Cristo é algo que me acontece agora

Página Um
Julián Carrón

Apresentação de Julián Carrón do livro de Luigi Giussani Na origem da pretensão cristã. Dia 25 de janeiro de 2012. Teatro dos Arcimboldi, Milão (Itália)

Saúdo a cada um de vocês, particularmente às personalidades civis e religiosas que participam deste momento e os muitos amigos aqui presentes e conectados nas diversas cidades. Agradeço aos representantes da Editora Rizzoli, Paolo Zaninoni e Ottavio Di Brizzi.

Escolhemos esta modalidade para continuar juntos o caminho da “Escola de Comunidade”. Depois de O senso religioso, abordaremos este ano Na origem da pretensão cristã, que é o segundo dos três volumes do “PerCurso” traçado por Dom Giussani.

“Veio um Homem, um jovem Homem, nascido num certo vilarejo, num certo lugar do mundo geograficamente especificável, Nazaré. Quando a pessoa vai à Terra Santa, àquele vilarejo, e entra naquele casebre meio escuro no qual há uma inscrição com a frase ‘Verbum hic caro factum est’ (‘O Mistério de Deus, aqui, se fez carne’), lhe dá arrepios”.
O canto Et incarnatus est – da Grande Missa de Mozart – é “a expressão mais poderosa e mais convincente, maior e mais simples de um homem que reconhece Cristo. A salvação é uma Presença: esta é a fonte da alegria e a fonte da afetividade do coração católico de Mozart, do seu coração amante de Cristo”.
Et incarnatus est – diz Dom Giussani – “é canto no estado puro, quando todo o tender do homem se funde na limpidez total, na pureza absoluta do olhar que vê e reconhece. ‘Et incarnatus est’: é contemplação e pedido ao mesmo tempo, fluxo de paz e de alegria que nasce do maravilhamento do coração quando é colocado diante do cumprimento de sua espera, do milagre da realização do seu pedido. [...]
Pudéssemos, também nós, assim como Mozart, contemplar com a mesma simplicidade e intensidade o início no mundo, da história da misericórdia e do perdão, e bebermos da fonte que é o ‘sim’ de Maria!
Este canto belíssimo nos ajuda a nos recolhermos num silêncio grato, de forma que se torna possível nascer no coração, brotar no coração a flor do ‘sim’. [...] Da forma como foi para Nossa Senhora, aquela jovem de Nazaré, diante do Menino que havia saído dela: um relacionamento sem limites enchia-lhe o coração e o tempo.
Se a intensidade religiosa da música de Mozart – uma genialidade que é dom do Espírito – penetrasse no nosso coração, a nossa vida, com todas as suas inquietações, contradições e fadigas, seria bela como a sua música” (L. Giussani, “Il divino incarnato” in Spirto gentil. Un invito all’ascolto della grande musica guidati da Luigi Giussani. Milão: Bur, 2011, pp. 54-55).
O que podemos fazer de melhor, para começar este gesto, do que escutá-lo, como contemplação e como pedido?

Et incarnatus est*

* “Et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine, et homo factus est” (“Por obra do Espírito Santo se encarnou no seio da Virgem Maria e se fez homem”, soprano Joo Cho, piano Luigi Zanardi). W.A.Mozart, Grande Missa em dó menor K.427. Ver também “Coleção Spirto Gentil”, n. 24 (2002).

É difícil encontrar outra expressão artística que seja capaz de captar melhor do que o Et incarnatus est – para dizer com Eliot – aquele “momento no tempo e do tempo, / Um momento não fora do tempo, mas no tempo, / naquilo que chamamos história: seccionando, dividindo / a esfera do tempo, um momento no tempo, mas não / como um momento do tempo. / Um momento no tempo, mas o tempo foi feito / através desse momento, pois sem significado não há / tempo, e aquele momento do tempo lhe deu o sentido” (T.S. Eliot, Coros de “A Rocha” . In: Poesia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981).
Diante deste acontecimento, Deus feito carne, que exprime toda a paixão cheia de ternura de Deus pelo homem, não podemos evitar dizer, com o salmista: “Que é o homem, para te lembrares dele, o filho do homem, para cuidares dele?” (Sl 8,5). Nada: um ramo que o vento leva embora. E, no entanto, Tu te tornastes homem para cada um de nós. Seja quem for que tiver um instante de simplicidade e deixar o anúncio cristão entrar não conseguirá evitar o mesmo sobressalto que Isabel sentiu em si quando foi visitada por Maria, que trazia Jesus no ventre. “Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou de alegria em seu ventre.” (Lc 1,41)
É o que acontece também a nós, hoje. A nós, pobrezinhos que somos, Deus feito carne é anunciado hoje. Não estamos mais sozinhos com o nosso nada. Neste momento de confusão, no qual tantos caminham tateando no escuro, a nós é dada a graça desta notícia. Quem não desejaria viver cada instante da sua vida sob a pressão desta comoção sem igual, gerada pela Sua presença?
Mas, é verdadeiramente possível?

1. Um desafio para o homem de hoje
“Um homem culto, um europeu dos nossos dias, pode acreditar, crer de verdade, na divindade do filho de Deus, Jesus Cristo?” (Cf. F.M. Dostoiévski, Os Demônios. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 1119). Esta frase de Dostoiévski sintetiza o desafio diante do qual a fé em Jesus Cristo se encontra hoje. Este desafio não é genérico, não coloca a questão da possibilidade absoluta da fé em Cristo. O aspecto decisivo da pergunta do escritor russo está na sua referência a um contexto bem preciso: a época contemporânea. E tem como destinatário um tipo concreto de homem: um indivíduo culturalmente formado, alguém que não renuncia a exercitar a sua razão em todo o seu poder, em toda a sua exigência de liberdade, em toda a sua capacidade afetiva. Ou seja, um homem que não renuncia a nada da sua humanidade. Um homem que traz nas costas uma história cultural, uma herança exigente, que é influenciada por um racionalismo penetrante, por uma confiança espontânea no método científico e por uma suspeita por tudo aquilo que não se submete a uma razão como medida. Para um tipo humano com estas características, é possível crer, hoje, naquilo que Cristo disse de Si mesmo?
Em outras palavras, a fé tem alguma possibilidade de agarrar, quer dizer, de fascinar, de atrair, de convencer os homens do nosso tempo?

Mas, esta pergunta não diz respeito apenas àqueles que ainda não encontraram a Cristo, refere-se também a nós, para quem, anos depois de O ter encontrado, Cristo continua distante do coração, como nos recordava Dom Giussani em 1982:
“Vocês cresceram: na medida em que garantiram para si mesmos uma capacidade humana na própria profissão”, mas “existe, como que possível, uma distância de Cristo (comparando à emoção de alguns anos atrás, especialmente de certas circunstâncias de alguns anos atrás). Existe como que uma distância de Cristo, exceto em determinados momentos. Quero dizer: existe uma distância de Cristo, exceto quando vocês se põem a rezar; existe uma distância de Cristo, exceto quando se põem, vamos supor, a cumprir algumas ações em Seu nome, em nome da Igreja ou em nome do Movimento. É como se Cristo estivesse distante do coração. Com o velho poeta do Renascimento italiano se diria: ‘Ocupado com tantos outros afazeres’, o nosso coração está como que isolado, melhor, Cristo fica como que isolado do coração, exceto nos momentos de certas ações (um momento de oração, ou um momento de compromisso, quando acontece uma reunião geral, quando precisa conduzir uma Escola de Comunidade, etc)”.
“Esse distanciamento de Cristo do coração, exceto quando a Sua presença pareça agir em certos momentos, gera também uma outra distância, que se revela num ulterior e definitivo embaraço entre nós – falo também de maridos e esposas –, num ulterior e definitivo embaraço recíproco. [...] A distância de Cristo do coração torna distante o aspecto definitivo do coração de um do aspecto definitivo do coração do outro, exceto nas ações comuns (sustentar a casa, cuidar dos filhos, etc.). Existe um relacionamento, indubitavelmente existe um relacionamento recíproco, mas é só nas operações, nas obras, nos gestos comuns nos quais as pessoas se encontrem ou vocês se encontrem. Mas quando vocês se encontram na ação comum, esta, levemente – muito ou pouco – torna obtuso o horizonte do seu olhar ou do seu sentir” (L. Giussani, “A familiaridade com Cristo”. Passos-Litterae Communionis, n. 80, 2007, p. 2).
Que isto não se refira apenas ao passado, já era assinalado recentemente por um amigo: “Tendo me encontrado com comunidades e com pessoas, no último período, me dei conta disto: ‘A realidade é positiva’ foi, de fato, desde o Dia de Início de Ano, o ‘fio condutor’ que, em seguida, foi documentado também com o panfleto sobre a crise, como juízo para todos sobre a situação que vivemos. Mas corre o risco de ser vazio, não tanto de compreensão, mas de certeza existencial. Às vezes, sinto uma espécie de desconforto: existe um triunfalismo naquilo que fazemos que contrasta com a tragicidade de uma existência sem esperança. Nós [tantas vezes] não estamos seguros no caminho que fazemos diante da realidade assim como é. Estamos de acordo com aquele juízo, entendemos, mas não estamos convencidos, não estamos verdadeiramente ligados afetivamente à verdade da nossa vida”. Basta observar as reações de tantos entre nós diante da afirmação da positividade da realidade para ver a pertinência deste juízo.
Todos sabemos bem quanto caminho ainda falta percorrer para vencer a distância na qual mantemos o acontecimento de Cristo presente. Por isso, a pergunta que acabamos de nos fazer adquire para nós toda a sua dramaticidade: a fé tem alguma possibilidade real de vencer este distanciamento e enraizar em nós?

Numa conferência proferida em 1996, o então cardeal Ratzinger respondia que a fé ainda pode “ter sucesso”, “porque ela corresponde à natureza do homem. [...] No homem vive indelével o anseio do infinito” (Cf. J. Ratzinger, Fé, Verdade, Tolerância. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2007, p. 128). Com estas palavras, indicava, ao mesmo tempo, a condição necessária: o cristianismo precisa encontrar o humano que vibra em cada um de nós para poder mostrar todo o seu potencial, toda a sua verdade.
O livro que apresentamos é uma tentativa de assegurar a realização desta posição, para responder a uma inevitável exigência de razoabilidade.
Dom Giussani enfrenta a questão desde o prefácio: “Na origem da pretensão cristã quer ser a tentativa de definir a origem da fé dos apóstolos. Nele eu quis expressar a razão pela qual um homem pode acreditar em Cristo: a profunda correspondência humana e razoável entre suas exigências e o acontecimento do homem Jesus de Nazaré. Procurei, portanto, mostrar o quanto é evidente e razoável apegar-se a Cristo, sendo a pessoa, assim, conduzida pela experiência do encontro com a Sua humanidade em direção à grande questão da Sua divindade. Um raciocínio abstrato não é o que faz crescer; o que faz se expandir a mente é encontrar, na humanidade, um momento de verdade que se alcançou e ao qual se deu expressão. É essa grande inversão de método que marca a passagem do senso religioso à fé: não é mais uma busca cheia de incógnitas, mas a surpresa de um fato acontecido na história humana” (L. Giussani, Na origem da pretensão cristã. São Paulo: Comp. Ilimitada, 2012, p. 6).
Para poder compreender a novidade desta posição é preciso exatamente se dar conta disto: não é um raciocínio abstrato que alarga a razão para permitir a ela o reconhecimento de Cristo, mas é a correspondência entre o homem e Cristo, que se realiza num encontro real, histórico, no presente; uma correspondência na qual consiste a razoabilidade da própria fé. É isto que tornará simples o caminho da fé. Basta um encontro no qual se possa surpreender a correspondência. E será exatamente quando este encontro não acontecer – por causa da redução do cristianismo a discurso, doutrina ou moral, de um lado, e a correlativa redução da humanidade do homem, de outro – que entre o homem e Cristo se estabelecerá uma perfeita justaposição, se escavará o sulco de uma profunda estranheza (é uma parábola que, desde a modernidade, chega até nós): de um distanciamento, precisamente.
Com esta observação, Dom Giussani nos coloca em guarda contra o maior risco que podemos correr ao iniciar o trabalho de Escola de Comunidade deste ano. No que consiste o risco? Para a grande maioria de nós, Na origem da pretensão cristã é um livro conhecido. Portanto, a tentação do “já sabido” é mais presente do que nunca. E assim podemos sucumbir facilmente à redução do cristianismo a “doutrina”. Em geral esperamos a novidade do diferente, da leitura de coisas diferentes das habituais. Porém, ao contrário, a novidade não está na diferença (de trabalho, ou de marido e mulher), mas no acontecer daquilo que desejamos. E não há acontecimento maior do que aquele no qual encontramos a correspondência às exigências do nosso coração. É apenas o reacontecer deste acontecimento que será capaz de vencer o distanciamento de Cristo do coração.
Se Cristo não reacontecer como acontecimento, quanto mais o tempo passa, mais vence em nós aquela “equivocidade do ‘tornar-se adulto’” de que fala Giussani: “Com efeito, aquilo que nós recebemos se sedimenta de tal forma que dá também os seus frutos, mas o coração, justamente o coração, no sentido literal da palavra, [...] é como se estivesse sem jeito com Cristo, é como se não desse continuidade a uma familiaridade pressentida num certo momento da nossa existência, mesmo com toda a sentimentalidade característica da idade. Existe um embaraço que é distanciamento dEle, que é como uma não presença Sua, um ser que não determina o coração. Não nas ações, nelas pode ser determinante (vamos à igreja, ‘fazemos’ o Movimento, talvez até rezemos Completas, fazemos Escola de Comunidade, nos comprometemos com a Caritativa, fazemos um grupo aqui, um grupo ali e nos lançamos, nos projetamos também na política). Não falta nas ações: nas ações, em tantas ações, pode ser determinante, mas e no coração? No coração, não!” (L. Giussani, “A familiaridade com Cristo”, op. cit., pp. 2-3).
Então, a verdadeira questão é: o que é necessário para que o reconhecimento da correspondência de Cristo ao coração seja o mais transparente possível, ou seja, para que a experiência cristã se realize?

2. Uma tomada de consciência terna e apaixonada de mim mesmo
Que Dom Giussani esteja bem consciente dos requisitos necessários para que se realize esta correspondência fica claro já no primeiro parágrafo do livro, que, para nós, contém toda a genialidade metodológica da sua posição. “Não seria possível dar-se conta plenamente do que signifique Jesus Cristo sem antes nos darmos conta da natureza daquele dinamismo que faz com que o homem seja aquilo que é. Com efeito, Cristo se propõe como resposta àquilo que ‘eu’ sou e apenas uma tomada de consciência atenta, mas também terna e apaixonada, de mim mesmo pode fazer com que eu me escancare e me disponha a reconhecer, admirar, agradecer, e vivenciar Cristo. Sem essa consciência [daquilo que sou], até mesmo o nome de Jesus Cristo não passa de um simples nome” (L. Giussani, Na origem da pretensão cristã, op. cit., p. 9).
Para que o homem possa se dar conta plenamente, portanto, do que Jesus Cristo quer dizer, é preciso que cada um de nós esteja diante dEle com todo o seu humano. Sem esta humanidade, sem esta consciência atenta, terna e apaixonada de mim mesmo, não será possível que eu reconheça Cristo. A razão é muito simples: Cristo se coloca como resposta àquilo que eu sou; por isso, sem consciência de mim mesmo, até mesmo o nome de Jesus Cristo não passa de um simples nome.
É difícil encontrar uma valorização da pessoa maior do que aquela que o cristianismo propõe. Cristo não pretende entrar às escondidas na vida da pessoa, quase tirando proveito de uma distração: Ele quer entrar na vida do homem pela porta principal, isto é, passando através da nossa humanidade, um humano plenamente consciente, feito de razão e liberdade. Cristo se submete à verificação do critério originário do homem: o coração. Sem esta comparação não existe experiência cristã, nem o cristianismo teria alguma possibilidade de sucesso. A razão foi identificada com clareza pelo teólogo norte-americano Reinhold Niebuhr: “Nada é tão absurdo quanto a resposta a uma pergunta que não se coloca” (R. Niebuhr, Il destino e la storia. Antologia dei scritti. Milão: Bur, 1999, p. 66).
Se o homem tem a estrutura original para reconhecer Cristo, qual é então o problema? Que dificuldade torna problemático este reconhecimento? A questão é que a nossa estrutura original é, frequentemente, sepultada sob o sedimento do influxo da sociedade e da história que reduz as nossas exigências originais. Se o homem não for despertado do seu torpor, libertado da sua medida, de uma versão adulterada ou reduzida das próprias exigências induzida pelo contexto, será, em grande medida, impedido ou freado no surpreender a correspondência que lhe permite reconhecer Cristo.
Podemos reconhecer também nós esta redução no embaraço que experimentamos quando nos deparamos com o “décimo leproso” (cf. Lc 17,12-19), ou com a reação de Cristo diante da exultação dos discípulos com o seu sucesso missionário (cf. Lc 10,17-20): nós também nos contentamos com a cura, da mesma maneira que os outros nove leprosos, ou com o sucesso, como os discípulos. Não sentimos necessidade de algo mais. E assim o coração fica distante de Cristo.
A esta situação existencial do homem, fruto de razões históricas, um cristianismo reduzido a discurso não é capaz de dar resposta, muito menos se for reduzido a ética. Mas esta é também a grande oportunidade que a situação atual oferece ao cristianismo: a de se tornar consciente de que nenhuma de suas variações redutivas é capaz de responder à urgência do presente do homem. Porque, para captar o valor de uma personalidade moral e religiosa, é preciso que esteja viva em nós uma genialidade humana, ou seja, a “abertura original da alma, como uma atitude original de disponibilidade e de dependência, não de auto-suficiência” (L. Giussani, Na origem da pretensão cristã, op. cit., p. 116). E somente um cristianismo que se proponha na sua natureza original de acontecimento na história será capaz de suscitar aquele humano que permite ao homem reconhecê-lo, perfurando a crosta que constantemente o recobre.

3. O cristianismo: um fato
Num trecho de sua Vida de Jesus, François Mauriac descreve a primeira manifestação na cena do mundo daquela presença que – de repente – se impôs como “problema” e que, desde então, percorreu a história até hoje: “Depois de quarenta dias de jejum e contemplação, ei-Lo de volta ao lugar do batismo. Sabia com antecedência para qual encontro: ‘O Cordeiro de Deus!’ disse o profeta vendo-O se aproximar (e, certamente, sussurrando...). Desta vez, dois de seus discípulos estavam com ele. Olharam Jesus, e aquele olhar bastou: seguiram-No até o lugar onde morava. Um dos dois era André, o irmão de Simão; o outro João, filho de Zebedeu: ‘Jesus, tendo-o olhado, amou-o...’. O que está escrito sobre o jovem rico, que se afastou triste, está subentendido aqui. O que Jesus fez para retê-los? ‘Jesus voltou-se para trás e, vendo que eles o seguiam, perguntou-lhes: Que procurais? Eles responderam: Rabi, onde moras? Ele respondeu: Vinde e vede! Foram, viram onde morava e permaneceram com ele aquele dia. Era por volta das quatro horas da tarde’” (F. Mauriac, Vita di Gesù. Milão: Mondadori, 1974, p. 29).
Perguntemo-nos: como João e André foram conquistados tão repentinamente assim, até o ponto de reconhecerem ter encontrado o Messias? “Há uma aparente desproporção entre a forma extremamente simples do ocorrido e a certeza desses dois. Se esse fato aconteceu, reconhecer aquele homem, quem era aquele homem, não completa e detalhadamente, mas em seu valor único e incomparável (‘divino’), devia mesmo ser fácil. Por que era fácil reconhecê-lo? Em virtude de uma excepcionalidade incomparável” (L. Giussani - S. Alberto - J. Prades, Generare tracce nella storia del mondo. Milão: Rizzoli, 1998, p. 10).
O que significa “excepcional”? Quando podemos definir algo como “excepcional”? “Quando corresponde adequadamente às expectativas originais do coração, por mais confusa e nebulosa que possa ser a sua consciência” (Ibidem, idem), como quando vemos a beleza excepcional de uma paisagem de montanha, de uma mulher ou de um gesto cheio de ternura e de caridade: é fácil reconhecê-lo por sua atração vencedora. É exatamente esta excepcionalidade que, acontecendo, desperta a experiência original do homem, ainda que sua consciência esteja confusa e nebulosa, para que ele, assim despertado, possa emitir um juízo sobre aquela mesma excepcionalidade.

Como podemos definir um fenômeno como aquele que foi descrito?
“O cristianismo é um acontecimento. Não existe outra palavra para indicar sua natureza: a palavra lei não serve, nem tampouco as palavras ideologia, concepção ou projeto. O cristianismo não é uma doutrina religiosa, uma série de leis morais, um conjunto de ritos. O cristianismo é um fato, um acontecimento: todo o resto é consequência.” Por isso, a palavra “acontecimento” é decisiva: “Ela indica o método escolhido e usado por Deus para salvar o homem: Deus se fez homem no seio de uma jovem entre quinze e dezessete anos chamada Maria, no ‘seio que abrigou [...] a meta da esperança mais profunda’, como diz Dante. A forma como Deus entrou em relação conosco para nos salvar é um acontecimento, não um pensamento ou um sentimento religioso” (Ibidem, pp. 12-13).

Mas, atenção, antes de prosseguir, quero enfrentar logo a tentação à qual estamos expostos. Pelo menos pela frequência com a qual já escutamos isto de Dom Giussani, nenhum de nós negaria que o cristianismo é um acontecimento. Mas, frequentemente, reduzimos o acontecimento a algo do passado – quer se trate do início da história cristã, dois mil anos atrás, quer se trate do momento do nosso encontro pessoal –, quando não o reduzimos simplesmente a uma categoria abstrata. Mas, se for reduzido a um fato do passado ou a uma categoria, o que resta do cristianismo no presente é somente a ética. Como quando acaba o acontecimento do amor entre duas pessoas, e sobram apenas as coisas a serem feitas, as tarefas a serem realizadas. O fascínio já ficou para trás e o distanciamento entre os dois cresce.
Então, o que quer dizer que a natureza do cristianismo, assim como do se apaixonar, é acontecimento? Dom Giussani nos respondeu com as palavras do Cartaz da última Páscoa: “O acontecimento não identifica somente uma coisa que aconteceu e com a qual tudo teve início, mas é aquilo que desperta o presente, define o presente, dá conteúdo ao presente, torna possível o presente. O que se sabe ou o que se tem converte-se em experiência se aquilo que se sabe ou se tem é algo que nos é dado agora: há uma mão que no-lo oferece agora, há um rosto que vem avançando agora, há sangue que se derrama agora, há uma ressurreição que tem lugar agora. Fora deste ‘agora’ não existe nada! O nosso eu não pode ser movido, comovido [até ficar fascinado], ou seja, transformado, a não ser por uma contemporaneidade: um acontecimento. Cristo é algo que me acontece agora”. Se compararmos o modo com o qual tantas vezes falamos do cristianismo e esta descrição que Dom Giussani dá, podemos medir a distância que provoca em nós o fato de tomá-lo como óbvio, como algo já sabido, e podemos ver o quanto somos inconscientes da redução que realizamos quando agimos assim. “Então, para que aquilo que sabemos - Cristo, todo o discurso sobre Cristo – seja experiência, é necessário que seja um presente que nos provoca e percute: é um presente, como para André e para João foi um presente. O cristianismo, Cristo, é exatamente aquilo que foi para André e João quando iam atrás dEle; imaginem quando Se voltou, e como ficaram impressionados! E quando foram a Sua casa... É sempre assim até agora, até este momento!” (Comunhão e Libertação, Cartaz de Páscoa, 2011).
Sem esta contemporaneidade não há desenvolvimento, e o acontecimento se distancia no passado, ficando cada vez mais atrás no tempo. Assim, os anos que passam, ao invés de preencherem o vazio que distancia o coração de Cristo, o alargam.
Bem diferente é a experiência que Dom Giussani nos testemunhou, ainda mais na medida em que os anos de sua vida passavam: “Deparar-se com uma presença de humanidade diferente vem antes não apenas no início, mas em cada um dos momentos que se seguem ao início: um ano ou vinte anos depois. O fenômeno inicial – o impacto com uma diversidade humana, o maravilhamento que nasce desse impacto – está destinado a ser o fenômeno inicial e original de qualquer momento do desenvolvimento. Pois não se dá nenhum desenvolvimento se esse impacto inicial não se repete, ou seja, se o acontecimento não continua a ser contemporâneo. Ou o impacto se renova ou nada progride, e logo a pessoa teoriza o acontecimento que ocorreu [se torna categoria], e tateia em busca de pontos de apoio que substituam Aquilo que realmente está na origem da diversidade. O fator que está na origem é sempre o impacto com uma realidade humana diversa. Portanto, se o que aconteceu no início não volta a acontecer e se renova, não se realiza verdadeira continuidade: se a pessoa não vive agora o impacto com uma realidade humana nova, não entende o que lhe aconteceu antes. Só se o acontecimento reacontece agora é que o acontecimento inicial se esclarece e se aprofunda e, assim, se estabelece uma continuidade, um desenvolvimento” (L. Giussani, “Algo que vem antes”. Passos-Litterae Communionis, n. 100, dez/2008, p. 2).
Dom Giussani conclui: “A continuidade com o que aconteceu no início só se realiza, portanto, mediante a graça de um impacto sempre novo e maravilhado, como se fosse a primeira vez. Do contrário, em lugar desse maravilhamento dominam os pensamentos que nossa evolução cultural nos torna capazes de organizar, as críticas que nossa sensibilidade formula ao que vivemos e ao que vemos as outras pessoas viverem, a alternativa que pretenderíamos impor, etc” (Ibidem, idem).

Por isso, a modalidade escolhida pelo Mistério para nos alcançar – um fato, um acontecimento, não os nossos pensamentos ou os nossos sentimentos – é a mais adequada para a situação histórica do homem e é a única capaz de vencer o nosso distanciamento dEle:
“Para fazer-Se reconhecer, Deus entrou na vida do homem como homem, segundo uma forma humana, de forma que o pensamento, a imaginação e a afetividade do homem [a nossa humanidade] foram ‘bloqueados’, magnetizados por Ele. O acontecimento cristão tem a forma de um ‘encontro’: um encontro humano na realidade banal de todos os dias”, capaz de magnetizar toda a nossa afeição e toda a nossa liberdade. O acontecimento cristão não espera que o homem mude, não solicita preparações nem precondições: ele irrompe e acontece, como o apaixonar-se. A Sua presença, com efeito, exatamente por sua excepcionalidade, ou seja, por sua capacidade única de correspondência às exigências originais do coração, é capaz de despertar tais exigências segundo todo seu alcance, tantas vezes sepultada sob mil sedimentos, e escancarar toda a razão do homem, magnetizando toda a sua afetividade. Diante da presença da resposta a pergunta se liberta em toda a sua original e infinita profundidade. “O que caracteriza o fenômeno do encontro é uma diferença qualitativa, uma diferença de vida perceptível. O encontro, que é deparar-se com uma diversidade que atrai porque corresponde ao coração, passa, por conseguinte, pela comparação e pelo juízo da razão, e suscita a liberdade, em sua afetividade” (L. Giussani - S. Alberto - J. Prades, Generare tracce nella storia del mondo, pp. 24-25).
Isto é exatamente o que Dom Giussani chama de reviravolta no método religioso: “Admitindo a hipótese de que o mistério tenha penetrado na existência do homem, falando com ele em termos humanos, a relação homem-destino não será mais baseada no esforço humano como construção e imaginação; será mais do que o estudo de uma coisa distante, enigmática, mais do que uma tensão de espera diante de uma coisa ausente. Será, pelo contrário, deparar-se com uma presença. Se Deus tivesse manifestado na história humana uma vontade particular, ou aberto Ele mesmo uma estrada para chegar a Ele, o problema central do fenômeno religioso não seria mais a tentativa – embora ela expresse a maior dignidade do homem – de ‘figurar-se’ o Deus. O problema estaria todo no puro gesto da liberdade que aceita ou recusa”. Eis, portanto, no que consiste a reviravolta de método: “O centro, o ponto axial aqui não estaria mais no esforço de uma inteligência e de uma vontade construtiva, de uma exaustiva fantasia, de um complicado moralismo, mas na simplicidade de um reconhecimento: uma atitude análoga à de quem, vendo um amigo chegar, o identifica entre os outros e o cumprimenta” (L. Giussani, Na origem da pretensão cristã, op. cit., p. 44).
Isto indica o início de uma aventura do conhecimento: “Quando se encontra uma pessoa importante para a nossa vida, há sempre um primeiro momento em que o pré-sentimos; alguma coisa dentro de nós se curva à evidência de um reconhecimento iniludível: ‘é ele’, ‘é ela’. Mas só o espaço conferido à repetição dessa documentação confere à impressão um peso existencial. Isto é, só a convivência faz com que essa impressão vá penetrando cada vez mais profunda e radicalmente em nós, até que, num certo momento, torna-se certeza. [...] A convivência [dos primeiros discípulos com Jesus] confirmará aquela excepcionalidade, aquela diversidade que desde o primeiro momento os impressionara. Com a convivência, a cada nova confirmação vai se ampliando uma certeza”. Para Dom Giussani “é tão verdade que o conhecimento de um objeto requer espaço e tempo, que, com maior razão, essa lei não pode ser desmentida por um objeto que se pretende único. Mesmo os primeiros a encontrar essa unicidade tiveram de seguir essa estrada” (Ibidem, pp. 70-71).
Com a habitual genialidade, Dom Giussani nos apresenta duas questões de método que são muito preciosas para alcançar uma certeza existencial sobre o Mistério que entrou na história: a primeira se refere ao fato de que “eu estarei tanto mais habilitado a ter certeza sobre uma outra pessoa quanto mais estiver atento à sua vida, isto é, quanto mais compartilhar da vida daquela pessoa. A necessária sintonia com o objeto que desejamos conhecer é uma disposição viva que se constrói no tempo, na convivência. Por exemplo, no Evangelho, quem chegou a compreender que naquele Homem era preciso ter confiança foi quem o seguiu e compartilhou da Sua vida, e não a multidão que O cercava a fim de ser curada”. O segundo elemento que Dom Giussani nos convida a considerar se refere ao fato de que, “quanto mais alguém é potentemente humano, tanto mais é capaz de chegar a certezas sobre um outro a partir de poucos indícios. Nisso reside justamente o gênio humano. Rousselot o sublinha com a beleza do seguinte texto: ‘Quanto mais ágil e penetrante uma inteligência, tanto mais lhe há de bastar um tênue indício para levá-la com certeza a uma conclusão. (...) É por isso que uma incontestável tradição que remonta ao próprio Evangelho louva aqueles que não têm necessidade de prodígios para crer. Não são louvados porque acreditaram sem razão: isso seria deplorável. Neles se veem almas realmente iluminadas e capazes de perceber uma grande verdade através do mínimo indício’. Essa inteligência do mínimo indício, ainda que o homem, a um nível fundamental, disponha dela naturalmente para sobreviver, precisa de tempo e de espaço para evoluir. Esse é um dote que a ‘pretensão de Jesus’ requer para poder ser entendida. A multiplicação dos sinais, em relação à Sua pessoa, conduz à conclusão perfeitamente razoável de que nEle posso confiar” (L. Giussani, Na origem da pretensão cristã, op. cit., pp. 60-61). Foram exatamente os sinais, que apareceram na convivência com Ele, que fizeram a pergunta irromper: “Quem é este?”. A esta pergunta não conseguiam encontrar uma resposta mais adequada do que aquela oferecida por Ele mesmo.
Esta última observação nos introduz ao grande tema da fé. Com efeito, “a atitude de quem é tocado pelo acontecimento cristão, o reconhece e adere a ele, se chama ‘fé’. A posição na qual nos encontramos diante do acontecimento de Cristo é idêntica a de Zaqueu diante daquele Homem que parou sob a planta na qual ele havia subido e lhe disse: ‘Desce correndo, vou à tua casa’ [imaginem como deve ter se sentido olhado]. É a mesma posição da viúva, cujo único filho havia morrido, que ouviu Jesus dizer [com toda a ternura com a qual a olhava], de um modo que, para nós, parece tão irracional: ‘Mulher, não chores!’ – é absurdo, de fato, dizer a uma mãe cujo único filho morreu, ‘mulher, não chores!’. Para eles e também para nós trata-se da experiência da presença de algo de radicalmente diferente das nossas imagens, e ao mesmo tempo de total e originalmente correspondente às expectativas profundas da nossa pessoa. [...] Ter a sinceridade de reconhecer, a simplicidade de aceitar e a afeição de se apegar a uma tal Presença, esta é a fé. [...] A fé é essencialmente reconhecer a diversidade de uma Presença, reconhecer uma Presença excepcional, divina. O excepcional não acontece normalmente; de forma que, quando acontece, a pessoa diz: ‘É outra coisa! Estou diante de um poder sobre-humano!’. Quem sabe quantas vezes a Samaritana terá sentido sede da atitude com a qual Cristo a tratou naquele instante [e como O terá buscado inconscientemente em todos os maridos que teve], sem nunca ter se dado conta antes; quando aconteceu, reconheceu imediatamente” (L. Giussani - S. Alberto - J. Prades, Generare tracce nella storia del mondo, op. cit., pp. 28-31).
Uma fé concebida desta maneira é o que há de mais distante de um “crer” estranho ao humano: ela implica, de fato, um percurso de conhecimento que envolve razão, afeição, liberdade diante de um fato sem comparações! Por isso, “a fé pertence ao acontecimento porque, enquanto reconhecimento amoroso da presença de algo excepcional, é um dom, é uma graça. Tal como Cristo se dá a mim num acontecimento presente, da mesma forma vivifica em mim a capacidade de abraçá-lo e de reconhecê-lo, com sua excepcionalidade. Assim, a minha liberdade aceita esse acontecimento, aceita reconhecê-lo” (Ibidem, p. 31).
Mas, como posso saber que aquilo a que a fé adere é verdadeiro, é real?

4. Uma nova humanidade: verificação da fé cristã
O que ocorre quando me acontece o acontecimento cristão? O florescimento do humano: “O cristianismo é um acontecimento com que o eu se depara e que descobre ser-lhe ‘consanguíneo’; é um fato que revela o eu a si mesmo” (Ibidem, p. 13). “Quando encontrei Cristo me descobri homem”. Esta frase do orador romano Mario Vittorino exprime bem o que acontece quando a fé é uma experiência real. Nesta exaltação do humano reside toda a razoabilidade da fé cristã.
O acontecimento de Cristo reconhecido (fé) faz com que se viva tudo de uma maneira diferente. E exatamente esta modalidade nova, “subversiva e surpreendente” (L. Giussani, Dall’utopia alla presenza (1975-1978) . Milão: Bur, 2006, p. 330), de viver o cotidiano se torna a verificação da verdade do encontro feito: Cristo exalta a razão, Cristo exalta a afeição, Cristo exalta a liberdade! “Qual é a razão que a fé tem? A razão que a fé tem é que ela realiza a minha humanidade com as suas exigências, transforma para melhor, faz a minha humanidade caminhar” (Ibidem, p. 359), exalta todo o meu humano. E quem não desejaria para si semelhante exaltação?
Estamos juntos nesta aventura, para nos sustentarmos uns aos outros. Para que a experiência na qual fomos envolvidos não se fossilize numa doutrina, o nosso sustento não pode ter, ao longo deste ano, outra lógica diferente da do testemunho. Mas isso não muda o nível total e definitivamente pessoal da história: à pretensão cristã só posso responder eu diante do Senhor. O cristianismo – insiste Dom Giussani – “acontece em comunhão, mas se joga todo na liberdade da pessoa” (Ibidem, p. 327). “A questão está toda na fé real da pessoa. [...] Em consequência, o único e dramático problema é a fé pessoal, a fé como resposta às vicissitudes humanas; este é o único e dramático problema de cada dia e de cada hora, porque a fé é um desafio à liberdade; não existe nada de mais dado, de mais doado do que a fé, e não há nada menos automático do que ela” (L. Giussani, Educar é um risco. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2000, pp. 209-210).
A iniciativa de Cristo na nossa vida, o Seu acontecimento, suscita e solicita a nossa liberdade, a desafia como nada mais, no início e em cada momento do caminho. Dom Giussani o disse com clareza: “Jesus Cristo não veio ao mundo para se substituir ao trabalho humano, à liberdade humana ou para eliminar a provação humana, condição existencial da liberdade. Ele veio ao mundo para chamar a atenção do homem para o fundo de todas as questões, para sua estrutura fundamental e para sua situação real. De fato, todos os problemas que, pela provação da vida, o homem é chamado a resolver complicam-se ao invés de se solucionarem, se certos valores fundamentais não são salvaguardados. Jesus Cristo veio chamar o homem para a verdadeira religiosidade, sem a qual toda pretensão de solução é uma mentira. O problema do conhecimento do sentido das coisas (verdade), o problema do uso das coisas (trabalho), o problema da consciência do que as coisas são (amor) e o problema da convivência humana (sociedade e política), não são direcionados de forma justa e, por isso, geram cada vez mais confusão na história dos indivíduos e da humanidade, na medida em que não se fundamentam na religiosidade, na tentativa de sua solução (‘Quem me segue terá a vida eterna e o cêntuplo nesta terra’)” (L. Giussani, Na origem da pretensão cristã, op. cit., p. 143): o cêntuplo em termos de afeição, de razão e de libertação é a razoabilidade em ato da fé, e constitui a superação de toda justaposição entre a divindade de Cristo e a minha humanidade, entre o meu coração e Cristo.
Deste modo, Cristo se submete à verificação do nosso coração: não nos pede que acreditemos nEle “a priori”. Por isso, a “pretensão cristã” é o desafio mais imponente diante do qual um homem pode se encontrar, porque mobiliza todos os recursos que tem à sua disposição – razão, afeição e liberdade – para realizar uma verificação. Ninguém pode tomar o nosso lugar, nem mesmo Cristo o fez:
“A fé não pode trapacear, não pode lhe dizer ‘é assim’, obtendo o seu consentimento nu e cru gratuitamente. Não! A fé não pode trapacear porque é, de algum modo, ligada à sua experiência: no fundo, é como se ela tivesse que comparecer diante do tribunal onde você é o juiz, através da sua experiência. Porém, você também não pode trapacear, porque para poder julgá-la você deve usá-la, para poder ver se ela transforma a vida você deve vivê-la seriamente; e não uma fé como você a interpreta, mas a fé como lhe foi transmitida, a fé autêntica. Por isso, o nosso conceito de fé tem um nexo imediato com a hora do dia, com a prática ordinária da nossa vida. [...] Se você, se apaixonando pela jovem, ou mesmo tendo vivido tantas vezes a experiência do se apaixonar, nunca percebeu de que maneira a fé muda aquele relacionamento, você nunca se surpreendeu dizendo: ‘Olhe como a fé, iluminando este meu relacionamento, o muda, o muda para melhor!’; se você nunca pôde dizer algo do gênero (e, no lugar da jovem, você poderia colocar qualquer outra coisa: o pai, a mãe, o estudo, o trabalho, as circunstâncias, etc.), se você nunca pôde dizer ‘olhe como a fé torna mais humano o meu viver’, se você nunca pôde dizer isto, a fé nunca se tornará convicção e nunca se tornará construtiva, nunca gerará nada, porque não tocou o seu eu profundo” (L. Giussani, L’io rinasce in un incontro (1986-1987) . Milão: Bur, 2010, pp. 300-301).
Há um ano, na apresentação de O senso religioso, havíamos proposto viver o senso religioso como verificação da fé, buscando responder à preocupação de Dom Giussani: “nós cristãos, no clima moderno, fomos afastados não das fórmulas cristãs, diretamente, não dos ritos cristãos, diretamente, não das leis do decálogo cristão, diretamente. Fomos desligados do fundamento humano, do senso religioso. Temos uma fé que não é mais uma religiosidade. Temos uma fé que não responde mais como deveria ao sentimento religioso; ou seja, temos uma fé não consciente, uma fé não mais inteligente de si mesma” (L. Giussani, “La coscienza religiosa nell’uomo moderno”, pro manuscripto. Chieti, 21 de novembro de 1985, p. 15).
Hoje, de forma análoga, propomos nos manter na mesma perpectiva de verificação abordando Na origem da pretensão cristã. Mas, o que significa? Qual é a verificação de que Cristo, como acontecimento presente, entrou na nossa vida? O realizar-se do humano, o cêntuplo de razão, afeição, liberdade, dissemos: isto continua sendo a essencial e irrenunciável verificação da razoabilidade da fé, da verdade da proposta cristã, a evidência da sua credibilidade. Mas o centro dessa verificação é, através da mudança, o incremento da fé mesma, do reconhecimento amoroso da Sua presença. “A Tua presença vale mais do que a vida”. Voltar a procurá-Lo, como fez o décimo leproso, vale mais do que a cura; ser escolhido, como aconteceu com os discípulos, vale mais do que o sucesso! O cume da verificação é o surgir de uma espera, de um conhecimento amoroso que cresce com o crescimento da experiência de correspondência, é uma afeição que abraça todas as outras afeições.
No coração do cêntuplo experimentado, domina o aprofundar-se do relacionamento com Cristo: uma familiaridade, uma tensão para afirmá-Lo, uma facilidade para reconhecê-Lo (“Mas, é o Senhor!”, dizia São João). A mudança mais profunda é a fé mesma. No encontro contínuo e cotidiano com a Sua presença real encontra resposta e, ao mesmo tempo, se exalta e se amplifica a nossa pergunta, a nossa sede infinita, e portanto se torna mais fácil, num certo sentido mais “inevitável”, o reconhecê-Lo como o único capaz de responder. Somente assim pode ser finalmente vencida a distância entre o coração e Cristo.
O sentido do caminho deste ano poderia ser resumido com uma frase de São Paulo: “Prossigo meu caminho até alcançar a Cristo, por quem já fui alcançado” (cf. Fl 3,12). Cada um de nós foi alcançado por Cristo. Quanto mais a pessoa é alcançada, tanto mais corre para alcançá-Lo ainda. O que se persegue não é mais, em última instância, nem mesmo a mudança, ou seja, uma medida nossa do cêntuplo, mas a Sua presença, o relacionamento com Ele, como acontece em cada relacionamento amoroso plenamente humano: nada satisfaz, a não ser a presença da pessoa amada. Isto coloca no mundo uma figura de homem irredutível, que não se contenta com nenhum objetivo “intermediário”, com nenhuma cura ou sucesso, sempre correndo, atraído pela Sua presença, e por isso livre ator da história, reconstrutor indomável de casas destruídas. E isto poderá ser a nossa contribuição para a sociedade.

Dom Giussani sempre nos recomendou, para o nosso caminho, um gesto que sintetiza todo o conteúdo do acontecimento cristão: o Angelus. Peçamos que reaconteça em nós sempre mais, a cada vez que realizemos este gesto. Será um sinal claro do nosso caminhar.

Angelus

Agradeço a todos por terem escutado e participado.