Homens sem pátria

Página Um
Luigi Giussani

Publicamos um trecho do novo livro de Luigi Giussani, Uomini senza patria (1982-1983), terceiro volume da série “L’Equipe” (que traz palestras e diálogos de Dom Giussani com os responsáveis dos universitários de Comunhão e Libertação). A série faz parte da coleção “I Libri dello Spirito Cristiano”, dirigida por Julián Carrón para a editora italiana Rizzoli.

Giussani: Além do ponto de partida dado pelos relatos que vocês nos enviaram, como lhes foi pedido, e que será respeitado, nós temos um outro, num fato que se deu nesse meio tempo, que subverte até mesmo a pertinência das coisas que vocês nos escreveram e transpõe a questão, de um modo sugestivamente dramático, a um nível que nós já sentimos, sobretudo a partir de 1968 e de modo especial em alguns dos últimos anos, mas sem tomar consciência disso. Esse fato foi o encontro com o Papa que tivemos na semana passada. Além do interesse que o Papa tinha pelo Meeting, sobre o qual nos pedia referências ou observações, o mais impressionante naquela conversa, que durou uma hora e meia, foi descobrir no Papa, como uma convicção óbvia, uma atitude adquirida, uma coisa que ao menos duas outras vezes ele já havia deixado explícito em palavras que foram preciosas para nós, que despertaram entusiasmo, mas que, de certa forma, não acolhemos com toda a seriedade definitiva com a qual o Papa as havia pronunciado. Estou me referindo, em primeiro lugar, à frase que depois pusemos na capa de uma Litterae Communionis: “Vossa maneira de enfrentar os problemas humanos é muito semelhante à minha; aliás, eu diria que é a mesma” 1. Ele disse a mesma coisa uma segunda vez, diante dos universitários de Roma, numa reunião em Castelgandolfo. Ninguém mais se lembra dessa frase. Mas eu, sim. Digo isso apenas para lhes dar um paradigma, uma demonstração prática do que eu disse antes: foram frases que nos impressionaram, que até nos entusiasmaram, e com razão, mas às quais não demos o peso definitivo, o valor definitivo que elas tinham para o Papa. Foi na circunstância da semana passada que percebemos isso, não digo com medo, mas certamente com temor e tremor, pois, justamente por isso, nosso movimento, nossa experiência chegou a uma guinada da qual já não podemos voltar atrás, no sentido de que, se alguém não segue essa direção, é como se saísse da corrida por um desvio, fica de fora. Pelo menos duas ou três vezes, o Papa repetiu – por assim dizer – essa identificação do destino da sua figura com o destino da nossa experiência. Quando estávamos descendo para o café da manhã... mas diga você, que se lembra melhor.

Depoimento: Quando estávamos descendo para o café da manhã, depois de nos cumprimentar, o Papa perguntou a Dom Giussani: “Como vai CL?” Ele ouviu a resposta, e depois acrescentou: “É verdade, CL tem muitos inimigos: os mesmos do Papa”.

Giussani: Só superficialmente podemos rir disso, pois, na verdade, é uma surpresa quase trágica. Realmente, depois, quando falava que a desgraça da Igreja tinha sido introduzir, no pós-Concílio, categorias da mentalidade laica dominante, como, por exemplo, as categorias de “integrista” e “aberturista”, sendo que só o aberturista teria o direito de existir na sociedade de hoje, o Papa disse: “Exatamente o mesmo que dizem de mim, dizem de vós; a maneira como vos definem é a maneira como definem a mim”. E mais: “Onde o Papa é acolhido, vós também sois acolhidos”.
Mas eu talvez não tivesse lembrado esse momento, embora de extrema importância para o caminho do nosso movimento – tanto é, que no final ele nos disse: “Precisamos nos ver outra vez logo depois do Meeting”; era como a vontade que uma pessoa tem de conversar, finalmente, com amigos que não consegue encontrar em lugar nenhum -, talvez eu não tivesse lembrado esse momento se o Papa não tivesse acrescentado uma outra coisa nas ultimíssimas palavras daquele diálogo. Ainda sentado, mas já se virando na cadeira para se levantar, ele disse: “Vós não tendes pátria, pois sois inadmissíveis nesta sociedade”. Depois, ficou um momento em silêncio e, quase ao mesmo tempo em que se levantava da cadeira, repetiu esta frase: “Vós não tendes pátria”, e era comoventemente visível nela a projeção, em nós, da própria situação dele.
É realmente uma coisa surpreendente, que raramente aconteceu na história, o fato de um Papa identificar sua experiência de fé, que ele propõe a toda a Igreja, o fato de a encontrar – por assim dizer – correspondida, identificada numa determinada experiência, na experiência de determinado grupo. Mas, se é uma coisa surpreendente, é também uma terrível responsabilidade. Aquilo que eu disse antes talvez lhes permita sentir a coisa de uma forma mais imediata. Eu disse que era como alguém que finalmente tinha amigos com os quais se sentia em sintonia, pois é alguém que não tem pátria, ou seja, que não é acolhido por ninguém. Isso está dito na primeira página do santo Evangelho de João: “Quando veio, não teve pátria, ou seja, morada” 2.
E eu acho justo que, se o Papa disse isso a nós quatro, eu o diga também a vocês. Mas entender bem o que significa essa grande observação do Papa sobre a nossa experiência, justamente na medida em que diz respeito à nossa pessoa, entender bem o que ela significa quer dizer começarmos realmente a estar maduros no caminho do nosso movimento.
O trabalho destes dias talvez possa nos ajudar a dar, não digo um primeiro passo, pelo motivo que explicarei depois, mas um novo passo no caminho de uma compreensão madura do que é a nossa experiência, que é tal a ponto de merecer a definição do Papa: “Vossa experiência não pode ter pátria”. A pessoa que não tem pátria vive sempre sem seguranças humanas, sem proteções, sem descanso, sempre de alguma forma atravessando, portanto “contra”, mas contra no sentido de atravessando. No fundo, no fundo, se vocês juntarem essas palavras, elas representarão a descrição ou a definição do antiburguês, daquilo que não é burguês, daquilo que não é consolidado socialmente, que não é established, que não pode ser established.
Eu disse que é um novo passo. O trabalho destes dias nos fará dar um novo passo, o primeiro em sentido consciente, pois o primeiro, em sentido inconsciente, foi aquele que nos arrebatou para esta companhia, que nos fez seguir em frente por tantos anos, que nos levou a criar os CP, a Cusl, que nos leva a fazer também o Meeting de Rímini ou o Meeting do Mediterrâneo 3. Mas, dentro de tudo isso, não tínhamos consciência daquilo que agora eu digo ser o primeiro passo na compreensão do fato de sermos sem pátria. Pois vejam, no fundo, no fundo, toda a nossa atividade, desde que nasceu Comunhão e Libertação, desde 1970, especialmente desde 1973, quando fizemos o famoso encontro no Palalido, com seis mil universitários 4 , e toda a atividade da Cusl, dos CP, todos os Meeting deste mundo, todas as cooperativas, toda a luta pelos refeitórios, tudo o que fazemos é para ter uma pátria, para ter uma pátria neste mundo. Não digo que isso não seja justo. Digo que nós o fazemos para ter uma pátria, e que essa pátria nós não teremos. “Vós sois sem pátria.”
O primeiro passo consciente foi o Cartaz de Páscoa. Foi o primeiro passo consciente para algumas universidades – como pudemos ver, pelos relatos que vocês enviaram –; para outras, ainda não, não chegou a ser nem o primeiro passo (não vou citá-las; eventualmente, numa conversa pessoal, possamos até dizê-lo). O Cartaz, inesperadamente, atravessou toda a nossa temática; de certa forma, sem que o pudéssemos esperar, ele a deixou de lado ou para trás, para chegar à questão: e a questão é um fato que ocorreu, um acontecimento, que a primeira página do Evangelho de São João (cuja segunda metade foi praticamente o conteúdo desenvolvido pelo Cartaz) nos descreve no instante em que apareceu pela primeira vez como problema no mundo. Em outras palavras, o passo que o Cartaz nos convidou todos a dar, e que muitos conseguiram dar, vem do fato de que estabeleceu, ou melhor, revelou que a questão não são todas as coisas que estamos fazendo, os nossos afazeres, a nossa análise das coisas, o nosso ponto de vista sobre as coisas, inspirado em valores cristãos. Ficamos dez anos trabalhando em cima dos valores cristãos, e esquecendo Cristo, sem conhecer Cristo. O problema é Cristo, conhecer Cristo. Como diz São Paulo, no terceiro capítulo da Carta aos Filipenses: “Eu, se tivesse de me comparar a vocês, ficaria muito bem, pois sou muito mais do que vocês, sou professor na universidade – digamos que, pela idade, era um professor titular -; já passei voando pela pós-graduação, e me tornei, ainda muito jovem, professor titular da universidade; sei tudo o que vocês sabem e até muito mais que vocês; fiz, pela minha religião, algo que vocês não fizeram, mas entendi que tudo isso é esterco, diante do conhecimento de Cristo” 5. O acontecimento cristão tem isto como seu objeto, como seu conteúdo: o conhecimento de Cristo. Não é um conhecimento que possa ser reduzido, mesmo como analogia, ao estudo que fazemos dos fósseis ou de Júlio César. Por isso, a palavra mais adequada é “reconhecimento” de Cristo: pois uma Presença a gente não conhece, e, sim, reconhece.
Gostaria de reler agora uma página de Eliot, embora já a conheçamos. Pois, se nós não temos pátria, não é porque somos cristãos. Os cristãos têm tanto uma pátria, podem ter tanto uma pátria, que, na Tchecoslováquia, na Polônia, na Hungria, ou seja, nas realidades mais coerentemente atéias e anticristãs, eles têm um estatuto, um status, uma parte estabelecida na lei social (os sacerdotes, na Hungria, estão entre os funcionários públicos mais bem pagos). O cristão não é perseguido porque pensa as coisas de determinada maneira: no mundo ocidental, temos até a Democracia Cristã, e uma dúzia de associações cristãs. Quem não tem pátria em lugar nenhum na sociedade de hoje é aquele que reconhece a presença de Cristo – uma presença diferente de todas as outras – em sua vida, na trama de suas relações, na sociedade em que vive; reconhece tanto essa Presença, que é ela que determina sua forma de ver, a forma da sua percepção, portanto a forma do seu juízo e do seu comportamento. Não tem pátria o homem que diz: “Deus é um fato presente, com um nome histórico que alcança e toca fisiologicamente a minha vida, e, portanto, pretende determiná-la em todos os sentidos, a fim de que, por meio da minha vida, possa determinar a vida da sociedade”. Esse homem não tem pátria. Enquanto o cristianismo se limita a afirmar dialeticamente e até praticamente os valores cristãos, encontra espaço e acolhida por toda parte. Mas, quando o cristão é o homem que anuncia na realidade humana, histórica, a presença permanente – a presença e a presença permanente – de Deus que se fez Alguém no meio de nós, objeto de experiência (como a de um amigo, de um pai ou de uma mãe), ativamente determinante como horizonte total, como o amor último (“No âmbito da experiência de um grande amor, todas as coisas se tornam um acontecimento” 6), a presença de Cristo como centro da maneira de ver, de conceber e de enfrentar a vida, como sentido de toda ação, fonte de toda a atividade do homem inteiro, ou seja, fonte da atividade cultural do homem, quando o cristão é o homem que anuncia isso, não tem pátria.

(traduzido por Durval Cordas)

Notas

[1] Cf. a capa de Litterae Communionis – CL nº 3, março de 1980 (João Paulo II aos universitários de CL do centro-sul, Roma, 26 de janeiro de 1980).
[2] Cf. Jo 1,11.
[3] Referências aos Católicos Populares (CP), à Cooperativa Universitária de Estudo e Trabalho (Cusl, na sigla em italiano), ao Meeting pela Amizade entre os Povos, realizado anualmente na cidade italiana de Rímini, e ao Meeting do Mediterrâneo, realizado pela primeira vez em Catânia, na Sicília, em 1981.
[4] Referência ao congresso que tinha como tema “Nas universidades italianas pela libertação”, realizado no ginásio Palalido, de Milão, em 31 de março de 1973, que contou, além de seis mil estudantes, com a presença do deputado Aldo Moro, um dos líderes da Democracia Cristã na Itália.
[5] Cf. Fl 3,4-8.
[6] Cf. Guardini, R. L’essenza del cristianesimo. Brescia, Morcelliana, 1980, p. 12.