora é caminhar. E qual é a estrada? A que é que Cristo ligou a possibilidade de vermos uma coisa diferente na vida? Ao fato de a ter poupado enfrentar certas coisas? Não, não prometeu a quem O seguisse que não iriam acontecer determinadas coisas; disse que a quem O segue, a quem deixa entrar a Sua presença, a esse é prometida uma impossível certeza para enfrentar as circunstâncias. Deixa entrar a Sua proposta, deixa entrar o que você encontrou, do contrário ao enfrentar todas as coisas que me contou (e nas quais você se sente dividida) vai ser difícil que você consiga ver o que significa a fé na vida. Em vez disso é preciso que você diga: “Vou tentar enfrentar esta situação contigo, Cristo, na companhia dos amigos”. Vem-me sempre à mente – eu já contei isto várias vezes – que diante do caixão do meu pai eu pensei: isto é tudo? A questão é se quando eu chego ali, diante dessas situações, existe algo que nem a morte pode arrancar dos meus olhos, das fibras do meu ser. Dou sempre o exemplo dos discípulos; imaginem João e André, que experimentaram Cristo ressuscitado, Aquele que haviam deposto no sepulcro, a certa altura O viram e tocaram nEle vivo, comeram com Ele vivo. Imaginem a primeira vez que morreu um discípulo ou um amigo; terá sido possível, para eles, diante do caixão, deixar de lembrar que tinham visto Cristo ressuscitado? O que nos permite enfrentar uma situação como essa é ter nos olhos a vitória de Cristo. Frente às situações realmente difíceis não serve o que a gente imagina (até porque, naquele momento, a gente não imagina nada) ou o que sente (até porque, naquele momento, a gente sente tudo o contrário), parece predominar o nada; na verdade, quem diz que nesse momento uma pessoa inventa a fé não sabe o que diz, porque essa é a última coisa que alguém pode inventar. A questão é se, chegando a esses momentos difíceis, graças ao percurso que fizemos, aquilo que aconteceu com você, aquilo que tem nos olhos, você não o põe para fora. Porque senão, minha amiga, você está sozinha com a sua impotência, tendo diante de si tudo o que acontece. Se, ao invés, você reconhece – “reconhece”, não “inventa” ou “cria” – como você reconheceu todas essas coisas que continuam a acontecer na vida, o seu horizonte não é reduzido à aparência do que você vê. De fato, o que prevalece muitas vezes? Que só existe o que estou vendo agora, a aparência, o estado de espírito momentâneo. Mas se você começa a não se deixar reduzir assim, se começa a reconhecer o que viu, a dar-se conta de que não está sozinha, a tomar consciência de que há uma presença real, presente, mais poderosa do que você e do que todos os problemas, pode verificar se essa presença a ajuda. Mas isto é uma verificação que cada um tem de fazer pessoalmente. Sem pressa, sem irritação, mas sem parar, meio mancando, errando mil vezes, desanimando, por vezes apenas vendo o nada, quase num nevoeiro, pouco a pouco, pouco a pouco: em determinado aparece essa imbatível certeza que nos permite entrar no real. É um caminho. É uma experiência. O caminho para a verdade é uma experiência. Por isso não basta repetir as frases, é preciso depois fazer a verificação na própria experiência. É possível porque temos na nossa frente pessoas que nos dão testemunho disso. A pessoa vai a um velório, fica desorientado perante a morte, depois chegam pessoas que são dominadas por uma outra coisa. Não são super mulheres e nós uns estúpidos; não, são pessoas que fazem um percurso, fazem um caminho, e pouco a pouco chegam, exatamente como nós podemos chegar. Eu sempre lhes disse que isto me fascinou no Movimento: propunha-me um caminho possível, como o faz agora com você. Se você não desiste, na próxima vez poderá me contar o que acontece quando você O deixa entrar.

Colocação: Antes de começar a experiência do CLU, e da vida universitária em geral, eu estava dominada por mil medos, estava descontente por deixar para trás as minhas amizades, e preocupada por não conseguir encontrar outras tão grandes como aquelas. Bolonha parecia um ambiente grande demais para mim, o juízo que eu fazia do Movimento era absolutamente negativo e não me permitia abandonar-me. Apesar de ser convidada para os encontros organizados na minha paróquia, sempre recusei ir, firme como estava na minha posição crítica; não queria participar porque os considerava uma perda de tempo e, sobretudo, porque abordar certos temas não me ajudaria em nada, ao contrário, fazia-me sentir mal. No fim, escolhi Bolonha porque confiei em três grandes amigas, e também porque queria tentar governar sozinha, longe de casa e da dependência dos meus pais. Sempre fui uma pessoa reservada, tímida e pouco disposta a falar de mim, da minha família e, sobretudo, do meu irmão mais velho, que tem 29 anos e vive em estado vegetativo há 27 anos. Por estes motivos, havia prometido a mim mesma que não me deixaria envolver demais nas propostas que me fossem feitas e iria pensar exclusivamente no estudo. Para além dessas minhas intenções, não tive grande dificuldade para me ambientar e logo me senti querida pelas pessoas que me acolheram, especialmente pelas meninas que moram comigo e que agora considero minha segunda família. Embora sempre tenha considerado normal a condição em que o meu irmão se encontra, uma vez que me acostumei a vê-lo assim desde criança, muitas vezes me perguntei o sentido dessa vida, e muitas vezes procurei imaginá-lo com saúde, pensar em qual seria seu caráter, que faculdade ele teria escolhido, além de tentar intuir que tipo de relação poderia ter havido entre nós, como seriam nossas brigas e como seria essa sã cumplicidade que une dois irmãos quando se tratasse de discordar dos nossos pais. Eu não conseguia compreender como era possível que ele, com todo o sofrimento que carrega, podia soltar sorrisos tão cheios de vida que nem eu, nos meus melhores momentos, consigo fazer. Sempre me limitei a ajudar os meus familiares no relacionamento com ele e – apesar de sempre o ter desejado – não era capaz de lhe manifestar aquele afeto e as atenções especiais próprios dos meus pais. Sempre admirei meu pai pelo modo como o trata, pela atenção e paixão com que se relaciona com ele, mas talvez isso não me bastava para me aperceber verdadeiramente de quem tínhamos em casa e a responsabilidade que nos é exigida exatamente a nós. As experiências que vivo agora – para mim, em primeiro lugar, a caritativa e os encontros com determinadas pessoas – têm-me ajudado muito a amadurecer na relação com o meu irmão, mas o que mais mexeu comigo até agora foram os Exercícios de dezembro, sob o tema “A inexorável positividade do real”. Eles foram regeneradores para mim e, graças a todas essas oportunidades que me foram oferecidas, só posso estar agradecida pelo que tenho. Sem eu ter reparado, o meu irmão tem-me ensinado a viver e a apreciar a vida com todas as suas nuances. Consigo estar diante dele e admirá-lo, como que conseguindo advertir um Mistério que o segura pela mão e que eu antes não conseguia ver. Tenho sorte por tê-lo como irmão e estou convencida de que, sem ele, eu nunca teria conseguido alcançar a consciência que tenho agora, assim como não teria conseguido reconhecer que toda a realidade é interessante e cheia de significado por causa daquele Tu.
Carrón: Obrigado, minha querida, porque isso ajuda também a responder à pergunta anterior: uma pessoa pode ficar anos sem conseguir encarar uma situação como a do seu irmão. Qual é a surpresa que descobre agora? Que agora você consegue estar diante dele. O que antes você não conseguia fazer – mostrar a afeição que notava em seus pais – agora começa a acontecer. Por quê? Porque você melhorou? Porque você treinou mais? Não, por aquilo que entrou na sua vida. A situação do seu irmão não mudou em nada, não sabemos por que desígnio Aquele que faz todas as coisas o conduz ao seu destino desse modo; mas o que ninguém pode evitar, que ninguém pode cancelar – se a pessoa está disposta a deixar-se amar, porque foi isso que você fez, deixar-se amar, até mesmo abandonando todas as defesas que ergueu – é que deixar entrar um Outro na vida tem como resultado que a pessoa começa a penetrar na escuridão daquilo que durante anos não foi capaz de ver. É simples. Essa é a razoabilidade da fé, essa é a conveniência humana da fé. E cada um tem de decidir se isso lhe interessa para entrar em qualquer escuridão (cada um de nós vive a sua). Porque, então, começo finalmente a poder olhar da maneira certa, sem reduções, e começo a surpreender no irmão doente aquela Presença que o sustenta, e portanto começo a sentir-me orgulhoso por ter um irmão assim. O que lhe aconteceu a ela? Foi fazer um curso de filosofia para aprender a usar a razão corretamente? O que é que Cristo introduz? Por que é que Ele nos torna mais humanos, mais nós mesmos? Porque começamos a olhar o real, a usar a razão de um modo verdadeiro, começamos a não deixar de fora nenhum fator. E isso nos permite olhá-lo, não porque agora tenha de olhá-lo, não porque eu me proponho olhá-lo, não por ter feito um esforço titânico para olhá-lo (não conseguiria). Não, não, não: eu surpreendo-me capaz de olhá-o. Essa é a conveniência da fé, meus jovens. Bastaria um desses relatos – só um! – para nos darmos conta da conveniência humana da fé. Todas as vezes que nos vemos (ou que vocês se encontram), quantos desses relatos ouvimos! Ninguém no mundo sente as coisas que nós sentimos, vê as coisas que nós vemos, toca as coisas que tocamos. Então, é com tudo isto que vemos, que tocamos e que reconhecemos que nós podemos entrar em qualquer circunstância, isto é, podemos não censurá-la mais: uma coisa que eu não sabia como administrar, que durante anos, muitos anos, eu tentara fingir que não existia, mesmo fazendo as coisas habituais para dar uma mão, mas no fundo procurando eliminá-la, a um certo momento passa a ser humanamente possível de enfrentar, não como resultado de não sei que treino ou terapia, mas somente deixando Cristo entrar através de alguém que nos abraça agora.

Colocação: Quero contar aquilo que se tem revelado ser para mim a experiência que faço dentro do Movimento. Há quatro anos tive um acidente muito grave, por causa do qual fiquei hospitalizado seis meses e, depois de uma semana em coma, acordei com uma felicidade imensa,uma felicidade que eu nunca tinha sentido antes disso, mas que não conseguia explicar ou, melhor, à qual eu dava uma explicação baseada em mim próprio, ou eu fazia depender a minha existência de mim próprio; eu tinha-me tornado, em certo sentido, autossuficiente porque estava convencido de que estava vivo graças a mim mesmo. E assim foi nos meses e nos anos seguintes, até que, chegando ao CLU, me foi revelada uma verdade maior que eu compreendi ser verdadeira, não porque visse nos olhos dos meus amigos que não frequentavam o Movimento algo de menos, mas porque eu via nos olhos dos meus amigos do Movimento qualquer coisa verdadeira. Quando eles me falavam, quando eu estava com eles, havia sempre algo que me remetia para outra coisa, e assim consegui finalmente colocar-me perguntas a mim próprio, porque antes de entrar no Movimento, a seguir ao meu acidente, eu estava convicto de me ter tornado uma espécie de super-homem, e por causa disso eu já não me interrogava ou, pelo menos, não sentia a necessidade de fazê-lo (porque a qualquer pergunta eu poderia encontrar uma resposta em mim mesmo). Depois entendi que isso era a morte; eu havia saído do coma, mas substancialmente ainda estava “em coma”, não me fazia perguntas, isto é, não vivia verdadeiramente. Então foi então que me veio à cabeça uma frase de Dom Giussani no Dal temperamento um metodo, que vou ler agora porque me revejo muito nela: “Se tu te identificas com esta companhia, a tua fisionomia, o teu caráter, a tua personalidade revive, renasce; descobres que sentes, que fazes, que entendes coisas nas quais nunca terias pensado”. Para mim isto é muito verdadeiro e agradeço toda esta experiência no seio do Movimento porque me tornou possível entendê-lo.
Carrón: Agradeço-lhe porque que mais nos deve suceder senão despertar do coma? Mas isso também pode não bastar para nos fazer sair da nossa autossuficiência. É fatal. Pensamos que nos conseguimos arranjar com nossas próprias forças, mas depois de sair do coma temos de reconhecer que ainda estamos “em coma”, porque nem o sair do coma basta para fazer ressurgir o eu. O único é Cristo! E, como já dissemos, é isso que torna cada vez mais forte a afeição por Ele. Porque a coisa mais retumbante que pode acontecer a alguém é sair do coma, com toda a óbvia felicidade, mas no instante seguinte tem de reconhecer que, mesmo atribuindo-se o mérito por isso, está ainda “em coma”, mas não percebe que é, no encontro cristão que, a pessoa descobre verdadeiramente a si mesmo. Essa é a diferença. É isso que precisamos de observar durante este ano de trabalho. Porque quando pensamos nos apóstolos, dizemos: “Eles sim é que tinham sorte, não nós que não vimos as coisas que eles viram; eles sim é que tinham sorte, não nós; para eles era possível alcançar essa certeza, para nós não”. Mas, desculpem, as coisas que vemos são menores do que aquelas que eles viram? Quem é capaz de salvar todo o humano, de despertar alguém “do coma” depois de ter saído de um coma? Somente quem entende isso é capaz de se dar conta da excepcionalidade de Cristo, da Sua diferença absoluta relativamente a qualquer outra coisa. E então, se a pessoa começa a compreener isso, não pode evitar acordar e levantar-se de manhã sem ser dominado por este pensamento: “Tu estás aqui e fizeste compreender isso. Tu me revelaste a mim mesmo!”. Digam-me se são capazes de não sentir uma gratidão ilimitada pelo fato de Cristo existir. E então compreendemos que não basta qualquer migalha, porque podemos ter tudo. Uma pessoa pode até despertar do coma mas, se Ele faltar, continuará “em coma”. Se falta Ele, que é quem o desperta, pode continuar “em coma”. E, todavia, a vida começa, verdadeiramente recomeça quando a pessoa se dá conta de que Ele existe e que Ele se torna de tal modo presente que se dá a conhecer, não dando-nos uma lição, mas levando-nos a fazer a experiência de algo que está acontecendo agora. Cristo é assim. Por isso, quando dizemos que Cristo é abstrato, temos de negar estas coisas, temos de contar lérias, temos de mentir, temos de sucumbir à mentira. Ao invés, quando temos a simplicidade dos apóstolos tudo se torna simples. Obrigado.

Colocação: Nestes últimos meses, na prática, para mim, o presente começou a existir agora, e isso é uma coisa fantástica. Em novembro tive de decidir com quem ia preparar um exame. Isto pode parecer um problema tolo, porém para mim era um problema vital. Para pôr um fim a este dilema, no dia 18 de novembro encontrei-me para almoçar com um meu amigo com o qual eu esperava poder estudar para o exame, e aquele almoço foi decisivo porque ele, em vez de me dizer “Então, vamos estudar juntos?” me olhou firme nos olhos e perguntou: “Mas o que você quer?”. Então eu lhe disse: “Eu gostaria de estudar com você”. E ele: “Não, esqueça o estudo, eu me interesso por você; o que você quer?”. A cada duas palavras, ele perguntava: “O que você quer?”. Repetiu isto aí umas oitenta vezes...
Carrón: Você reduziu a necessidade a ter alguém com quem estudar para o exame, e de repente encontra alguém que insiste: “O que você quer?”. Você compreende a diferença que existe nessa pergunta? Para que alguém fale assim, o que deverá ter vivido na sua vida? Este olhar hoje, hoje, não há dois mil anos, hoje, contemporâneo a nós, quem o faz surgir? Porque a contemporaneidade de Cristo não são palavras, é eu hoje encontrar alguém que, perante a redução da minha necessidade, mesmo quando insisto que o que quero é alguém que me ajude a estudar, não desiste e me diz: “E você, o que quer realmente?”. É este o modo como hoje nós fazemos experiência de como só o divino salva o humano. Não é apenas uma frase que lemos em algum livro; agora vemos o que quer dizer hoje, não só como uma coisa que aconteceu a João e André, não somente como uma coisa que aconteceu a Mario Vittorino (que quando encontrou a Cristo se descobriu homem), não, não, hoje, hoje! Há o olhar de alguém presente que te diz: “O que você quer?”. Frente a todas as suas tentativas de reduzir, continua a insistir, não desiste: “O que você quer?”. Mas será que nos damos conta disso? Você percebe isso? Muitas vezes não entendemos nem sequer tendo diante de nós a Sua presença através de alguém que nos fala assim – como aconteceu com os discípulos. Que diferença existe entre a correção que Jesus faz aos discípulos que voltam com êxito da missão, e a correção que lhe fez aquele amigo? “Mas você percebe que isso não lhe basta? Percebe que ajudá-la apenas a resolver o problema do exame não lhe bastará para se levantar feliz amanhã de manhã? O que você quer? Quem é você?”? É alguém que consegue olhar para você com ternura, com profundidade, como talvez você nunca conseguiu fazer consigo mesma; hoje, dois mil anos depois, hoje. E isso quer dizer que, quando fazemos o percurso da Escola de Comunidade, podemos fazê-lo tal qual os discípulos, por aquilo que está acontecendo agora, porque a contemporaneidade de Cristo nós podemos comprová-la em todas estas coisas que temos ouvido hoje, porque nenhuma destas coisas poderia acontecer por acaso se Ele não se fizesse presente hoje; este olhar nunca o poderíamos ter sonhado sequer. E então?
Colocação: E então, depois, ao voltar para casa, com calma, dei-me conta de que sabia realmente o que queria: eu não queria que as coisas escapassem mais por entre os dedos, queria crescer, queria começar a levar-me a sério, e portanto a viver em profundidade todas as coisas que me são dadas, porque só entrando nas coisas seria possível encontrar e conhecer Aquele que as dá, e que é o mesmo que no dia anterior me tinha olhado através dos olhos do meu amigo; porque esse meu amigo, incitando-me a ver o verdadeiro ponto da questão, me tinha amado mais do que eu mesma amaria. Portanto, comecei a estudar a matéria do meu exame, só que a partir daquele almoço não nunca mais houve um dia – nem um! – em que eu não tenha tido nos olhos o seu olhar que me questiona.
Carrón: Essa é a questão, essa é a questão, pessoal! A partir daquele dia, já não se pode evitar a presença desse olhar, desses olhos, porque esses olhos, esses olhos, esse olhar, moldou plasmou a nossa vida, assim como aquele olhar plasmou a vida de Zaqueu. Quando dizemos “memória” não é um não-sei-quê: estamos falando de algo que aconteceu – e que acontece – que eu já não posso arrancar de cada fibra do meu ser, assim como os discípulos já não o podiam arrancar dos olhos seus quando se levantavam de manhã ou tinham de enfrentar ou retomar o trabalho.
Colocação: De fato, aquela pergunta mudou tudo, tudo mesmo, porque eu quero ser feliz agora; no momento em que me recordo da pergunta, recordo-me também da resposta: eu quero algo que aconteça agora. Por isso, o que devo fazer agora? Devo estudar e, por conseguinte, levo a sério o estudo, todo o estudo, ou quando estudo com uma pessoa que está à minha frente, levo-a a sério, e por isso nasceu uma amizade muito bonita com alguém que antes eu não conhecia muito bem, e tudo se torna uma descoberta; como quando alguém me dá um presente, a gente interessa-se pelo presente; no momento em que nos damos conta de que tudo nos é dado, torna-se mesmo “inatural” não interessar-se pelo que temos diante de nós. Por isso, entre as mil coisas que nasceram daquele dia, destaco duas. Há quatro anos que vou fazendo o meu curso como que por engano, sempre em dúvida de que, no fundo, no fundo, talvez devesse ter ido para outra faculdade ou estar em outro lugar. De qualquer forma, finalmente sei que este aqui é o meu lugar, sou feliz aqui e estou no sítio certo aqui.
Carrón: Viram? Muitas vezes a inquietação que temos em relação à escolha certa da faculdade no fundo pode ser muito mais profunda; e só ficamos em paz quando encontramos a verdadeira resposta e, então, reconciliamo-nos até com o que estudamos, porque o problema do mal-estar não tinha origem no que se estava estudando. Digo sempre: quando a pessoa resolve o verdadeiro mal-estar, quando vai à raiz do mal-estar, então começa também a olhar de maneira diferente o curso que está fazendo e encontra o seu lugar. Apetece dizer: mas como é possível que a fé arrume as coisas muito melhor do que quando focamos analiticamente o curso de licenciatura? É isto que o Mistério deixa entrar na vida. Impressionante.
Colocação: Exato. E isso é testemunhado pelo fato de eu sentir que estou no meu lugar, pelo fato de que tudo quanto me sucede é para mim, desde uma pessoa que eu talvez nunca mais volte a ver às amizades quotidianas; ultimamente tenho-me dado conta de que gosto muito mais dos meus amigos agora do que antes, porque é cada vez mais evidente o milagre que é eles me terem sido dados, até minha colega de quarto, para ser sincera. Uma coisa das coisas é: eu estou exatamente onde gostaria e deveria estar. A segunda coisa que mudou, finalmente, é a oração, porque agora vai se tornando uma coisa minha, não é só um momento como as Laudes ou mesmo a Missa, por mais intensas que sejam; não é que eu antes rezasse mal, mas tem-se tornado um diálogo contínuo, porque acordo de manhã e tenho logo vontade de dizer:mostra-te, onde estás hoje? E depois, quando me é dada alguma coisa, é mesmo natural agradecer, torna-se um “obrigado” que permeia o dia todo, tornando-se mesmo a própria dimensão do dia.
Carrón: Obrigado. Da vida, sem solução de continuidade, à oração, que surge da vida mesma, não como uma coisa que devo fazer para ser “bom” cristão, mas como exigência, urgência de cuidar da relação com Aquele que me dá tudo. Obrigado.

Colocação: Eu parto de uma coisa que a minha mãe me diz sempre, desde que eu era pequena: “Muita dor e muita alegria, fica apegada a quem é mais feliz do que tu”. Demorei bastante para compreender isto. O drama que eu vivo abala e me abre o coração todos os dias. Dou dois exemplos. Primeiro, a alegria. Eu passei este Natal na Uganda, porque fui encontrar meu namorado que está lá para fazer um estágio de cinco meses com a Avsi, e ali conheci a Rose. Inútil explicar a grandeza daquela mulher; é mesmo necessário vê-la, olhá-la nos olhos; Depois também conheci as mulheres e isso me levou a entender o que quer dizer ajoelhar-se diante de Alguém que olha o seu coração com tanta ternura que todos os discursos são supérfluos. E depois o sofrimento. Há vinte dias, o meu pai chegou àquela casa de que Claudio Chieffo fala na sua canção “La sorgente”; às vezes parece-me que o meu pai ainda está no quarto ao lado, como diz Péguy; e quando depois páro pensando no sepulcro vazio e silencioso de Jesus, eu também me sinto morrendo, mas naquele silêncio está toda a minha fraqueza, toda a minha pequenez, todo o meu clamor por um bem mais profundo, por um bem mais vivo e mais presente. Gosto daquele silêncio que aparentemente é tão vazio, porque está carregado de todo o mal e todo o bem que tenho dentro de mim. Desde que ele faltou eu nunca mais consegui rezar e dizia para mim: “Como posso rezar a Ti, como posso render-Te glória, Tu que do dia para a noite me tiraste do coração todo este bem!”. É tudo muito confuso, mas é, porém, uma ferida tão profunda que se fecha quando adormeço e se reabre quando acordo, e todos os dias tenho de retomar a decisão de curá-la ou então sangrar até morrer. Ao mesmo tempo em que me admiro vendo a minha mãe, o meu namorado, os meus amigos. Todo o dia luto para preencher essa ferida com coisas belas que não precisem morrer; vejo-me comovida quando sinto que sou amada; estou mais frágil e cedo mais a tudo, precisamente por causa dessa busca. Se me aconteceu isto agora, é porque tenho todos os instrumentos para enfrentá-lo, e estou segura disso, mas se Ele agora me perguntasse “Tu me amas?”, talvez só à terceira vez eu Lhe respondesse “sim”. Agora não me basta querer-Lhe bem, não me bastam todos os discursos, mas preciso daquele olhar que vi pousar sobre mim enquanto a Rose falava comigo, do abraço do amigo que às vezes, mesmo sem dizer nada, vê mais além. Sem isto eu não estaria bem em nenhum lugar. Este problema me fez de algum modo mais dinâmica, mas, às vezes, há alguma confusão, e preciso deste “agora” a todo instante. Domingo fui a San Riccardo Pampuri e ali se deu em parte a reviravolta: ele é o santo que concedeu à minha família mais de um milagre. Depois de uma Missa belíssima, desesperada, comecei a chorar, e disse: “Eis-me aqui, voltei, tem piedade do meu nada, faz de mim o que quiseres, porque não posso mais passar sem Ti”, e a dor tornou-se quase indispensável. Por isso digo que preciso da sua companhia, porque você me parece mais feliz do que eu, e eu quero ficar apegada a você. Agora consigo rezar e rezo para que a familiaridade com você e com quem convivo esteja sempre mais presente, a fim de que essa amizade permaneça dentro da ferida que todo dia se abre um pouco mais. A única coisa que lhe peço é que me ajude a entender o que está acontecendo comigo.
Carrón: Você deve estar atenta à urgência que carrega dentro de si. A vida é fácil, amiga, a questão é que muitas vezes nós temos de esperar que o Mistério nos dê os sinais; às vezes, a gente gostaria que Ele se apresentasse aqui agora, às claras; mas Ele às vezes se faz esperar. Mas se você souber esperar, aparecerão os sinais por meio dos quais o Mistério fará você vislumbrar o caminho.

Colocação: Gostaria de relatar algumas coisas da minha experiência recente que comprovam como o desafio dos últimos tempos tem sido para mim uma revolução. Primeiro. Houve momentos em que, para mim, o Acontecimento foi muito claro. Por exemplo, há um mês, em Bolonha, houve uma grande nevasca e certa noite, enquanto eu estava mergulhado nos meus pensamentos, a minha namorada muito simplesmente diz: “Vamos até lá fora ver o quintal coberto de neve”. Eu fui, e diante daquela coisa entendi o que é um acontecimento e o que você entende quando fala da razão e da afeição que andam juntas, porque a minha razão, que até um instante antes estava meio perdida em si mesma, reconheceu de imediato que aquela coisa ali, belíssima, não era eu que a fazia, e o mesmo vale para a minha afeição: foram propriamente juntas e diretas ao ponto: Quem faz aquela neve e Quem me dá a minha namorada é Alguém que me quer bem. Ali entendi que cada dia tenho de decidir se quero estar a este nível ou se quero me deixar levar pelas voltas – às vezes até paranóicas e anormais – que a minha cabeça dá. Por isso eu muito simplesmente me pus a seguir quem vejo que vai mais à frente do que eu nesse modo de olhar. Em vez de tratar o cristianismo como uma coisa em que Cristo está de um lado e a realidade do outro – e eu com meu raciocínio, ou seguindo um esquema, é que tenho de juntá-los –, vou atrás de quem reconhece e tem diante de si essa Presença. Com o tempo notei que, para mim, é muito mais imediato reconhecê-Lo. Por exemplo, uns dias atrás eu ia para o bar para tomar o café da manhã, recitando o Angelus e diante do bar encontrei uma menina numa cadeira de rodas com uma sonda de alimentação presa a ela; eu, normalmente, fingiria não tê-la visto, porque de manhã já tenho os meus problemas, e tudo o que não tenha a ver quero que fique bem longe. Mas justamente enquanto a via, pensei: olha que grande sinal do Mistério que ela é agora! No sinal é Ele quem me diz: “Mas você percebe que Eu estou aqui?”, e eu pensava: que sinal ela não deve ser também para a família dela que, diariamente, tendo-a ela ali ao lado, tem o Mistério que lhe diz: “Oi, percebe?”. Fico surpreso que este reconhecimento seja cada vez mais frequente. Por exemplo, na segunda-feira à noite convidamos para o jantar um professor nosso com quem nos relacionamos há algum tempo e, na noite anterior, encontrei-me com os representantes dos alunos da minha faculdade, e vinha à tona a questão do que fazer para abordá-lo melhor e desafiá-lo. E eu disse: “Pessoal, eu, antes de tudo, ao encontrar Cristo descobri-me homem, isso define a minha vida”. Tanto é que na noite seguinte, embora eu não seja um representante, o desafiei, falamos de mil coisas e ele é realmente um gigante, mas eu encontrei uma coisa que não me deixa aceitar falar de universidade em termos unicamente burocráticos e organizativos, e para mim a questão em causa era sempre a educação: “O que me interessa é a consistência das coisas”, porque para mim uma das muitas revoluções foi entender que não tenho de colar Cristo às coisas, mas que na relação com as coisas eu faça a verificação e vá ao fundo daquilo que é a minha relação com Cristo, e por isso me descubro muito mais disponível. Isto, para mim, é uma revolução, porque eu sempre tive o problema de arrumar as coisas em seu devido lugar; agora, pelo contrário, recitando o Angelus de manhã, quando digo “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua palavra”, eu quero viver assim, eu quero viver ao Seu serviço, eu quero me surpreender cada dia mais. E já nem sequer me basta a mudança, porque esta manhã eu estava à porta da sala de um professor que nos odeia, e eu, à luz do que tinha visto, queria convidá-lo para jantar sabendo muito bem que a hipótese de ele recusar era 99% – só que não consegui encontrá-lo –, mas eu dizia para mim: em última análise não me interessa que ele diga “sim”, que eu mude, que eu brilhe, apenas tenho a certeza de que existe Alguém que me ama de maneira infinita agora, e que me faz, e eu consisto nessa relação. Por isso, quero cada vez mais estar disponível para servi-Lo e deixar-me agarrar inteiramente. É a única coisa que me interessa, a única.
Carrón: Obrigado. É muito bonito isso, alguém reconhecer a dinâmica de um acontecimento porque começa a descobrir que razão e afeição andam juntas, ou seja, encontra uma unidade que não é possível alcançar com as próprias forças. Como veem, a vida é fácil: quanto mais se anda pelo caminho que Dom Giussani nos indica, mais imediato é reconhecê-Lo. E qual é o sinal mais claro disso? A liberdade. Ubi fides ibi libertas. Por exemplo, a liberdade de convidar um professor sem a preocupação de que me diga sim ou me diga não; pode ser aquele que menos gosta de nós, mas eu estou livre disso, não sou determinado por isso no relacionamento com ele, e isso só é possível se acontece alguma coisa agora, se Cristo acontece em mim agora, porque senão nenhum moralismo pode gerar isto.

Colocação: Perante uma coisa desagradável que se passou comigo em dezembro, ficou sempre mais viva em mim a pergunta sobre o que é que me realiza, o que é que preenche a minha vida e o meu coração. Com o passar dos dias, pela companhia firme de alguns amigos, foi iluminador, antes de mais nada, reconhecer que sou amada. A certa altura sucederam alguns episódios precisos, simples, como você citava no dia 25 de janeiro, um gesto cheio de ternura e caridade: da colega de apartamento que, cinco minutos antes, era quase desconhecida, ao telefonema com uma amiga que nos dramas pessoais não acaba no buraco do nonsense, mas continua tenazmente a manter os olhos fixados no coração, que deseja muito mais do que detalhes que correm bem ou não. Por meio desses rostos e coisas, Deus revelou-se tanto para mim que fui obrigada a dizer, a certa altura, para essas pessoas: “Mas que companhia tão absurda, familiar e terna vocês têm me feito!”. Assim, passear na montanha com os meus familiares e estar com os amigos passaram a ser a expectativa da Sua companhia, que depois chegou, aliás, por meio de pessoas mais diferentes. Em relação também à pergunta que nos colocavam (“O que sucede quando se dá o acontecimento cristão?”), um exemplo que me vinha é que no apartamento as relações mudaram. Uma colega, há dias, na hora do almoço disse que esses meses para ela foram muito bons, porque ali sentiu um amor impensável por ela, por questões pessoais, e acabamos agradecendo uma à outra pela mesma coisa; obviamente, ali ficou evidente para ambas que não era de tudo obra das nossas mãos. O grande tesouro que tenho agora é ter visto Quem é que preenche totalmente o meu coração, e assim Ele conquistou-me completamente, porque quando o coração se enche verdadeiramente, respira. Mesmo dentro desta situação dolorosa há uma plenitude de vida que ninguém nunca conseguiu me dar. E agora, dentro das distrações, que apesar de tudo surgem continuamente, vejo que o que me salva é o voltar a todo instante lealmente à consciência do que eu realmente sou, isto é, uma frágil pobrezinha, mas com um coração grande que só deseja encontrá-Lo e segui-Lo.
Carrón: Obrigado.

Colocação: Gostaria de ter dito uma coisa totalmente diferente, mas vou ficar pelo que você disse antes a uma jovem, que aquele “incrivelmente maior” estava presente no modo como o amigo a olhava e perguntava “Mas você, quem é? O que está buscando? O que está querendo?”. Para mim também esse olhar existe, e assim como ela naquele momento não se dava conta, muitas vezes também me acontece isso. Assim, gostaria de perguntar: como podemos nos educar para reconhecer esse olhar?
Carrón: A coisa mais decisiva, amigos, qual é? A surpresa de que esse olhar existe. A primeira atividade é uma passividade: perceber que o cristianismo não é uma coisa do passado, mas está acontecendo agora. É essa a esperança para você e para mim, porque Ele continuará a bater à porta, de um modo ou de outro, através dessa pergunta, através de alguma coisa que faz acontecer, através de algo que espanta, através de algo que sucede. A questão é esta: que nós não estamos sós com o nosso nada, com a nossa incapacidade, com a nossa insuficiência, com a nossa distração. Ponto! Como nos educamos para isso? Cedendo a Cristo quando acontece.
Colocação: No entanto, na última Escola de Comunidade você dizia, referindo-se aos apóstolos: “Jesus os introduz no mistério deles, na consciência terna e apaixonada deles”.
Carrón: Isso é a salvação de que falava há pouco a amiga que interveio: a consciência disso.
Colocação: Mas estou certo de que às vezes cedo.
Carrón: E quando cede, o que é que acontece? É disto que temos de nos dar conta, porque quando você cede, deixa que Ele entre, que é tudo o que precisamos fazer. Se você tem dor de cabeça e toma um comprimido e este tira a dor – para dar um exemplo banal –, o que faz quando a dor volta? Toma outra vez. Não porque precisa fazer isto ou aquilo, mas porque isso o ajuda melhor sem dor de cabeça do que com ela)! A questão é se se começa a ver, a saborear, a ter uma experiência ainda que pequena (não tem de ser necessariamente clamorosa) da diferença entre deixá-Lo entrar ou não. Assim, logo que sente o mal-estar, ou enfrenta dificuldade, você começa a desejar Cristo, e não ficar sem Ele. Então você começa a busca d’Ele. Com isso começa a educar-se, porque Ele começou a despertar em você o desejo d’Ele. O que é que nos atrai? Uma experiência tão positiva, tão bela da vida, que se deseja cada vez mais. O problema é se começamos a perceber isto experimentalmente na vida, porque essa é a relação que temos com Cristo presente. Se desejamos isto, como nos educamos para isto? Em primeiro lugar quem educa é Ele, porque há sempre algo que vem antes de todo o seu impulso e, como vê, acontece alguma coisa que desperta em você a vontade d’Ele, o desejo dEle (como dizia antes um de vocês: o desejo daquilo que vi). Você pode ir atrás d’Ele ou pode não ir; pode ceder ou não ceder; muitas vezes não cede, mas de vez em quando, graças a Deus, cede e, então, você mesmo vê a diferença. Não é que depois passe a ceder mecanicamente; não, você continua a enfrentar os fatos da vida, mas vê a diferença entre o momento em que cedeu e o momento em que não cedeu. E, como não somos tolos, começamos a ver que nos convém ceder, e então começamos a ceder. É, como vê, uma coisa humaníssima, uma coisa que não tem nada de complicado, simplesmente uma pessoa nunca quer perder aquilo que descobriu. E se não o quer perder, procura-o, tem vontade de procurá-lo, não porque tenha de fazê-lo, não porque é obrigado; não: para não o perder! É por pura conveniência, é por puro desejo daquela plenitude que me corresponde mais conveniente do que todas as tolices que me vêm à cabeça. É fácil, porque Cristo não introduziu um caminho “pesado”, introduziu uma atração que, quando começamos a saboreá-la, como vimos esta noite em tantos testemunhos, não pode deixar de desejá-la cada vez mais. E já não lhe basta nenhuma outra coisa, só deseja aquela, e cada vez mais. E isso vai-nos educando pouco a pouco.
Colocação: Sim, digamos que compreendi mais ou menos; ainda não compreendi bem, mas mais ou menos compreendi.
Carrón: Mas você não vai compreender isto por eu lhe explicar melhor; você entenderá quando ceder a Ele, porque aquilo que o leva a entender é uma experiência, não uma nova explicação. Vocês têm de tirar isso da cabeça, porque pensam que compreendem por meio de uma explicação melhor. Não, não pode entendê-lo, porque nem sequer sabe do que estou falando enquanto não te acontecer. Esta noite você começou a entrever que, quando cede é diferente de quando não cede? A questão é que você precisa decidir, e isso é uma coisa que uma explicação não pode poupá-lo. Você quer ir em busca desta plenitude que começou a saborear pelo menos inicialmente, quando cedeu a Ele ou não? É só isso que nos educa. E você compreenderá cada vez melhor quanto mais ceder (em vez de fazer diferente). E quando errar, não se preocupe: use o erro para fazer a comparação entre o que acontece quando erra e quando não, e depois decida o que fazer. É fácil.
Colocação: Posso lhe pergunta uma última coisa? Justamente porque, de qualquer modo, este encontro que fiz é a coisa mais importante para mim, estou começando cada vez mais, inclusive provocado por amigos, a me perguntar quais são os traços essenciais do carisma que me prendeu, e às vezes paro para pensar nisso durante o dia. É um trabalho constante, para mim, procurar responder a esta pergunta, porque me parece que não contar com a resposta a esta pergunta é o mesmo que não contar com aquilo que encontrei, substancialmente. Queria lhe pedir uma ajuda nisto, que é se pode me dizer quais são, para você, esses traços.
Carrón: A questão é ficar atento ao que contamos uns aos outros. Quais são os traços inconfundíveis? Um olhar de ternura ilimitada, porque quando alguém se sente amado, como vimos, ou sente esse olhar sobre si, ou o vê presente mesmo no momento mais escuro, como a morte, basta que cada um percorra o que ouvimos esta noite, porque é tudo a documentação daquilo que vocês puseram como título do encontro: “Cristo é algo que me acontece agora”. O que foi que vimos juntos esta noite? Por que valeu a pena vir aqui esta noite, para cada um, inclusive para mim? Por ter podido ver. Nós esta frase já a sabíamos, mas hoje vimos que a frase é verdadeira, e vamos todos voltar para casa com os olhos cheios do que vimos, que verificamos de maneira palpável. Então, se agora você retoma tudo o que emergiu esta noite e começa a fazer a pergunta sobre os traços inconfundíveis, começará a reconhecê-los. Quanto mais você se apegar ao que os amigos disseram, mais poderá descobrir os traços inconfundíveis da Sua presença; quanto menos você fantasiar, imaginar, mais se apegará ao que aconteceu hoje aqui, entre nós, mais descobrirá esses traços. Não lhe digo isso para evitar responder, mas porque você precisa verificar de maneira palpável, porque você o descobre não através da minha explicação, mas sim pelo modo como se documenta experimentalmente entre nós, e depois dirá aos amigos: “Eu descobri isto, e você o que diz de ontem? Que traços você reconheceu?”. E fazem uma competição para reconhecer esses traços, que nós não podemos inventar por estarem muito além do que podemos sonhar. E assim começamos a reconhecê-Lo. Imagine quantas vezes os discípulos terão dito entre si: “Você viu o que aconteceu hoje?”. E isso fará surgir cada vez mais diante dos nossos olhos toda a Sua figura, com todos os traços da Sua total diversidade. Desta forma começamos a ver que o percurso da Escola de Comunidade que estamos começando a fazer na companhia de Dom Giussani não é a lição sobre algo “já sabido”, mas a descoberta de um presente que acontece. De fato não o sabemos, e devemos ver acontecer Cristo entre nós para começar a saber do que se trata. Por isso lhes agradeço verdadeiramente pelo diálogo que tivemos esta noite.