Em busca de um rosto humano

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Notas da palestra de Luigi Giussani nos Exercícios Espirituais dos Universitários de Comunhão e Libertação. Rimini, 9 de dezembro de 1995

A única resposta prática e concreta à situação descrita na meditação desta manhã, e que de maneira bastante sintomática foi definida “pulverização do eu” – tal como a realidade vista através de uma nuvem de poeira, dentro de uma nuvem de poeira, ao invés de uma realidade que deveria ser olhada à luz do sol, dentro da claridade da luz –, a única resposta é esta: existem pessoas, uma companhia de pessoas diferentes; humanas, como todos nós, por isso com todos os motivos de desprezo e os raros motivos de nobreza que sentimos preencher, tornar pesada ou fazer respirar a nossa humanidade; humanas, como todos nós, mas diferentes, mais propriamente “mudadas”. Mudadas em termos incomuns, de maneira imprevista e, no fundo, no fundo, invejável, ao menos por certos aspectos de como a vida é vista e vivida. “Como podem ser assim?”, nós nos surpreendemos a sentir, mais do que a dizer, no nosso coração. A cristandade os chamaria santos. Mas não apenas a cristandade: a gente simples e do povo, diante de alguma atenção dessas pessoas às exigências que sente, chama-as santos: “Como são santos!”. Mas quero também sublinhar uma característica delas que me parece a mais reveladora: são pessoas que têm coragem. Não porque são heróis. É uma coragem sem grandeur: esta coragem se chama “testemunho”! Ou seja, estes homens têm a coragem de dar juízos e proclamar valores profundamente diferentes da mentalidade comum. Uma vez que os ouçamos falar, percebemos que são mais justos, melhores – sob certos aspectos, ao menos – do que os outros, mais humanos, paradoxalmente mais próximos de nós, mais nossos, mais próximos da nossa humanidade, daquela humanidade normalmente encoberta e esquecida.
Digo isto porque quem está aqui – quem quer que esteja aqui – fez um encontro com estas pessoas, pouco ou muito, apenas raspando nelas de leve ou de maneira forte, chocante. E, além disso, nunca se trata de uma pessoa só. A pessoa não permanece uma só, mas testemunha uma companhia; a pessoa, enfim, indica um caminho, uma “estrada”. E então vem à mente aquilo que no grande livro, o livro do hebreu – porque “a salvação vem dos judeus”, disse Jesus 1: não será esta a razão última pela qual facilmente quem tem o poder no mundo os odeia? –, dizia o profeta Isaías, setecentos anos antes de Cristo: “Diz Deus: eis que faço uma coisa nova”. É preciso ouvir esta voz em meio ao burburinho ou em meio ao nevoeiro poeirento que foi descrito esta manhã: “Eis que faço uma coisa nova: precisamente agora eu a faço germinar; não a percebeis? Abrirei um caminho no vosso deserto” 2.
Para entender bem esta surpreendente resposta – porque esta é a resposta: se existe uma resposta, é esta; qualquer outra resposta agrava a situação definida esta manhã, confirma-a e a agrava –, é preciso acrescentar ao que já foi dito aquilo que para mim é o juízo sobre a origem da desordem, da desordem que acontece quando a nuvem daquele poeirão, daquele apodrecimento de tudo, quando a sombra da negligência do eu penetra em nós. Qual é a razão pela qual a terra de vocês, a nossa terra, deixa-se invadir, não pode deter este dissolvimento em poeira daquele ideal sonhador – grande coisa – que é o humano? A meu ver, a origem está aqui: a sociedade não ama vocês, mas o que pode ter de vocês, se está de acordo com a ideologia da sua conveniência – da conveniência ao poder – ou da sua instintividade. Por mais que possa parecer estranho, a coisa mais trágica é que muitas vezes – quantas vezes! – vocês mesmos acusam que os seus pais, os seus próprios pais não os amam, mas, sim, uma idéia que fizeram de vocês, especialmente acerca da imagem do seu futuro, em virtude da fama e da honra que podem ter a partir de vocês, graças às suas performances, entre os amigos ou na sociedade e, sobretudo, pelo compreensível desejo de segurança e de benefícios que poderão ter quando forem velhos.
Vocês podem encontrar os primeiros traços de um amor real entre os amigos; raramente, mas entre os amigos; e, ainda mais excepcionalmente, – digo-o com amargura, mas com certeza de desafio – em um enamoramento. Esta amorosidade, como quer que seja, tem como que dois pólos, dois pontos-limite. De um lado, uma admiração sem limites por algo que se vê em vocês e que não foram vocês que fizeram. Imaginem um rapaz realmente apaixonado por uma moça: ele tem uma admiração sem limites por algo que vê nela e que não foi ela quem fez, que não foi ela quem se deu – por exemplo, a beleza, no frescor de uma certa idade, que vocês não devem pensar como fixada no telão que reflete o quadro do amanhã. Por outro lado, uma compaixão igualmente sem limites diante da infelicidade que vocês têm (contexto, circunstâncias não favoráveis, não boas), diante da infelicidade que ameaça, favorecida por uma fragilidade que é nossa – esta, sim, que é nossa, que é sua. Admiração e compaixão. Um amor real não pode deixar de se agitar entre estas duas margens.
Pais e sociedade bendizem esta fragilidade, porque se servem dela, mais do que por compaixão dela, ou seja, mais do que por sentir a dor dela; e o fazem por uma sensação, por uma percepção de inutilidade daquilo mesmo pelo qual têm estima em vocês, apesar de tudo. A que poderá servir aquilo pelo qual têm estima? Que será daquilo? Que restará daquilo? Assim, eles tiram desta aridez ou fragilidade uma justificativa; até daquilo que é mais bonito em vocês eles tiram uma justificativa para possuí-los, para mantê-los na prudência ou cautela da qual eles se colocam como medida: a medida que salva o que dá para salvar!
Que infelicidade vocês têm com uma sociedade assim, incapaz de valorizar a humanidade de vocês, impotente para valorizá-la, escrava daquilo que tem sorte de ter poder! “Que infelicidade vocês têm com uma sociedade assim!”, pode dizer a mãe, o avô à criança que está crescendo. Mas que infelicidade vocês têm também com uma família assim! Tão pequena, tão fim em si mesma, como o jardim dos condes Finzi Contini, devorado, invadido, tornado funcional pela mentalidade dominante, ainda que embalsamado dentro do amplo cerco de muros em torno da casa.
Se a desordem tem origem, portanto, quando o amor se torna tão impessoal e instintivo que tende a se tornar posse, uso, consumo, funcionalização do outro a si, às próprias idéias, às próprias imagens ou às próprias necessidades, qual pode ser a volta por cima? Se a resposta à situação de pulverização do eu que foi descrita esta manhã (da qual eu apenas indiquei a origem) é somente aquele encontro fortuito que mencionei ao abrir o nosso diálogo, a volta por cima emerge sem que pensemos nela, sem prevê-la. É assim que emerge a figura de Cristo: no horizonte confuso, achatado e uniforme, na tristeza da nossa história ou na figura do mundo, aparece a figura de Cristo.
“Dirigiu-se a uma cidade chamada Naim, e caminhavam com ele seus discípulos e uma grande multidão. Quando estava próximo da porta da cidade, eis que estavam levando ao sepulcro um morto, filho único de mãe viúva, e muita gente da cidade estava com esta mulher. Vendo-a, o Senhor teve compaixão dela e, dando um passo, lhe disse: 'Mulher, não chores!'.” Como “não chores”? Pode-se dizer por acaso “não chores” a uma mulher naquelas condições? Atrás do caixão do filho, viúva, sozinha? Tentem imaginar que onda ou que mar de ternura devia haver naquele forasteiro que, vendo-a, dá um passo à frente, talvez ponha a mão em seu ombro, e lhe diz: “Mulher! Mulher, não chores!”. “E, aproximando-se, tocou o caixão, enquanto os carregadores paravam, e depois disse: 'Ó jovem, eu te digo: levanta-te!'. E o morto ergueu-se para sentar e começou a falar, e Ele o deu à sua mãe” 3. Mas ressuscite-o logo! Aproxime-se e ressuscite-o! Ou, do lugar em que você está, grite que os mortos voltem à vida! Que necessidade havia de ir até ali, dar um passo à frente e dizer: “Mulher, não chores!”? Mas era ele quem chorava! Algo nele chorava. Nele havia esta força e esta piedade, esta afeição e ternura e este domínio e poder sobre a realidade!
Assim, sem que pensemos, aparece a figura de Cristo. Imaginem os doze amigos dele, à luz fraca das tochas naquela noite, na quinta-feira da última ceia: ele, falando, e os doze atentos a escutá-lo. E fala. É o seu mais longo diálogo. A certo ponto, diz: “Sem mim, não podeis fazer nada” 4. A certa altura, esta pessoa, este homem, aparece. E ao final daquele longo discurso, antes que o seu coração quase se retraísse e, comovido, falasse diretamente àquele a quem ele chamava, com ar de tão grande mistério, Pai, disse: “Eu vos disse estas coisas para que tenhais paz em mim. Eu vos disse estas coisas a fim de que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” 5. É o contrário do que foi descrito esta manhã. Porque o homem é na medida em que é possível para ele, nele, a alegria. A alegria é o contexto realizado, feliz, viçoso, vibrante, de cada membro do homem, de cada fio de cabelo seu, com tudo o que o cerca, cada flor e cada folha de erva. E acrescentou: “Vós sofrereis tribulações no mundo, mas tende confiança. Eu venci o mundo” 6. Faltavam poucas horas para ser morto.
Todavia, quem não reconhece esta presença, quem anula esta presença – porque não é possível continuar como antes encontrando uma semelhante presença, ainda que ela vibre no ar através de uma boca que repete os seus termos, os conteúdos dos seus discursos, a narração dos seus gestos, o seu fim, o seu início (“Ne timeas”: todas as vezes que em que aparece em cena no texto escrito, diz: “Não temais”; é a primeira palavra com a qual o anúncio dEle entrou no mundo); quem não reconhece esta presença é como se se tornasse incapaz de reconhecer qualquer coisa. Então são iguais a zero seu pai, sua mãe, a mulher que ama, o filho que tem diante de seus olhos. Tudo – tudo! – reduz-se a nada: é o niilismo de que ouvimos falar esta manhã.
É por um preconceito que a pessoa não reconhece esta presença, é sempre por um preconceito: um preconceito ideológico inerente ao tipo de mentalidade a que se pertence. Mas especifiquemos. Este preconceito significa: juízo “por alienação”, porque a pessoa é alienada (pela sociedade, e portanto pela família, pela escola, pela educação), ou “por dissolução”, por fragilidade na qual tudo se corrompe. O homem acaba dissolvido na sua fragilidade, dissolvido e confuso pela sua fragilidade, de modo que a única salvação é a distração, não uma distração ocasional, mas patologicamente determinante. Alienação ou distração: esta é a origem do preconceito que anula ou tenta anular aos próprios olhos e na própria consciência esta presença, a figura de Cristo.
Seja como for, aqueles que negam, por alienação ou por distração, a figura de Cristo são condenados a reduzir a realidade tal como transparece imponente na experiência, como consiste, se impõe e transparece na experiência, são condenados a reduzir esta realidade a nada. Ou seja, renegam a amplitude do “coração” do homem: a realidade é breve e efêmera, exatamente como diz a palavra “efêmero” – que dura um dia, uma hora, um instante. No ano passado, pouco antes dos Exercícios Espirituais, um de vocês me contara que conhecera uma moça dinamarquesa que viera para a Itália estudar, e que ficou tocada, como ela mesma lhe disse, pelo modo como nós usávamos a palavra “coração”. Para ela, “coração” sempre indicara algo absolutamente privado, tão seu que não tinha nada em comum com os outros: era uma intimidade sua. Nós, porém, usávamos a palavra “coração” de um outro modo: o “coração” era como uma coisa em comum, algo que se tinha em comum, que se tem em comum. A amplitude do coração – as exigências que estruturam este aspecto sintético e profundo do homem que a Bíblia chama “coração”; não conhecemos uma palavra mais adequada do que esta, que faça com que nos sintamos felizes e desventurados ao mesmo tempo – julga tudo, lambendo cada coisa com a sua língua de fogo, sem descanso, sem trégua: sede de verdade, de beleza, de bondade, de plenitude, de perfeição, de satisfação, de felicidade. Tanto é verdade, que esta palavra – “coração” – só é levada a sério no vocabulário que nós conhecemos, só no léxico impresso na Igreja, ou então impresso na pré-igreja que potencialmente é, ao menos por alguns meses, o coração de uma mãe, de uma mulher que teve um filho.
Aqueles que negam a presença de Cristo renegam a amplitude do coração do homem. Além disso, são incapazes de admitir realmente, tendem a renegar, a não olhar de frente e depois a renegar – como fazem alguns filósofos que enchem nas colunas dos jornais destes tempos – a palavra que indica a penetração na nossa experiência de uma coisa nova que de fato enriquece e torna precisas as lembranças que o tempo vai deixando e que torna a nossa vida um caminho: acontecimento. Eles não compreendem a palavra acontecimento, não podem compreender o que possa querer dizer acontecimento. Esta é a palavra que negam com furiosa ira. Aliás, mais profundamente, renegam que na experiência do homem transpareça uma realidade, uma realidade “real”. Como Moravia, que dizia que a existência não tem razões suficientes para permitir que seja afirmada – a realidade seria “insuficiente”, incapaz de convencer da sua efetiva existência –, de modo tal que eu não teria razões suficientes para dizer: “Estou tomando um copo d'água”. São as teses dos maiores filósofos, expressivas da consciência sistemática e crítica de hoje.
Quem nega Cristo, quem o anula – é verdade que permanece todo o problema, o drama, o risco da fé nEle ou da dúvida e até da negação, mas não teórica – antes de mais nada reduz a realidade, reduz a amplitude da exigência do coração e, portanto, do conhecimento humano e do destino humano. Essas pessoas negam o acontecimento, que é a novidade que entra na nossa vida, e negam que à experiência possa corresponder uma existência real de algo que na própria experiência se pode ver. São obrigados, assim, também a reduzir a força da razão. A força da razão, com efeito, está toda na “categoria da possibilidade”, como nós costumamos dizer. Você não pode negar o que se pode pensar como possível, a não ser que contradiga uma evidência incontestável (como é incontestável a evidência de que isto é uma mesa), da qual a razão descreve exaustivamente as feições (a categoria da possibilidade apresenta-se, de fato, também como fonte original da mentira, além de ser fonte da busca da verdade). Diz Santo Agostinho (é uma frase que nos primeiros anos da minha história com os jovens do meu colégio eu citava ao longo de quase todas as aulas): “Quid fortius desiderat anima quam veritatem?”. “O que mais fortemente deseja o coração do homem, a não ser a verdade, a não ser a verdade?”. Mas “quid est veritas?”, “o que é a verdade?”. “Vir qui adest”, “um homem que está presente”, experimentalmente presente, como voltaremos a dizer depois.
De qualquer forma, Einstein era deste parecer. Lembro-me de ter lido no Corriere della Sera, dois dias depois da morte de Einstein, um longo artigo de quatro colunas do grande matemático Francesco Severi, o qual recordava a última conversa que tivera com Einstein, um dia antes que este morresse. Daquele longo diálogo, lembro-me desta frase de Einstein: “Quem não reconhece o insondável mistério não pode nem ser um cientista”. Pois, para poder pesquisar, é necessária a categoria da possibilidade: é preciso admitir a possibilidade da descoberta, a possibilidade de conceber a descoberta a ser feita.
É o que, no fundo, com a simplicidade sugestiva do poeta, dizia Montale ao final de Antes da viagem: “Um imprevisto/ é a única esperança” 7. Um imprevisto. Cristo é o imprevisto! Mais imprevisto do que uma figura como a de Cristo! Vocês podem colocar a palavra que quiserem. “Um imprevisto é a única esperança”: esta é uma definição real, experimentável. Porque podemos contar um a um os fatores implicados em uma qualquer experiência nossa, os fatores de qualquer possível experiência nossa: quando contamos todos e o último bate com o primeiro, há sempre algo que falta, somos remetidos “mais para lá”, como dizia a outra poesia de Montale, sempre na coletânea Satura 8.
“Um imprevisto/ é a única esperança. Mas me dizem/ que é uma tolice se dizer isto.” Eis a alienação, que se torna preconceito: “Mas me dizem que é uma tolice se dizer isto”. Esta restrição trágica da possibilidade de constatar o que existe e da força de reconhecer o que existe (para reconhecer é preciso uma força, a qual não impõe de modo algum como objeto de reconhecimento o que não existe, nem engrandece, tão imprudente quanto gratuitamente, o que existe: engrandecer o que existe é sempre imprudente, três minutos depois você pode se dar conta disto, você se dá conta disto); esta restrição trágica da possibilidade de constatar o que existe e da força de reconhecer o que existe é como uma maldição demoníaca lançada sobre a vida do homem, sobre o esplendor da natureza, sobre a grandeza do espírito, que vêem assim cortados até a raiz qualquer capacidade e significado que tenham.
Tudo isto pode ser dito da possibilidade de uma volta por cima. A figura de Cristo se impõe, mesmo que continue não respondida a pergunta diante do Seu rosto, cheio de ternura, que diz à mulher: “Mulher, não chores!”, ou diante do Seu poder, que lhe permite dizer: “Surge, ressurge, Lázaro, aparece!” 9. Na mentalidade dominante que tende a renegar, por causa da alienação que uma pessoa opera sobre a outra ou por causa da distração a que a fragilidade cede (uma distração, por isso, doentia, patológica, permanente, determinante), há porém uma exceção. Há uma exceção nesta mentalidade comum negativa, dentro da multidão que pode ser definida pela descrição desta manhã; há uma exceção, como a madeira que se vê ainda verde e viva antes que a chama a reduza a cinzas: chama-se juventude. Há uma exceção na sociedade: os jovens. Mas como? Eles não são as vítimas da sociedade? Sim! Paradoxalmente, são as vítimas, mas continuam a ser – mesmo sendo vítimas – uma exceção. Eles vivem uma exigência, mesmo quando tudo é negativo, acerca da resposta a ser dada, das indicações a serem oferecidas; eles vivem uma exigência, sem conhecê-la, sem que ninguém diga isto a eles ou dê a eles uma esperança diante disso.
Digo-lhes: é preciso que vocês, jovens, se dêem conta de que no passado são documentáveis e no presente são visíveis figuras que têm a estatura dos desejos de vocês. Vejam que espécie de estatura tem este homem que se chamava Paulo.
“Por isso, revestidos deste ministério pela misericórdia que foi usada para conosco, não percamos o ânimo; pelo contrário, recusando as dissimulações vergonhosas, sem nos comportar com astúcia nem falsificando a palavra de Deus, mas anunciando abertamente a verdade, apresentemo-nos diante de toda consciência, à vista de Deus. (...) Nós, com efeito, não pregamos nós mesmos, mas Cristo Jesus, o Senhor; quanto a nós, somos os vossos servidores por amor de Jesus. (...) Porém, nós levamos este tesouro em vasos de argila, para que fique claro que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós. Somos, de fato, atribulados de todos os lados, mas não esmagados; somos perturbados, mas não desesperados; perseguidos, mas não abandonados; feridos, mas não mortos, levando sempre e por toda parte em nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo. Com efeito, nós que somos vivos somos sempre expostos à morte por causa de Jesus, pois também a vida de Jesus se manifesta na nossa carne mortal. De maneira que em nós opera a morte, mas em vós a vida. Animados, todavia, por aquele mesmo espírito de fé do qual está escrito: Eu cri, por isso falei, nós também cremos e por isso falamos, convictos de que Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus ressuscitará também a nós com Jesus e nos colocará ao lado dele junto convosco. Tudo, de fato, é para vós, porque a graça, ainda mais abundante por obra de um maior número, multiplique o hino de louvor à glória de Deus. Por isto, não nos desencorajemos, mas se até o nosso homem exterior vai-se desfazendo, o interior renova-se dia após dia (...). Não recomeçamos a nos recomendar a vós, mas é só para dar-vos ocasião de vos gloriardes a nosso respeito, para que tenhais o que responder àqueles que se gloriam apenas no exterior e não no coração. Se, de fato, estivemos fora do bom senso, era por Deus; se somos sensatos, é por vós. Pois o amor do Cristo nos consome ao pensamento de que um morreu por todos e portanto todos estão mortos. E ele morreu por todos, para que aqueles que vivem não vivam mais por si mesmos, mas por aquele que morreu e ressuscitou por eles. De forma tal que já não conhecemos mais ninguém segundo a carne; e mesmo que tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, agora não o conhecemos mais assim. Portanto, se alguém está em Cristo, é uma criatura nova; as coisas velhas passaram, eis que nasceram coisas novas” 10.
Mas ouçam estes testemunhos (tomados entre os contidos na causa de canonização) a respeito de São Riccardo Pampuri, que viveu 1800 anos depois de São Paulo. “Eu o conheci na universidade. Para mim foi um verdadeiro companheiro de estudos. Mesmo mantendo-se alheio às várias 'panelinhas', estava sempre ao nosso lado e do nosso lado. (...) Tenho em mente um fato preciso. Revejo-o, durante um levante estudantil, aproximar-se dos cadáveres de dois estudantes assassinados, o único a ousar fazê-lo. Rezou sobre eles, retirando-se depois sem que ninguém o perturbasse. Os manifestantes que estavam numa janela próxima o respeitaram, ao mesmo tempo em que dispararam imediatamente em um outro que tentou aproximar-se. Não foi apenas uma prova de coragem”. “Sim. Que anos! Naquela cidadezinha perdida nos campos perto de Milão. Ele não tinha um instante de sossego, aliás, não se dava um instante de sossego. Podiam chamá-lo a qualquer hora do dia ou da noite. Era o homem da caridade. (...) Havia instituído um convênio mediante o qual os inscritos pagavam duas liras por ano e ele, dispensando este mísero pagamento, visitava-os a qualquer momento. Como depois o convênio não encaminhava para os especialistas, ele os pagava do seu bolso. Isto quando não pagava também as contas dos seus pacientes na padaria, no açougue... O resultado era que na metade do mês não tínhamos mais dinheiro e ele tinha de pedir emprestado” 11.
De qualquer modo, para completar a menção a esta figura, tão evidentemente diferente da de São Paulo, mas ela também tão correspondente à medida dos nossos desejos de homens – como parecia a de Paulo por onde desembarcava para rever os cristãos e para lhes falar, de Tessalônica a Rodes, às costas da África, talvez até a Espanha, a Roma –, para muitos de nós a figura de São Pampuri é até muito mais precisa do que nestas recordações, que mesmo assim escancaram uma janela para a força deste muito jovem e silencioso médico do convênio; para muitos de nós há algo bem maior e imediato que pode ser testemunhado: todas as semanas, de alguns anos para cá, desde que o invocamos como ajuda para aqueles de nós que não estão bem, ou para os pais e para os familiares de tantos entre nós, todas as semanas, digo, a nós, pelo menos a nós, chegam notícias precisas de milagre, de milagres. Muitos, creio muitíssimos, entre vocês, podem dar alguma notícia a respeito disso.
Eu sempre entendi isto do milagre: o milagre é alguma coisa, um acontecimento, algo que acontece, que a pessoa não previa, que a pessoa não pode explicar como, mas que acontece, é o conteúdo de um acontecimento que obriga você a pensar em Deus. Obriga você. Não necessariamente obriga também os outros. A Igreja, de fato, distingue o milagre que tem um valor privado – quer dizer, que tem como objetivo chamar a atenção de você, a quem acontece o milagre (ou então: acontece a um familiar seu, a um amigo seu, e chega também a você o inexorável pensamento: Deus) – e o milagre que, ao contrário, é tão “mastodôntico” na possibilidade que tem de documentação, que pode ser dito a todos os homens de todos os tempos, como foi o milagre – cuja história foi publicada em 30Dias –, que aconteceu a Pedro De Rudder, um milagre realmente imponente, sem possibilidade de escapatória 12.
O milagre é um acontecimento que chama a minha atenção para Deus. Porque Deus entra na breve circunstância particular, quase imperceptível, de tanto que é pequena, daquilo que nos acontece. Deus se fez familiar ao homem. O fato de que Deus tenha-se tornado um homem, Jesus Cristo, quer dizer que Deus se fez familiar ao homem; a sua maneira de se relacionar com a minha vida, com aquele desejo de felicidade que, criando-me, me deu, exprime-se em uma familiaridade experimentável: eu sou conduzido, iluminado, sustentado, exortado, perdoado, sou objeto de misericórdia, abraçado como por um pai e por uma mãe, como por uma esposa ou por um esposo, como um amigo abraça o amigo do peito. A relação do homem com Deus é o contrário do que toda a mentalidade moderna imagina: grandes trabalhos e grandes esquemas para operações de sonda estelar, tentativas de conhecimento nas profundezas (ou nas alturas) do ser. Não! Tu és meu pai! Disse Jesus: “Amigo, com um beijo tu me trais!” 13. Ou ainda: “Apertou a criança ao próprio peito e disse: 'Ai de quem torce um fio de cabelo, por menor que seja, destas crianças'” 14. Ai de quem as escandaliza, pois ninguém tem atenção pelas crianças.
Deus se tornou familiar. O milagre é um método familiar de relacionamento cotidiano de Deus conosco – o milagre no seu sentido mais pessoal, privado, ou no seu sentido mais público e grandioso. Porque o nosso relacionamento com Deus é todo ele excepcional. Se Ele é o criador, é o criador de cada instante: a todo instante me constrói, a todo instante sou feito dEle. Por isso, que isto apareça, tenda a aparecer familiarmente – como o gesto de amor da mãe tende a ser realizado todos os dias tantas vezes: um olhar, um carinho, um beijo, um “olá” – este é o método de relacionamento de Deus conosco.
Gostaria que lêssemos novamente também este testemunho de Madre Teresa, da qual todos conhecemos a obra, ou a fama, pelo menos. “Lembro-me de ter recolhido um homem da rua e de tê-lo levado para a nossa casa”. “E que disse aquele homem?” – perguntou o jornalista. “Não resmungou, não blasfemou, disse somente: 'Vivi na rua como um animal e estou para morrer como um anjo, amado e cuidado'. Gastamos três horas para limpá-lo, depois olhou para as irmãs e disse: 'Irmã, estou para voltar para a casa de Deus' e morreu. Nunca vi um sorriso como o que havia na face deste homem”. “Por que até nos maiores sacrifícios parece não haver esforço em vocês?” – perguntou ainda o jornalista que a entrevistava. Madre Teresa: “É Jesus aquele para quem fazemos tudo. Nós amamos Jesus”.
Eu disse: são visíveis no presente figuras que têm uma estatura humana digna dos melhores desejos de vocês. Não é uma proposta, é um paradigma pelo qual vocês reconhecem uma Presença. Vocês têm de reconhecer estas presenças. Não é mais Jesus Cristo a única presença na distância da história, que faz com que essa presença pareça ser fruto da imaginação, mas é uma presença dez anos depois da sua morte, quarenta anos depois da sua morte, 1200 anos depois, 1800 anos depois da sua morte, até hoje, até Madre Teresa: palavras e fatos, presença humana impossível de se pensar. Tão pura, tão coerente, tão poderosa, continuando a ser presença na minha fragilidade: a sua humanidade é como a minha, mas na sua humanidade floresce algo que vem de Algo maior. Palavras e fatos impossíveis. Isto é o milagre. Presenças que são um milagre.
Leio a carta de uma nossa amiga universitária, que recebi no início de novembro. “Caríssimo padre Giussani, estou cheia de letícia e de gratidão: o imprevisível aconteceu! Já faz mais de um ano que me submeto semanalmente à quimioterapia para tratar de um tumor. Nenhum resultado, aliás, lentas pioras com complicações cada vez mais graves. Mais de uma vez fui a Trivolzio, a São Riccardo Pampuri, para invocar a sua intercessão. Em 2 de novembro, dia de Finados, fui chamada ao hospital; depois de uma longa espera, apareceu uma vaga: era iminente o transplante de medula. Eu não estava tranqüila, sabia que era uma operação difícil e dolorosa e sabia também que o meu organismo estava muito fraco e dificilmente resistiria. Vi meu nome, que já estava na porta de um quarto esterilizado. Pouco depois, as enfermeiras fizeram-me vestir o avental e levaram-me para cortar os cabelos: parecia que tudo estava para se cumprir. Passaram mil pensamentos em minha cabeça, mas só um tomou forma: rezei ao Senhor que me fizesse participar da Sua Paixão, que nada de mim fosse desperdiçado. Pedi que eu pudesse empregar a minha vida pelo senhor, padre Giussani, e pelos meus amigos. Foi naquele instante que me surpreendeu uma calma, uma paz surpreendente. Eu tinha medo da dor, da morte que naquela enfermaria de hospital, entre os quartinhos esterilizados, se intui mesmo sem ver. Medo, sim, muito, mas era ainda mais forte o desejo de implorar a Sua Graça. Eu desejava viver a minha anulação não como desespero, mas como sacrifício. Estava completamente entregue, podia acontecer comigo qualquer coisa. Mas eu já estava salva, pois em relação com o Eterno. Agora que volto a pensar nisso, gostaria de poder reviver toda a minha vida como vivi aquele momento. Olhava para as minhas mãos, as minhas pobres mãos que iriam ser enchidas de tubinhos e de agulhas, olhava para o rosto de meu pai, sofrendo, mas doce. Durante toda a manhã e a tarde fizeram em mim exames de todos os tipos, repetindo-os mais de uma vez. Só à noite o resultado: não havia necessidade nem de diálise, que havia sido prevista nas semanas anteriores, nem do transplante. A medula surpreendentemente tinha recomeçado a produzir por si só. Era como se o meu corpo, imóvel e mudo há mais de um ano, inesperadamente tivesse recomeçado a funcionar como antes. 'Coisas que acontecem – dizem os médicos –. Os tratamentos finalmente fizeram efeito'. Não me basta! Não pode me bastar uma resposta assim. Olho para eles atordoada e incrédula. Toda a dor de um dia, de um ano, e aquela que viria a acontecer, pois os tratamentos não tinham ainda acabado, apesar da boa notícia, desaparece. Comecei a chorar, um choro de libertação, em que se dissolvia toda a tensão, todo o medo. E a certeza: Ele me ama. Ainda não entendo o que possa ter acontecido, ou, pelo menos, sei o que aconteceu, mas tremo somente em pensar nisso. E sou inundada pela gratidão”.
Vocês acreditam no milagre, se é um fato real. O maior milagre – fato real – é que estas pessoas, na história do homem e na nossa história pessoal, tornaram-se objeto de uma iniciativa particular, inexplicável pelo homem. Mas uma voz diz isto, a própria voz delas: “O maior milagre – fato real – é que Ele me ama”.
Nestas figuras, que demonstram a possibilidade de uma vida feliz, generosa e fecunda, cheia de dedicação aos outros, límpida no dizer “pão pão, queijo queijo”, grandes como crianças – como São Paulo, tão grande, e mesmo assim tão imediato como uma criança –, o milagre que se oferece à nossa consideração, sobretudo na grande síntese de uma personalidade oposta à que vocês ouviram ser descrita esta manhã, que vence – vence! – tudo o que vocês ouviram esta manhã, que não teme nada, mesmo na aparente solidão, o milagre maior é que somos amados. É o que sentiu a nossa amiga – por isto li a sua carta, entre muitas outras ainda mais comoventes e dramáticas –: “Sou amada”.
Vocês são amados. Esta é a mensagem que chega à vida de vocês, queiram ou não queiram, compreendam ou não compreendam, tenham-na já experimentado ou tenham ainda de esperar: que a mendicância de vocês confirme isto, confirme a sugestiva resposta! Este é Jesus Cristo na história do homem, o início contínuo desta mensagem: “São amados!”. O que é a vida? Ser amados. E o ser que temos em nós? Ser amados. E o destino? Ser amados. Isto é Jesus Cristo.
Deus se tornou um homem: quer dizer que o método de Deus com a sua criatura, com vocês, comigo, comigo e com vocês, é um método – como eu disse antes – de familiaridade absoluta. Assim como vocês se dirigem à sua mãe e a seu pai por aquilo de que têm necessidade, da mesma forma nós nos dirigimos a Deus todos os dias, por qualquer coisa de que tenhamos necessidade. E sempre acontece alguma coisa, algo que não poderia acontecer, algo que obrigatoriamente chama a sua atenção para um Outro, para algo outro.
Milagre, portanto. Trata-se de uma realidade que eu vejo, sinto e toco, que sou chamado a viver – e sempre, cedo ou tarde, o “excessivo”, o excepcional acontece –, mas que não posso reduzir àquilo que vejo, sinto e toco, que me remete obrigatoriamente a algo outro. Negando que sou remetido para algo outro, eu teria de negar aquela realidade. E, se a reduzisse, eu a aniquilaria.
O resultado do milagre, deste método normal que Deus tem com a sua criatura (o oposto do método que o mundo tem com qualquer homem), é uma mudança.
Eu gostaria de mencionar, antes de terminar, as características desta mudança. Antes de mais nada – que impressão! –: é como encontrar em um homem excepcional uma presença desconcertante que não esperávamos! E a pessoa é do tipo envergonhado, ou então é atraída.
O milagre – o relacionamento de Deus conosco – é algo que alguém vê, sente, toca, é uma realidade presente, é o conteúdo de uma experiência: a pessoa que assiste, a pessoa que olha seriamente para um só destes fatos subverte todas as palavras de tantos dos intelectuais e jornalistas em voga, os quais tendem, de um lado, a fazer dos homens, das famílias, dos amigos, dos colegas, camadas de cimento nos muros da sua fortaleza de poder, e, por outro lado, a afirmar que tudo é nada. Que grande imaginação! Sim, é preciso uma imaginação de loucos, é realmente uma imaginação de loucos dizer que tudo é nada: não há nada mais contrário à evidência da qual o homem vive. Assim, estas vozes do mundo gastam seu tempo para afirmar que não têm nenhum sentido, nenhum valor as palavras com as quais se exprimem aquela humanidade, aquela dedicação, aquela generosidade, aquele altruísmo, ou seja, aquela possibilidade de ser humanos na qual, pelo contrário, está o sentimento da responsabilidade diante de tudo. Tal como aflora nas cartas de Emmanuel Mounier a sua esposa. Diante da filha que, por causa de uma meningite, ficou idiota por toda a vida, ele viveu responsavelmente, como resposta ao Mistério que faz todas as coisas, como resposta a Cristo, que neste mistério assegura a positividade última; ele viveu como responsabilidade, como resposta a Deus, todos os dias, todas as horas que passavam, com aquela filha diante dos seus olhos. Mesmo que estivesse ali qualquer um de todos os grandes políticos, pensadores e artistas daquela época que passaram por sua casa, à mesa posta o lugar de honra era sempre da pequena menina com idiotia, porque ela representava o mistério do divino, coberto de chagas, oculto, escondido sob uma carne opaca, uma carne que não dava sinal de vida. Assim como Mounier, diante da filha, sentiu a responsabilidade do mundo, da mesma forma nós somos, como ele, dominados pelo remorso da recusa da santidade, que é resposta a Deus, viver como resposta a Deus, ao Mistério. “Nesta história, a nossa desgraça assumiu uma ar de evidência, uma familiaridade que dá segurança, ou, melhor, não é a palavra certa, empenhada: um chamado de atenção que não depende mais da fatalidade. A guerra estourou, a ponto de envolver a nossa desgraça com a grande miséria comum. Assim mergulhado, o peso se tornou mais leve. A guerra ofereceu a P. os momentos mais atrozes da solidão e da angústia. Em setembro, em abril. Mas, apesar destes momentos, essa guerra acabou por curar-nos da doença de Françoise. Quantos inocentes dilacerados, quantos inocentes esmagados! Esta pequena menina imolada dia após dia foi talvez a nossa verdadeira presença no horror daqueles tempos. Não se pode somente escrever livros. É preciso também que a vida nos afaste de tempos em tempos da impostura do pensamento, do pensamento que vive sobre as ações e os méritos alheios.
Agora que a ameaça de abril se distanciou, agora que parece que devamos continuar a viver juntos, Françoise, minha pequena, sentimos uma nova história intervir no nosso diálogo: é preciso resistir às formas fáceis da paz assinalada pelo destino, continuar a ser pai e mãe, não te abandonar à nossa resignação, não nos acostumarmos com a tua ausência, com o teu milagre; doar-te o teu pão cotidiano de amor e de presença, continuar a oração que tu representas, reavivar a nossa ferida, pois esta ferida é a porta da presença, ficar contigo. Talvez seja preciso invejar-nos esta paternidade incerta, este diálogo não-expresso, mais belo do que os jogos infantis” 15.
É uma humanidade, a de Mounier, que torna positiva também a dor e a morte e torna em função do mundo a consciência da própria existência. Uma figura de homem excepcional.
“Quereis, então, a vida ou a morte?”. Assim Deus se dirigiu aos hebreus do tempo de Moisés. Através da grandeza deste seu guia, Deus dirigiu tal pergunta: “Quereis a vida ou a morte?”. Permitam-me ler este breve trecho do Deuteronômio, capítulo 30. “Vê, eu hoje coloco diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal; pois eu hoje te ordeno que ames o Senhor teu Deus, que caminhes pelos seus caminhos, que observes os seus mandamentos, as suas leis e as suas normas, para que tu vivas e te multipliques e o Senhor teu Deus te abençoe no país que estás para entrar a tomar posse. Mas se o teu coração dá um passo atrás e não ouves e te deixas arrastar a prostrar-te diante de outros deuses e a servi-los, eu vos declaro hoje que certamente perecereis, que não tereis vida longa no país em que estais para entrar a tomar posse, passando o Jordão. Tomo hoje como testemunhas contra vós o céu e a terra: eu te coloquei diante da vida e da morte, da bênção e da maldição; escolhe, portanto, a vida, obedecendo à sua voz e mantendo-te unido ao Senhor, uma vez que é ele a tua vida e a tua longevidade, para poder assim habitar na terra que o Senhor jurou dar aos teus pais, Abraão, Isaac e Jacó”.
A consciência do homem – o que é o homem – foi revelada à história do mundo pelos judeus, aos quais Deus em primeiro lugar falou. A consciência do homem começou a comunicar-se à história dos homens, de todos os homens, a partir do judeu errante Abraão. Há um recurso humano que em nós, em cada um de nós, permite reviver esta consciência que Abraão trouxe ao mundo: chama-se “memória”. Colocamo-nos juntos para descobrir este recurso – para descobrir o que é a memória –, para fazê-la reagir para o nosso bem e dos outros. Este programa só pode dar certo através da companhia em que Cristo é reconhecido presente. Porque a “memória” quer dizer: reconhecer Cristo como presença experimentável. Normalmente, a lei desta presença experimentável em que Cristo se oculta é a figura daqueles homens excepcionais, dos quais fizemos exemplo e chamado de atenção.
A influência robusta desta memória se realiza em uma mudança da nossa vida. Muda a nossa vida! Nesta memória que nós buscamos descobrir e viver juntos, acontece obrigatoriamente uma mudança da nossa vida. Acontece uma mudança na nossa criatividade, na nossa paciência, na nossa fidelidade, que obriga a nossa razão a rir da hipótese segundo a qual a justiça e a felicidade, a plenitude e a perfeição da vida são só uma fantasia desesperada. Desesperado é quem as identifica com uma fantasia, com uma imaginação pietista.
Esta memória é uma força que muda agora – agora! –, todos os dias: a oração a renova, o fato de nos vermos companheiros, amigos entre nós, torna-a concreta. É uma força que age todos os dias, em todas as horas, em todos os momentos em que ela volta à tona, à superfície da nossa consciência.
Responsabilidade para com o objetivo do viver, necessidade de intervir na floresta da exigência humana, milagres de resultados inesperados, imprevistos, imprevisíveis, estupefacta gratidão por uma paz emergente: estes são os resultados, os fatos, que mesmo de um ponto de vista intensamente pragmático, mudam o rosto das pessoas e das coisas que seguem este caminho: “Abri no vosso deserto um caminho”. No mínimo, estes fatos não nos deixam ser vítimas intimidadas da desumanidade imperante. Lembremo-nos de que a pessoa não supera a solidão só porque tem gente à sua volta: a pessoa não está só quando está em relação com o Infinito e, portanto, com a totalidade do tempo e do espaço, com a totalidade da história, ou seja, com o significado do tempo e do espaço, com o significado da história, contigo, ó Deus, Senhor, Pai, Cristo.
Em um mundo e em uma sociedade em que tudo é calculado, a figura do homem tocada pela companhia cristã é espaço qualificado pelo milagre do dom de si. Esta é a fórmula que sintetiza toda a ética, a moral do homem – como deve se comportar o homem –, a lei da vida: o dom de si a cada instante. Porque esta é a fórmula do relacionamento entre o homem e o Infinito – o Infinito que existe em cada instante, aquele Infinito que se adensa a cada instante, no relacionamento de cada instante. Um amigo nosso de Moscou – vocês se lembram – escreveu-nos sobre a “densidade do instante”.
Então, como faremos para compreender estas coisas de maneira tal que algo se mova em nós, nos liberte da prisão de tudo o que nos cerca, e possa exprimir-se na grande palavra que está diante do Tu infinito, a palavra “eu”? A única coisa, de fato, que pode estar diante do Tu infinito, erguendo-se em toda a sua estatura, é o eu.
Aquele eu pequeníssimo que tantos filósofos dizem que é um nada, mas que nós compreendemos que é tudo e que resume tudo no diálogo com Quem tudo cria, com Aquele que se fez homem e morreu por nós: morreu por mim, deu a si mesmo por mim. O dom de si qualifica o Criador e qualifica Deus feito homem, que morre pelo homem. Esta é a fórmula, portanto, do relacionamento entre o homem e o Infinito, a todo instante: o dom de si.
Mas como, repito, isto poderá ser factível para nós, praticável para nós? Falei antes de companhia: é com a ajuda da companhia, que não substitui o eu, mas é criada pelo eu que de algum modo se move, torna-se responsável, muda. O ex-Reitor da Universidade de Mônaco e atual Reitor da Universidade Católica – única na Alemanha – de Eichstätt, professor Lobkowicz, disse a alguns de nós: “Vocês são os únicos que eu já tenha conhecido no mundo para quem a amizade é uma virtude”. Uma companhia torna-se amizade e uma amizade torna-se virtude na medida em que ampara a fragilidade para que se veja e reconheça o rosto do ser, do verdadeiro e do belo, na medida em que ampara o coração na sua fragilidade diante da realização, da ação adequada, da justiça, do bem, e na medida em que sustenta a esperança: “Quanta coragem é preciso para sustentar a esperança nos homens!”. Esperança diante da promessa que é a vida: sede de felicidade, promessa de felicidade.
Estes santos, que nomeamos como símbolo e sinal de milhares e milhares de outros grandes homens, nos dêem a graça, realizem o milagre de que todos juntos, nós, cheguemos a realizar a experiência desta incomparável amizade: uma amizade que é virtude, ou seja, instrumento para o destino.
Mas experimentem pensar: a amizade, instrumento para o destino! Se não é isto para um jovem que se apaixona por uma moça! Porque aquele relacionamento se chama amizade, é a fórmula mais aguda de amizade. Se você não deseja o destino para a sua namorada... mas o que vocês estão fazendo? O que vocês são? Então – entendam – abre-se a passagem, escancara-se aquele vazio que as palavras desta manhã preenchem, porque vocês não são dignos de outras palavras! Mas o que fazem juntos? Por que vocês ficam juntos? Que palavra você diz quando diz “tu”? Quando pronuncia o nome da sua companheira, do seu companheiro? Quando pensa nele, quando o imagina, quando imagina o amanhã? O que vocês são? Nada! Se o homem em relação com a mulher não é nada, então eu entendo que tudo é nada!
Mas não tem razão, não tem razão o niilista! Porque é grande – Deus, como é grande! – o homem, o jovem, o rapaz quando olha para a sua namorada, num momento em que ela não o vê, porque está indo embora, olha para ela e sente o melhor de si vir à tona: vem-lhe a comoção, vem-lhe – dizíamos uma vez, neste verão – uma adoração. É justo! Porque aquele rosto é o símbolo dAquele que nos fez para Si, ou seja, para a felicidade, é símbolo do nosso destino, que é a nossa felicidade, que é a beleza, como entendeu Leopardi no hino À sua mulher, que é a verdade, como entendera Santo Agostinho, e converteu-se por isso: Quid est veritas? O que é a verdade? Um homem! Vir qui adest. Um homem que está aqui presente, experimentável: diretamente ou no homem que Ele muda, no santo, no homem que muda e, faço votos de que isso aconteça a você, no amigo que você tem ao seu lado. Faço votos de que você seja amigo assim, antes de mais nada para com aquela com quem pretende passar a vida.

Notas:

[1] Jo 4, 22.
[2] Is 43, 19.
[3] Lc 7, 11-17.
[4] Jo 15, 5.
[5] Cf. Jo 15, 11.
[6] Jo 16, 33.
[7] E. Montale, “Antes da viagem”, in L'Opera in versi, Milão, Einaudi, 1980, p. 380.
[8] E. Montale, “O agave nos recifes” in L'Opera in versi, Turim, Einaudi, 1980, p. 70.
[9] Jo 11, 43.
[10] 2 Cor 4 e 5.
[11] Litterae Communionis, março/abril de 1995, pp. 37-38.
[12] Revista 30Dias, nº 8, setembro de 1995, p.50.
[13] Cf. Lc 22, 48.
[14] Cf. Mt 18, 6.
[15] E. Mounier, Lettere sul dolore, Milão, Rizzoli, 1995, p. 67-68.

(Texto publicado na edição n. 49 de Litterae Communionis, jan/fev 1996)