Deus e a existência

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Meditação de Luigi Giussani nos Exercícios Espirituais da Fraternidade de Comunhão e Libertação com o tema: O milagre da mudança. Rímini, 25 de abril de 1998


“Deus é tudo em tudo” 1. Como isto se torna válido, incidente na vida? Pois uma afirmação que não seja incidente na vida é abstrata, fica abstrata, ou então parece um pouco absurda. Gostaria de dizer, antes de mais nada, que a afirmação “Deus é tudo em tudo” é a conseqüência impressionante à qual conduz a razão, pelo menos quando a razão é entendida segundo a experiência realisticamente natural que nós fazemos dela, portanto tal como é afirmada por uma filosofia sã e adequada ao homem. É impressionante para mim o fato de termos começado a meditar ou a rever o sentido profundo que esta fórmula de São Paulo (“Deus tudo em tudo”) tem como expressão da razão, como oportunidade para afirmar o valor da razão. É impressionante também do ponto de vista estritamente ético, pois o Senhor nos fez de uma certa maneira e a tarefa que devemos procurar responder na vida é realizar esta maneira como Deus nos fez. A razão para nós, recordemos, é exigência de um significado total, abertura à realidade na totalidade dos seus fatores. “Deus é tudo em tudo”, portanto, não é uma formulação absurda, não é nem uma afirmação abstrata: pode simplesmente ser julgada e compreendida, ou não compreendida, como um fator real da vida.
Então, se “Deus é tudo em tudo”, devemos ver como incide na nossa vida. Como tomar consciência disso? Que significa tomar consciência disso? Significa antes de mais nada conhecer Deus de maneira tal que tenha influência sobre a vida. Com efeito, o Ser se revela na medida em que opera no nosso presente: é, se opera diante dos nossos olhos. Portanto, conhecê-Lo implica uma mudança, cuja primeira conotação é a mudança da imagem que nos é descrita pela inteligência humana em sua atividade. Ou seja, a primeira coisa importante para uma construção eticamente condigna, o primeiro fator importante para uma vontade de transformação de si, para que a nossa presença seja mais útil no mundo e para o mundo, está na ordem do conhecimento: antes mesmo que um fazer ou um operar, está na ordem do conhecimento. A atividade da inteligência exprime a mens de um sujeito na medida em que cria um ponto novo e preciso na maneira de encarar todas as coisas: neste sentido, facta sunt omnia nova 2.
Para tomar consciência das conseqüência éticas pelas quais “Deus é tudo em tudo” de verdade, para tomar consciência desta força estética pela qual “Deus é tudo em tudo” de verdade – é desta força estética que nasce, que surge a própria possibilidade de uma ética, pois somente se o Ser é atração pode ser capaz de obter do homem uma atenção que chegue até o sacrifício; isto quer dizer, para nós, perguntarmo-nos cotidianamente como manter de forma fiel e leal em nós o desejo e a vontade de sermos humildes e obedientes diante da grandeza do Ser que nos faz –, portanto, para tomar consciência das conseqüências éticas desta afirmação de Deus e da Sua possessividade totalizante, nós temos de tomar consciência de uma mentalidade que, aparentemente exaltando um renascimento religioso, na realidade quer censurar o fato de que “Deus é tudo em tudo”, sentindo-o abstrato, esquecendo-o, ou, ainda mais, negando-o. Assim, parece-nos ser preciso tomar consciência da realidade em que vivemos, do momento “cultural”, no sentido forte do termo, do nosso caminho.
Nós também participamos de uma mentalidade como esta, pois é impossível à pessoa viver dentro de um contexto geral sem ser influenciada por ele. Nós também participamos de uma mentalidade como esta, pela qual Deus é concebido como abstrato, ou é esquecido, ou até mesmo negado. Assim, na prática, existencialmente, nós gostaríamos de negar que “Deus é tudo em tudo”. Vejamos no nosso espírito inquieto e confuso como se mede a mentira em nós, pois nós mesmos participamos da mentalidade de hoje, infelizmente: mas, na verdade, não “infelizmente”, uma vez que nós também somos filhos desta realidade histórica que é o humano, e temos de passar por todos os mal-estares, as tentações, os resultados amargos, e manter a esperança que é a vida da vida. Vejamos agora, portanto, no nosso espírito inquieto e confuso como se mede a mentira que está em nós, quanto de mentira em nós nos vem do mundo em que estamos.


- II -

A negação é causada por uma irreligiosidade estranha à formação dos povos europeus, cujo início imperceptível consiste em uma separação entre Deus como origem e sentido da vida e Deus como fator de pensamento, concebido segundo as exigências do pensamento do homem. Há, insisto, uma irreligiosidade no nosso mundo que começa, sem que ninguém se dê conta, em uma separação que se faz entre Deus como origem e sentido da vida (origem e sentido “da vida”, portanto pertinente às coisas que acontecem, os eventos que se dão em nossa vida) e Deus como fato de pensamento, fato do pensamento, concebido segundo as exigências do pensamento do homem. Isto equivale à separação entre o sentido da vida e a experiência. A negação de Deus, que chega até a negação da conseqüência razoavelmente extrema e evidente de que “Deus é tudo em tudo”, implica uma separação entre o sentido da vida e a experiência, pois o sentido da vida é Deus. A experiência é a relação entre a liberdade do homem e a realidade na qual ele se encontra mergulhado. Se Deus é concebido como separado da experiência, se Deus não incide na vida, há então uma separação entre o sentido da vida e a experiência. Ou seja, o sentido da vida não tem mais nenhuma relação – ou tem uma relação que dificilmente pode ser definida – com o momento da existência no qual a pessoa no entanto está caminhando. E caminha para quê? Para onde? Caminha rumo ao sentido da vida e ao seu destino. Não se pode extirpar a relação, não “apertada”, mas decidida, decisiva, entre o passo que dou agora e o sentido de tudo, o por que eu me movo.
A separação entre o sentido da vida e a experiência implica também uma separação entre a moralidade e a ação do homem: a moralidade, assim, não tem a mesma raiz da ação. Há uma separação entre a moralidade, o princípio, o valor moral e a ação do homem, no sentido de que a moral tem a ver, sim, com a ação do homem, tem a ver com a experiência, mas de forma tal que esta não tem a mesma raiz da ação, não corresponde à fisionomia, ao rosto que a nossa experiência nos dá.
Assim, entre outras coisas, dá para entender o aparecimento do moralismo: é que a moralidade, paradoxalmente, não tem a ver com a ação, no sentido de que a ação e a moralidade não nascem ao mesmo tempo; definindo a ação que o homem está realizando, a moralidade julga esta ação, a moralidade julga o que o homem faz, sem que ele tenha tido consciência disso, ou sem que ele tenha concebido a sua ação no mundo, o seu caminhar nas vias do tempo e do espaço como praticáveis. A moralidade, assim, não tem a mesma raiz da ação. O moralismo é a moralidade como conjunto de princípios que invadem a ação do homem, julgando-a teoricamente, abstratamente, sem dar os motivos do por que é justo ou não, por que o homem tem de realizar ou não tem de realizar uma coisa. Por isso, a moral sublinha valores comuns, valores comunitariamente sentidos, e assim os seus princípios adequados são a mentalidade comum ou a imposição do Estado.
O cerne da questão se esclarece na luta que se desenvolve a respeito da maneira de ler e de analisar a relação entre razão e experiência. Basta olhar para a fórmula “Deus é tudo em tudo”, que sacode a formulação “Deus existe”, a afirmação da existência de Deus. Com efeito, é sempre tranqüila a afirmação de um Ente supremo, da existência de Deus, parada em si mesma, que não tenha relação com a ação do homem, a não ser como um juízo que, no fim, destrói ou aprova o que o homem realizou. Desenvolve-se uma luta, portanto, a respeito da maneira de ler e de analisar a relação entre razão e experiência: aqui, a ordem do grande desígnio de Deus, que é o cosmo, é minada nas suas raízes. A moralidade reduzida a moralismo marca como um preconceito ideal a relação entre a ordem do desígnio de Deus e o acontecimento do gesto humano. Entretanto, é através da experiência que aparece a adesão do homem, a conexão que ele faz entre a sua ação e o desígnio total, a totalidade, ou então a sua negação desta conexão, a sua não-resposta a esta referência claramente última e decisiva.
Jean Guitton confirmou o nosso mal-estar inquieto, deu-nos o conforto de nos fazer sentir o quanto estava certa a nossa postura em relação ao nexo entre razão e vida, quando disse que “‘razoável’ é submeter a razão à experiência” 3. A experiência é o surgimento da realidade para a consciência do homem, é a realidade que se torna gradualmente transparente ao olhar humano. Assim, a realidade é algo com que nos deparamos, é um dado, e a razão é aquele nível da criação no qual esta se torna consciente de si. Não é uma filosofia, não é antes de mais nada uma filosofia, mas uma urgência existencial. “Razoável é submeter a razão à experiência”. Por quê? Porque a experiência nos mostra a realidade que nós somos, na qual está a nossa presença, e é uma realidade que nos é dada, com a qual nos deparamos, que não é criada por nós, que não é inventada por nós. Por outro lado, a razão é aquele nível da criação no qual esta se torna consciente de si, tornando-se, portanto, consciente do dado, daquele algo com o qual o homem se depara. E esta autoconsciência gera a definição de razão.
Para defender a verdade de Deus e para defender a necessidade de que o homem conceba a vida como Sua e, portanto, em tudo tenda a agradar a este supremo criador e gestor de tudo o que existe, exige-se antes de mais nada a cordial retomada da palavra “razão”, que é a palavra mais confusa na mentalidade moderna. Se a razão for mal usada, é mal usado também todo o conhecimento do homem como construção que ele faz sobre a realidade, como construção da realidade. Se a razão for mal usada, ou seja, se a razão for traduzida como “medida” da realidade – e isto implica sempre a razão como um preconceito, como algo que intervenha estranhamente na experiência para diminuir e não reconhecer o que está presente na nossa vida –, se a razão for mal usada, existem três possibilidades graves de redução que influenciam todos os comportamentos da nossa vida. E é nessa tripla redução que nós podemos ver e entender a profunda diferença que há entre uma cultura cristã e uma cultura profana, não-cristã.
Falar de cultura, cristã ou não-cristã, é falar de toda a estrutura humana da nossa presença no mundo, pois a cultura não é um resultado perseguido pelos apaixonados ou pelos competentes: a cultura é aquilo do qual o homem retira todo o seu comportamento, no qual se inspira o seu comportamento como origem de tudo, ao formulá-lo e desdobrá-lo seguindo a evolução das coisas e da vida, e ao afirmar o objetivo último das coisas que o homem faz, isto é, do seu destino.
Se a razão for mal usada, se for usada como medida, acontecem então três possibilidades graves de redução, que influenciam todos os comportamentos. Para falar de moral, portanto, é importantíssimo que compreendamos, que tomemos consciência do tipo de cultura a que pertencemos, se se trata de cultura mundana ou cultura cristã.


- III -

1. Primeira redução – estou descrevendo a gênese do nosso comportamento no seu aspecto dramático e contraditório, mesmo que pareça uma modalidade um pouco abstrata –: ao invés de um Acontecimento, a ideologia.
A relação com a realidade que o homem vive de manhã até a noite pode ser uma iniciativa contínua, uma tentativa contínua diante do que acontece e do que ele experimenta; ou então o homem é movido, deixa-se mover por algo, obedece a algo que não nasce, não brota de uma maneira sua de reagir às coisas que encontra, com as quais se depara, mas de preconceitos.
O ponto de partida do cristão é um Acontecimento. O ponto de partida de todo o resto do pensamento é uma certa impressão das coisas, uma certa avaliação das coisas, uma certa posição que a pessoa assume “antes” de encarar as coisas, sobretudo antes de julgá-las: podem ser as necessidades do homem, que o homem intercepta e procura compartilhar, mas mesmo quando são necessidades concretas, estas são pensadas e concebidas de uma forma preconceituosa, de uma forma que cria um preconceito, são sentidas como um preconceito. Por exemplo, acontece um desastre numa mina ou na ferrovia: a forma de encarar estes fatos que interpelam o homem não nasce, tendencialmente não nasce a partir do reflexo humano, daquilo que o homem sente como homem diante destes acontecimentos. Sem que o homem se dê conta disso, é como se irrompesse no seu juízo sobre as coisas algo que ele ouviu, algo que ele experimentou, ou seja, um preconceito; parte-se de um preconceito, de forma tal que o jornal dos republicanos ou dos liberais dará um certo tom a esta notícia e o jornal de um partido do governo dará outro. E o preconceito – ou seja, o ponto de partida da ação da pessoa –, para passar para a história, para vencer o tempo, para caminhar entre os pensamentos das pessoas e entre os juízos da sociedade, tem de ser desenvolvido. E o seu desenvolvimento é a lógica de um “discurso”. Assim, torna-se ideologia. A lógica de um discurso que parte de um preconceito se chama ideologia. Para permanecer e para impor-se, o preconceito precisa ser sustentado por uma lógica. Assim temos a ideologia.
Se, ao contrário, a origem, o fundamento, o princípio fundamental de toda a experiência humana for um acontecimento – pois a alternativa ao preconceito é que a origem, o fundamento de todas as experiências do homem seja um acontecimento, algo que acontece, algo com o qual o homem se depara, e por isso algo que acontece –, se o critério que sugere o comportamento do homem for um acontecimento, este acontecimento se recomporá na história, no tempo, dia após dia, hora após hora: este acontecimento é compreendido porque algo está acontecendo agora. A memória é o contrário da ideologia.
A nossa vida de fé, de cristãos, está nesta amarga posição diante do mundo: se não prestamos atenção em quem Deus colocou como guia da sua Igreja, não nos damos conta do que dizia Alexis Carrel naquela famosa página que citamos em O senso religioso: “Muita observação e pouco raciocínio conduzem à verdade” (ou seja, mantêm um contato real com aquilo que existe), enquanto que “pouca observação e muito raciocínio conduzem ao erro [e à dispersão]” 4. A nossa vida cristã, a nossa fé e a nossa moral concreta, a maneira de vivermos a vida, ou é determinada por ideologias correntes ou então pela factualidade, pela supremacia, na nossa existência, das coisas como acontecem, das coisas com as quais nos deparamos, das coisas diante das quais se reage de um certo modo, dos fatos: fatos como acontecimentos. O nascimento de uma criança, por exemplo, é um acontecimento. Existem acontecimentos grandes e acontecimentos minuciosamente pequenos como significado.
Se, então, a origem, o fundamento, o princípio fundamental de toda a experiência humana for um acontecimento, este acontecimento se recompõe na história, no tempo, dia após dia, hora após hora: este acontecimento é compreendido, faz-se compreender porque de algum modo está acontecendo agora, neste momento. De algum modo está acontecendo agora. Não se pode falar de um passado que seja decisivo para uma pessoa que vive hoje, se de algum modo este passado não se torna presente. Se for pura recordação – mas é impossível que seja pura recordação – transeat, passa; mas, se não for pura recordação, é algo do passado e incide no presente. Assim, o cristianismo é um acontecimento, e por isso é presente, está presente agora, e a sua característica é que está presente como memória; e aqui a memória cristã não é idêntica à recordação, aliás, não é recordação, mas o acontecer novamente da própria Presença, da mesma Presença.
Devemos estar muito atentos, portanto, para não sermos servos, de modo algum, da ideologia, de uma ideologia. Todas as ideologias têm um sistema discursivo, e na lógica que as sustenta tendem ao poder ou têm um poder (todos os homens podem ser bloqueados pela ideologia), sendo o poder uma ideologia que prevalece sobre as outras naquele momento.
O cristianismo nasce como acontecimento que se encarna no presente como memória.


2. Isto nos introduz em uma segunda redução culturalmente significativa e eticamente grave. Eticamente grave porque a ética, na medida em que deriva da estética, na medida em que – como dizer? – faz a arrancada do seu caminho, da sua viagem, a partir de uma estética, de um fator estético, implica uma grande definição do conceito de Ser, ou seja, do conceito de Deus.
A redução que acontece para o homem, na medida em que cede às ideologias dominantes, que surgem da mentalidade comum, é uma divisão, uma separação, a luta entre sinal e aparência, a redução do sinal à aparência como conseqüência da contraposição destas duas palavras. Ao se tomar consciência do que é o sinal, entende-se o quão sórdido é e que desastre significa um sinal que se reduz à aparência.
O sinal é uma experiência real – a experiência de um fator, de uma presença na realidade – que me remete a outra coisa. Como dissemos em O senso religioso, o sinal é uma realidade cujo sentido é uma outra realidade, uma realidade experimentável que adquire seu significado conduzindo a uma outra realidade5.
Não seria razoável, não seria humano, portanto, esgotar a experiência do sinal interpretando somente o seu aspecto imediatamente perceptível, ou aparência. O aspecto imediatamente perceptível de uma coisa, de qualquer coisa, a aparência, não afirma toda a experiência daquilo que identificamos como algo que sinaliza, não afirma o seu valor de ser sinal da coisa que nos interessa.
A grande tentação do homem é esgotar a experiência do sinal, de uma coisa que é sinal, interpretando somente o seu aspecto imediatamente perceptível. Não é razoável, mas todos nós somos levados, todos os homens são levados, por causa do peso que representa para eles o pecado original, todos são levados a serem vítimas do aparente, do que aparece, pois parece ser a forma mais fácil da razão. Uma certa postura de espírito faz mais ou menos isto com a realidade do mundo e da existência: reconhece o impacto com ela (existe o mundo, existe a relação com as coisas, entende-se que se deve formar uma família, educar os filhos...), impedindo a capacidade humana de penetrar na busca do significado, que inegavelmente o fato da nossa relação com a realidade solicita à inteligência humana. Ou seja, impede-se a capacidade humana, portanto a própria capacidade da inteligência que age, de penetrar na busca do significado que inegavelmente a nossa relação com o que nos toca, o fato da nossa relação com a realidade, solicita. Ao passo que a inteligência humana não pode se deparar com qualquer coisa sem perceber que esta, de algum modo, é sinal de uma outra realidade, que retoma a insinuação de uma outra realidade.
Estes nossos conceitos, que nos são habituais, podem ser encontrados ao ler uma afirmação daquela famosa mulher judia, Hanna Arendt, no seu livro As origens do totalitarismo: “A ideologia – escreve – não é a ingênua aceitação do visível, mas a sua inteligente destituição” 6. A ideologia é a destruição do visível, a eliminação do visível como sentido das coisas que acontecem, o esvaziamento do que se vê, se toca, se percebe. Quando Sartre fala das suas mãos – “As minhas mãos, o que são as minhas mãos?” –, define-nas como “a distância incomensurável que me divide do mundo dos objetos e me separa deles para sempre” 7, realizando assim uma destituição do visível, do aspecto contingente. A destituição do contingente é, por exemplo, afirmar que o que acontece acontece porque acontece, evitando assim o choque, a exigência de olhar para o presente, para a relação de um certo presente com a totalidade, como, ao contrário, a idéia de sinal deixaria acontecer na vida.
Mistério (isto é, Deus) e sinal (isto é, a realidade contingente, na medida em que sempre remete a outra coisa: não há nenhum pedaço de realidade que não remeta a outra coisa, nenhum; mesmo uma pedra pequeníssima para ser si mesma tem de ser concebida como feita por Deus, remete à fonte do Ser), Mistério e sinal, num certo sentido, coincidem: no sentido de que o Mistério é a profundidade do sinal, o sinal indica a presença do Mistério profundo, do Deus Criador e Redentor, do Deus Pai. O sinal indica a presença do Mistério, do Mistério profundo – o Mistério é a profundidade do sinal –, indica aos nossos olhos a presença de Outro, do Mistério profundo para todas as coisas, indica essa presença aos nossos olhos, aos nossos ouvidos, às nossas mãos. O Mistério se torna experiência através do sinal.
Por isso, a sensibilidade em perceber todas as coisas como sinal do Mistério é a tranqüila verdade do ser humano, quando, ao contrário, a tirania – que se torna a posse de quem tem nas mãos o poder, motivado por uma ideologia –, nega este fato, este aspecto do fato, da consideração que o homem tem por uma coisa. Até as ocorrências e os acontecimentos tornam-se tão frágeis na sua contingência que não provocam nenhuma mudança na vida, não sugerem nada de mais expressivo na vida.
A ideologia tende a afirmar o aparente como algo concreto, e o aparente é o que se vê, se sente, se toca e basta. Mas a maneira própria de olhar do homem é a razão: a razão que, deixando-o intacto, reveste o contato que o eu tem com aquilo com que se depara, esclarecendo-o, julgando-o, ou seja, fazendo com que ele se refira a outra coisa, pois só pode julgá-lo se existir uma profundidade como hipótese.
Mistério e sinal, portanto, neste certo sentido, coincidem, e o Mistério se torna experiência através do sinal. E isto explica ao cristão o valor dos sacramentos, quando descobre que a realidade toda é construída por este método de Deus, do Criador. A realidade vem do Criador, tendo em si a referência ao Criador e demonstrando-o, ou seja, fazendo aparecer, no íntimo da nossa relação com as coisas, a percepção de um Outro, de algo Outro, para a qual o objeto que temos nas mãos se torna fator de ajuda.
O sacramento tem uma diferença em relação a todos os outros sinais. Nos sacramentos, inventados, criados por Cristo, ou seja, por Deus feito homem, justamente para gerar um povo novo no mundo – que flua como um rio nas águas do mar da humanidade, que flua como a revelação inicial, dentro da história, do Mistério infinito ao encontro do qual o homem ruma ao término de seus dias: é o início, na história, do eterno –, nos sacramentos, criados por Cristo, criados pelo homem Deus, por Deus que se fez homem, Jesus de Nazaré (Ele os construiu, Ele os sugeriu), nos sacramentos o sinal chega até a completa identidade com o Mistério. Como na Eucaristia. Mas em todos os sacramentos há esta referência totalizante: o sinal coincide com o Mistério, em sentido próprio. Os sacramentos tornam isto presente: desde o Batismo, que é uma transformação total do nosso ser, até a Eucaristia, que é uma expressão plena desta coincidência, até a Penitência, até a identificação com uma tarefa na Ordem e no Matrimônio. Assim, no sacramento, o homem é lavado das escamas que o mantêm prisioneiro e que tendem a fazer com que ele viva como um animal.
Portanto, na nossa vida, temos a vantagem da aparência não vencer a perspectiva transmitida pelo sinal; luta-se a favor de uma moralidade nova, uma moralidade mais perfeita, aquela da qual Jesus diz: “Não vim ao mundo para abolir a lei, mas para sustentá-la, para que seja realizada” 8. É a salvação do humano: “Se não tivesse encontrado a ti, ó Cristo, não seria mais homem”, poder-se-ia dizer. “Quando encontrei a Cristo, me dei conta de ser homem” 9, dizia o orador Caio Mário Vitorino.
A sacramentalidade é a maneira como o Mistério dá a si mesmo, doa-se ao nada, criando o seu cosmo, a pessoa e o seu cosmo. O método com o qual Deus comunica a sua existência, participa o seu ser às coisas, é o método sacramental, é a sacramentalidade: a comunicação do Mistério implica um método sacramental. Tudo é sinal dEle, e a margem extrema deste método, segundo uma analogia entre as coisas, entre os significados das coisas, é dada pelo sacramento da sua presença no mundo, pois todo sacramento é a presença de Cristo morto e ressuscitado no mundo. Quanto da nossa vida espiritual deve ser baseado de forma consciente em torno do sacramento! Com efeito, chama-se Igreja, corpo místico de Cristo, aquilo que é mudado sob o impulso, a luz e a ternura do Batismo e dos outros sinais sacramentais.
Deus concebeu o relacionamento com a criação como relação com um imenso exército de sinais: tudo é sinal dEle, tudo. Cristo veio para nos dizer isto, porque Deus queria tudo de nós. Por isso, a realidade feita como sinal de Deus pode ser resumida à concepção que Cristo tem. Tratar bem, usar bem a criação significa conhecer Cristo para conhecer Deus. Isto é o início de uma mudança no homem.

3. A eliminação do valor de sinal implica, não sei se mais como causa ou como conseqüência, a redução do coração ao sentimento.
Tomamos o sentimento, ao invés do coração, como motor último, como razão última do nosso agir: o sentimento e não o coração. O que isso quer dizer? Eu disse “coração” para indicar a diferença entre sentimento e razão. A nossa responsabilidade torna-se irresponsável justamente por causa disso: cedemos ao uso do sentimento como algo que prevalece sobre o coração, reduzindo o conceito de coração a sentimento. Ao contrário, para Cristo, o coração representa e age como fator fundamental da personalidade humana; o sentimento não, pois o sentimento age como reação. No fundo, no fundo, o sentimento em relação ao coração é animalesco. Ao contrário, o coração representa e age como o fator fundamental da personalidade humana. Ele implica uma concepção de razão não imobilizada, mas a razão segundo toda a amplitude da sua possibilidade: a razão não pode agir sem aquilo que se chama afeição. Neste sentido, Cristo disse: “Estarás comigo no Paraíso” 10, ao assassino que estava morrendo ao seu lado, e disse “Amigo” a Judas, que ia beijá-lo para o entregar nas mãos de outros 11.
“Ainda não cheguei a compreender – diz Pavese – o que seja o trágico da existência (...). E no entanto isto é muito claro: é preciso vencer a entrega voluptuosa [o sentimento é um abandono voluptuoso] e deixar de considerar os estados de espírito como razão de ser de si mesmos” 12. O estado de ânimo tem toda uma outra finalidade para ser condigno: tem a finalidade de uma condição colocada por Deus, pelo Criador, através da qual somos purificados. O coração – como razão e afetividade – é a condição para a realização saudável da razão. A condição para que a razão seja razão é que a afetividade a envolva e, assim, movimente o homem todo. Razão e sentimento, razão e afeição: este é o coração do homem.

* * *

Até agora eu quis insistir, de um lado, no fato de que de certa forma a concepção segundo a qual nós vivemos, a concepção da vida dentro de cujos termos nós vivemos, o que nos inspira a agir de uma certa maneira ou então a alcançar certa edificação da nossa existência e da nossa convivência com os outros, encontra na razão a sua arma de ataque e de defesa. Nós só podemos – é assim desde o início do nosso movimento – partir do amor à razão, da confiança na razão, e isto nos fez perceber o valor da razão como primeira coisa a ser esclarecida.
Em segundo lugar, pretendi sublinhar a postura do mundo de hoje, o mundo que Jesus diz estar “todo mergulhado na mentira” 13. A mentira é dizer: “Deus existe, mas ‘Deus tudo em tudo’ é abstrato”. Que quer dizer isto? No fundo, no fundo, é recusá-lo, pois todos aqueles que negam “Deus tudo em tudo” negam Deus. Esta situação, descrita no segundo momento do meu chamado de atenção, caracteriza o andamento cultural e social – cultural e portanto social – da política destes tempos, dos nossos tempos. Trata-se de um longo percurso que pôde, lenta mas inexoravelmente, encher o espírito de todos de certos preconceitos, de certos princípios preconcebidos, de certas indicações de ação preconcebidas.
Ao final de um longo percurso de esquecimento do “Deus tudo em tudo”, o sentimento religioso próprio da natureza humana se afirma com liberdade absurda, no nosso último século, corrompendo-se, na progressiva eliminação da religiosidade própria de Cristo e portanto da religiosidade que teve, na história do povo judeu, de modo admirável, a sua manifestação, a sua exemplificação, a exemplificação da sua verdade, da sua última implicação. Tal como o povo judeu foi maltratado pelos seus inimigos, por aqueles que não recebiam a Deus, o Deus único que fez todas as coisas, da mesma forma a situação de hoje é adversa à religiosidade própria de Cristo, herdeiro de todo o humanamente incompreensível fenômeno do povo judeu – a história do povo judeu foi a estrutura profética daquilo que Cristo viria a esclarecer consigo mesmo –. Esta religiosidade é a que nos cabe. A luta, portanto, em nós, é entre a religiosidade própria de Cristo e da Bíblia, da tradição cristã e da tradição judaica, e o deus do anti-cristão.
A primeira razão pela qual nós compreendemos que a negação de “Deus tudo em tudo” revela a presença de um anti-cristianismo na formação do homem e portanto da sociedade, esta primeira razão foi tocada por mim no segundo momento; ela leva à eliminação do senso religioso próprio de Cristo e da Igreja e portanto da humanidade que ela invade e que a recebe.
Isto explica também como pôde ser facilitada na própria Igreja a incompreensão, na medida em que os seus pastores e os seus batizados são influenciados, deixam-se influenciar por uma outra cultura. Na própria promoção missionária se vê isto, seja em relação ao indivíduo seja em relação à sociedade. A promoção missionária, que no fundo é o objetivo último da existência do indivíduo e do andamento de todas as mudanças da sociedade, chegou a um impasse, que teve o seu ponto culminante na crítica de um certo pré e pós-Concílio, na qual se chegou até a afirmar que era preciso ter medo de que a ação missionária fosse contra a liberdade do homem, ao passo que a ação missionária é o resultado extremo, o fruto extremo da fidelidade a Cristo.
Vocês se lembram da Carta aos cristãos do Ocidente, de Zverina, que jamais será suficientemente lida e relida, ainda que repetidamente a coloquemos como ponto de referência e chamemos a atenção para ela? Josef Zverina, o grande teólogo tchecoslovaco, condenado durante tantos anos pelo regime de Praga, foi um dos teólogos mais válidos e infelizmente não numerosos que a Igreja já teve como seus defensores. Ele escreve em 1970:
“Irmãos, tendes a presunção de serdes úteis para o Reino de Deus assumindo o mais possível o saeculum, a sua vida, as suas palavras, os seus slogans, o seu modo de pensar. Mas refleti, vos suplico, que significa aceitar esta palavra. Acaso significa que vos perdestes lentamente nela? Infelizmente, parece que vos aconteça exatamente isto. Já é difícil encontrar-vos e distinguir-vos neste vosso estranho mundo. Provavelmente ainda vos reconhecemos porque neste processo estais indo devagar, pelo fato de que vos assimilais ao mundo, devagar ou rapidamente, mas sempre atrasados. Agradecemos a vós por muito, aliás, por quase tudo, mas em algo temos de nos diferenciar de vós. Temos muitos motivos para admirar-vos, por isto podemos e devemos dirigir-vos esta admoestação: ‘E não queirais conformar-vos a este século [diz São Paulo], mas transformai-vos renovando a vossa mente, a fim de que possais distinguir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito’ [“Deus tudo em tudo”, dizemos nós, sugerimos nós].
“Não vos conformais! Mè syskematizesthe! Como é bem mostrada nesta palavra a raiz verbal e perene: esquema. Para dizer em breves palavras, é vazio qualquer esquema, qualquer modelo exterior [que não vem da fé, que não nasce da experiência da fé]. Temos de querer mais, o apóstolo nos impõe: ‘Transformai vossa maneira de pensar em uma forma nova!’ (...). Contra skema ou morphé – forma permanente – está metamorphé, mudança da criatura [skema ou morphé significam uma forma permanente, afirmam uma forma permamente; metamorphé afirma algo que está destinado a mudar, que muda, que produz uma mudança contínua na criatura]. Não se muda de acordo com um modelo qualquer, que de qualquer forma está sempre fora de moda, mas trata-se de uma novidade plena, com toda a sua riqueza [tal como é Cristo]. Não muda o vocabulário, mas o significado (...).
“Não podemos imitar o mundo, justamente porque temos de julgá-lo, não com orgulho e superioridade, mas com amor, tal como o Pai amou o mundo e por isto pronunciou sobre ele o seu juízo [Cristo, o seu juízo é Cristo. E o Papa, na sua Encíclica Dives in misericórdia, diz que a misericórdia na história do homem tem um nome: Jesus Cristo. O juízo de Deus é misericórdia].
“Escrevemos como gente não sábia a vós, sábios, como fracos a vós, fortes, como míseros a vós, ainda mais miseráveis. E isto é tolo, pois certamente entre vós há homens e mulheres excelentes [há alguém excelente entre vós, que permanece na fé, que não corre atrás das novidades mundanas]. Mas justamente porque há alguém assim, é preciso escrever tolamente, como ensinou o apóstolo Paulo quando retomou as palavras de Cristo, dizendo que o Pai escondeu a sabedoria daqueles que muito sabem disto” 14.
Isto explica como pode ser facilitada na Igreja a incompreensão do problema: o problema da educação cristã, da missão, da conversão, da construção da Igreja. Estes problemas exigem uma mudança, partem de uma mudança que deve acontecer no homem: através de uma mudança que aconteceu em outros homens com os quais se depara, o cristão é ajudado a perceber e a avançar em uma mudança de si mesmo. O milagre é esta mudança de si.


- IV -

É preciso que a fidelidade a Cristo e à Tradição seja sustentada e confortada por um âmbito eclesial realmente consciente desta fidelidade necessária. Pois bem, este é o ponto que conclui todas as minhas observações, e eu o repito: é preciso que a fidelidade a Cristo e à Tradição seja sustentada e confortada por um âmbito eclesial realmente consciente desta fidelidade necessária. É preciso que o âmbito eclesial, necessário para sermos sustentados e confortados, seja realmente consciente do que quer dizer fidelidade a Cristo e à Tradição, seja realmente consciente de como a memória cristã vive realmente, não como a memória dos pobres falecidos. Por isso, a primeira coisa que eu sentia urgência de lhes dizer hoje é como se impõe moralmente o fazer parte de um movimento eclesial como pertencer a um âmbito em que o dom do Espírito que vem do Batismo se concretiza em formas demonstrativas e persuasivas. Este dom do Espírito se chama carisma. Mas não é carisma se não for reconhecido pela autoridade da Igreja, ou seja, pelo Papa.
Este convite a viver conscientemente o dom que recebemos tem como primeira conseqüência moral atender com toda a disponibilidade do coração à indicação do movimento, pois o pertencer ao movimento, vivido com simplicidade e generosidade, é fonte de luz e de conforto para toda a nossa vida. Com efeito, o pertencer ao movimento introduz ou facilita ou assegura uma mentalidade diferente e faz agir uma mentalidade diferente. Na medida em que o pertencer ao movimento é uma experiência existencialmente concreta de viver a mentalidade nova em Cristo e a moral nova, este introduz à novidade da fé, essa fé que falta, que tende a faltar no coração dos homens à medida que aquele que os dirige imediatamente a trai: é a trahison des clercs, como dizia Julien Benda, a traição dos intelectuais – o intelectual é aquele que ensina, que educa, o médico que ajuda, intervém.
Não há outra maneira pela qual o Espírito nos possa alcançar de maneira mais simples, mais persuasiva, mais potente, senão em uma realidade presente, em um contexto presente. Por isso, o pertencer ao movimento introduz, facilita, assegura uma mentalidade diferente e faz agir uma moralidade diferente.
Isto não tem nada de contraditório com a obediência que devemos ao bispo ou ao pároco, aliás, é fator que ilumina esta obediência, é um sustento para esta obediência; obediência que, além do mais, é inerente à própria dinâmica da fidelidade a Cristo e à Tradição que ela exige. Com efeito, um carisma reconhecido pela Igreja é dom do Espírito de Cristo que leva a viver a instituição integralmente, como o lugar em que Cristo é acontecimento presente. “Um autêntico movimento – dizia João Paulo II aos nossos sacerdotes, que foram cumprimentá-lo depois de seus exercícios espirituais – existe, portanto, como uma alma alimentadora dentro da instituição. Não é uma estrutura alternativa a ela. Ao contrário, é fonte de uma presença que continuamente regenera a sua autenticidade existencial e histórica” 15. Basta ver um sacerdote que vive este pertencer ao Movimento de forma viva e inteligente: a sua maneira de viver e de potencializar com contribuições de outros a paróquia torna-a bela e simples.
“Na Igreja, tanto o aspecto institucional quanto o carismático (...) são coessenciais e concorrem para a vida, para a renovação, para a santificação, mesmo que de maneiras diversas” 16. O carisma, seguido com fidelidade, introduz à fidelidade a Cristo na fidelidade às instituições. Por isso, carisma e instituição são coessenciais na definição da vida cristã na Igreja, da vida eclesial. Assim, um movimento é exemplar e demonstrativo, é persuasivo nas próprias dioceses e paróquias e útil para a vida pastoral.
Para completar este chamado de atenção, é preciso também recordar que a modalidade de viver o dom do Espírito tem de alcançar minuciosamente a personalidade de cada um. É justamente para se ter presente isto que o Espírito chama a cada um para um ou outro carisma. Todos os carismas reconhecidos pela Santa Igreja são coessenciais à instituição cristã.
A pessoa vive realmente o carisma quanto mais compara toda a sua vida com o ideal do próprio carisma, tal como o afirmam aqueles que são reconhecidos pela Igreja como garantes, para ela, da verdade do dom do Espírito; e, portanto, segui-los é uma última obediência que procura encarnar até os últimos capilares a imitação de Cristo e a fidelidade à Igreja. A fé se manifesta assim em fonte contínua e em contínuo terminal da Encarnação como método último do Mistério; e uma vez que a missão existe e vive como testemunho, só a fé vivida realiza a missão, pois só a fé vivida muda, com aquela mudança com a qual qualquer um pode se deparar e, sentindo-se chocado, pôr-se a seguir. Isto permite entender como a fé pode abrir a uma mentalidade e a uma moralidade diferentes, quer diante do mundo, quer na própria Igreja como realidade humana e, portanto, influenciável pelo contexto.
De qualquer forma, aquilo que pretendi dizer-lhes e para o qual pretendi chamar sua atenção esta manhã responde à preocupação de que o que pode mudar em vocês, pela intervenção do Movimento na sua vida e pela coerência exigida por ele, tenha início conscientemente, razoavelmente, tenha como primeiro lugar de ocorrência o conhecimento, pois tudo o que o homem faz depende de uma maneira como concebe. Portanto, é uma forma de conhecimento que pode delimitar ou eliminar esta concepção a que o mundo nos envia, pela qual Deus é maltratado, não é afirmado como quer afirmar-se, pois Deus se afirma em Cristo. Nós não podemos conhecer o Mistério se Cristo não o afirma para nós. E a Igreja – é uma comparação, não uma blasfêmia – realiza Cristo com mais clareza, com persuasividade e com sustento para a realização na vida, através dos movimentos. O Espírito de Cristo que criou a Igreja e a enviou ao mundo, a conforta e a edifica, a fortifica com os carismas: faz entrar nela certas pessoas, em um ou em outro carisma, para que toda a Igreja seja revigorada e renasça com consciência aos olhos de todos.

Notas:

[1] 1 Cor 15, 28.
[2] “Et dixit, qui sedebat super throno: ‘Ecce nova facio omnia’” (Cf. Ap 21, 5).
[3] J. Guitton. Arte nuova di pensare. Cinisello Balsamo (Milão), Paoline, 1991, p. 71.
[4] Cf. A. Carrel. Riflessioni sulla condotta della vita. Milão, Bompiani, 1953, p. 30. Cf. também: L. Giussani. O senso religioso. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1993 [2ª ed.], p. 15.
[5] Cf. L. Giussani. O senso religioso:. Op. cit., p. 175.
[6] Cf. H. Arendt. Le origini del totalitarismo. Milão, Edizioni Comunità, 1996, p. 649.
[7] Cf. J. P. Sartre. La nausea. Turim, Einaudi, 1990, p. 166.
[8] Cf. Mt 5, 17.
[9] Vitorino Mário Afro. “In epistola ad Ephesios”. In: Marii Victorini Opera exegetica, livro II, cap. 4, v. 14.
[10] Lc 23, 43.
[11] Cf. Mt 26, 50.
[12] C. Pavese. O ofício de viver. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988, p. 35.
[13] Cf. Jo 17, 9.
[14] J. Zverina. “Carta aos cristãos do Ocidente”. In: Litterae Communionis , nº 20, ago/set. 1990, p. 13, e nº 31, nov./dez. de 1992, p. 36.
[15] João Paulo II. “Sois os mestres da cultura cristã”, aos sacerdotes de Comunhão e Libertação, 12 de setembro de 1985. In: La Traccia, p. 1083.
[16] Os movimentos da Igreja. Atas do 2º Congresso Internacional sobre “Vocação e missão dos leigos na Igreja hoje”. Rocca di Papa, 28 de fevereiro a 4 de março de 1987. Milão, Cooperativa Editoral Nuovo Mondo, 1987, p. 25.