No colapso das evidências, a geração de um sujeito

Página Um
Julián Carrón

Transcrição do encontro conclusivo de Julián Carrón nos Exercícios Espirituais dos sacerdotes. Pacengo del Garda (Verona), 5 de novembro de 2014

Acordei esta manhã com a urgência de pedir o Espírito para todos nós, porque só o Espírito pode dar-nos aquela abertura, aquela capacidade de conhecer, que nos consente reconhecer como as coisas realmente estão. Sem essa consciência, não é que não façamos coisas ou não tomemos iniciativas – porque cada um de nós se move, seja como for, por uma certa percepção que tem das coisas, por uma urgência que vê –, mas aquilo que fazemos não tem incidência. Por isso, que nos ajudemos mutuamente a ter um olhar verdadeiro sobre o real, sobre as circunstâncias que vivemos é o primeiro gesto de amizade que nos oferecemos para viver, para viver o nosso ministério, para viver diante das necessidades do mundo.

Uma percepção diferente do real
O primeiro dom que Dom Giussani nos deu, pelo qual começou a gerar a história à qual pertencemos, foi a sua percepção do real. Pensemos no seu diálogo com os jovens no trem, ou com os colegiais que se aproximavam dele para se confessarem, quando ia à paróquia da Avenida Lazio, em Milão, no fim de semana, no início da década de 1950. Dialogando e confessando, teve uma percepção clara de qual era a situação, por isso decidiu mudar tudo, até a própria perspectiva acadêmica, chegando a revolucionar, de certa maneira, aquilo que os seus superiores tinham pensado para ele: fez isso para responder a uma urgência que lhe tinha surgido de forma evidente. Foi daqui que começou. Numa situação como aquela da Igreja ambrosiana da década de 1950, na qual não existiam problemas particulares de ortodoxia e tudo se transmitia pacificamente, o seu olhar captou – por graça – uma questão decisiva, com uma capacidade de ler verdadeiramente os sinais dos tempos, aqueles sinais que quase ninguém via. Como sempre acontece, aquilo que agora é evidente para todos, devido às consequências que vimos e vemos, no início só era reconhecido por alguns. Ao gênio bastam poucos indícios para tirar uma conclusão geral. É essa a genialidade do Espírito, que pode dar a alguém a graça para que comece a entender. Ao longo da sua vida, Dom Giussani nos ofereceu muitos sinais desse olhar diferente, diferente do olhar dos outros e diferente também do nosso, tanto que surpreendia até a nós mesmos.
O que não corria bem naqueles anos? A doutrina transmitida de forma ortodoxa já não penetrava na vida, não se tornava de novo experiência. Dom Giussani deu vida ao Movimento exatamente para começar a responder àquela urgência. Por isso, recomeçou tematizando a experiência, porque sem ela – ou seja, se a doutrina não entra na vida e não se faz experiência – nós não podemos compreender a natureza da fé. Desde o início, colocou a experiência no centro: “Não estou aqui para que vocês considerem como suas as ideias que eu lhes transmito, mas para lhes ensinar um método verdadeiro para julgar as coisas que lhes direi” (Educar é um risco. Bauru: Edusc, 2004, p. 16). Quer dizer: não vim para convencê-los de algo, mas para lhes dar o instrumento para que possam fazer experiência e se convencerem por si mesmos, ou seja, para que a personalidade de vocês seja gerada através da comparação constante entre aquilo que vivem e os critérios que surpreendem dentro de vocês, empenhando-se na verificação da proposta que recebem.

Uma fragilidade de consciência.
Como se não existisse mais nenhuma evidência real

Mas, a certo ponto, muitos anos depois do início do Movimento, Dom Giussani percebeu que, sobretudo na vida dos jovens, estava acontecendo outra vez algo de novo, que não se manifestava – como muitos podemos pensar – numa espécie de incoerência ética. Isso não seria nada. Ele compreendeu que a fragilidade dos jovens da década de 1980 não era apenas uma fragilidade de coerência, não era apenas uma fragilidade moral: “Parece-me que a diferença esteja numa maior fragilidade de consciência que se tem agora; uma fragilidade não ética, mas de energia da consciência. [...] É como se [hoje] não houvesse mais nenhuma evidência real a não ser a moda, porque a moda é um projeto do poder” (L’io rinasce in un incontro. 1986-1987. Milano: Bur, 2010, pp. 181-182).
Essa fraqueza da evidência cresceu exponencialmente nos anos seguintes e continua a crescer. Hoje, podemos compreender ainda mais claramente o alcance de um trecho do então Cardeal Ratzinger que citamos falando da Europa: “Na época do Iluminismo [...], na contraposição entre as confissões e na incumbente crise da imagem de Deus, tentou-se manter os valores essenciais da moral fora das contradições, e encontrar para eles uma evidência que os tornasse independentes das múltiplas divisões e incertezas das várias filosofias e confissões. Pretendeu-se assim assegurar as bases da convivência e, mais geralmente, as bases da humanidade. Isso parecia possível nessa época, na medida em que as grandes convicções de fundo criadas pelo cristianismo em grande parte resistiam e pareciam inegáveis [...]. A busca de uma certeza tão reconfortante que pudesse permanecer incontestada para além de todas as diferenças falhou” (A Europa de Bento na Crise de Culturas. Lisboa: Alêtheia, 2005, p. 39).
De fato, como escrevia ainda o Cardeal Ratzinger em 1998, “O colapso de certezas religiosas que, há 70 anos, parecia ainda poder ser travado, tornou-se, entretanto, em grande parte realidade. Portanto torna-se mais forte e generalizado o medo de que isto leve inevitavelmente a um colapso da humanidade tout court” (Fé, Verdade, Tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo. Lisboa: UCP, 2007, p. 125-126). Por isso, quando falamos de “colapso das evidências” – como fizemos por ocasião das eleições europeias –, estamos indicando algo que caracteriza profundamente o nosso contexto histórico. Giussani não se deixou confundir pelas consequências. Tal colapso, com efeito, traz consigo toda uma série de consequências éticas e morais, mas é a origem o que é claramente identificado por ele: não existe mais nenhuma evidência real. O fato de termos dificuldade para percebermos isso diz-nos até que ponto também nós participamos dessa situação. Na sua origem, de fato, há uma redução do homem, das suas capacidades fundamentais, que leva a não reconhecermos mais a evidência. Essa redução – diz Dom Giussani – afirma-se pelo influxo do poder. O ataque fundamental perpetrado pelo poder é dirigido ao eu, é uma redução do eu, do desejo, da capacidade da razão de reconhecer o real. Talvez também nós sejamos mais definidos pelo poder do que podemos pensar, e a dificuldade em reconhecer o tipo de colapso que caracteriza o nosso tempo é o primeiro sinal disso. Por isso, o poder pode deixar que fiquemos distraídos com outras coisas, porque no fundo, não apreendendo e não alcançando a origem de tudo, de onde vêm todas as consequências negativas que vemos, com o nosso fazer não constituímos um problema.
Um amigo relembrou-me, a este propósito, uma frase de Chesterton: “O mal não é que os sábios não vejam a resposta, mas que não vejam o enigma” (cf. Ortodoxia. São Paulo: Ed. Ecclesia, 2013), ou seja, não se dão conta do problema, não veem a evidência, e então é difícil para eles compreenderem todo o resto. E isto, dito entre parênteses, não é um problema de alinhamentos eclesiásticos, progressistas ou conservadores, mas de um olhar sobre o real que diz respeito a todos. Por outro lado, é o mesmo problema que Jesus tinha com os fariseus: quando sublinhavam com tanto furor a ética, por que o faziam? Porque não compreendiam a natureza do problema e, consequentemente, podiam contentar-se em insistir sobre a ética. Muito pelagianismo que tantas vezes carregamos conosco depende do fato de que não nos damos conta da natureza do problema humano; por isso podemos tentar desesperadamente várias soluções, sem desafiar minimamente o fundo da questão. Às vezes, aos nossos olhos, Jesus parece um ingênuo e nos escandaliza; quando diz “olhem que, no fundo, no fundo, não é este o problema”, escandaliza todos: “Mas como?! Como é possível que, para Jesus, pareça ser mais importante ir comer na casa de Zaqueu do que dar-lhe uma lição de moral?”. A atitude de Jesus incomoda a todos. “Mas como é possível?”
Jesus tem uma percepção diferente da questão, uma percepção verdadeira. De quanto tempo precisaremos para compreender isso? Algo parecido já nos aconteceu. De fato, Dom Giussani viu certas coisas desde o início, mas foi preciso muito tempo para que se tornasse evidente também para nós, e agora para todos. Não é um problema de alinhamentos, de discussões ou de dialética. Pensar em resolver a questão com a dialética faz já parte da incapacidade de reconhecer as evidências, as evidências “mais evidentes” – perdoem-me o jogo de palavras –, da incapacidade de captar o que acontece, qual é o colapso diante do qual nos encontramos. Se não nos dermos conta disso, não poderemos esperar responder de forma adequada ao desafio, mesmo que nos agitemos de mil maneiras.

Uma redução da capacidade de olhar
É uma percepção da condição humana no seu todo, do humano como tal, que é reduzida. Se não nos damos conta disso, disse-nos Dom Giussani, é devido ao influxo que o poder tem sobre nós, reduzindo a nossa capacidade de olhar para a realidade. Tal influxo não reduz, em primeiro lugar, a nossa capacidade ética, de coerência, mas a capacidade de olhar. A consequência é um conhecimento reduzido daquilo que acontece. Por isso, me surpreendeu tanto aquele texto de Dom Giussani que depois citei nos Exercícios da Fraternidade (Cf., J. Carrón, “Correndo para alcança-Lo”: Exercícios Espirituais da Fraternidade de Comunhão e Libertação. Junho 2014, p. 32: “Se estamos tão vergonhosamente divididos [dentro de nós], fragmentados, que é impossível a unidade até entre o homem e a mulher, e não se pode confiar em ninguém; se somos tão cínicos em relação a tudo e todos, e tão desapaixonados de nós mesmos [como se estivéssemos separados de nós mesmos], como podemos deste lodo retirar alguma coisa para reconstruir as nossas paredes derrubadas, obter o cimento para a construção de paredes novas? [...] Dada esta nossa situação ferida, não podemos, com efeito, dizer: ‘Vamos reconstruir o humano!’. Se estamos assim vencidos, como poderemos vencer? [...] É preciso que venha alguém de fora – tem de vir alguém de fora [de fora dos nossos pensamentos, da nossa capacidade reduzida de olhar, da nossa capacidade reduzida de ver; deve vir alguém de fora para nós, agora, não para nós antes que começássemos a viver o cristianismo, não para aqueles que ainda não são cristãos, mas para nós que já somos cristãos] – e que diante desta nossa casa derrubada refaça as paredes. [...] Aqui reside a dificuldade maior em relação [...] ao cristianismo autêntico: é através de outra coisa – que vem de fora – que o homem se torna si mesmo” (L. Giussani, “È sempre una grazia”, in È, se opera, supl. Revista 30Giorni, fev/1994, pp. 57-59).
Isto, insiste Giussani, “não agrada”: atenção, não nos agrada! Vemos em nós uma resistência, porque cada um pretende já ter as ideias claras. Pensemos em certos diálogos entre nós: cada um já tem um juízo sobre a situação, sobre o que seria preciso fazer, todos já sabemos, e nós, sacerdotes, mais do que todos! Por isso, que seja algo de outro, que vem de fora, a reconstruir as nossas paredes destruídas, não nos agrada, “porque [...] dá guarida a algo que não corresponde à nossa imaginação e a uma nossa imagem de experiência, que parece abstrata na sua pretensão. [Assim] [...] prende-nos [devíamos todos esculpir esta frase diante dos nossos olhos!] [...] numa aspiração impotente a remediar ou numa pretensão fraudulenta, mentirosa, quer dizer: identifica-se o remédio com a própria imagem [qualquer que seja a imagem que alguém crie para si] e [com a própria] vontade de remediar [criamos uma imagem para nós mesmos e confiamos em nossa vontade de remediar levando à frente aquilo que temos na cabeça] [...]. Assim nasce o ‘discurso’ sobre os valores morais, porque o discurso sobre os valores morais subentende que o remédio para a dissolução vem pela força da imaginação e da vontade do homem: ‘Vamos juntar-nos que remediaremos!’” (Idem, p. 59).

Cristo veio para despertar
a nossa capacidade de conhecer o real

Se não nos ajudarmos a sair das nossas imagens e dos nossos pensamentos, se não deixarmos de nos enfurecer na tentativa de realizá-los com as nossas ações, não responderemos ao desafio atual. A situação que Dom Giussani descreve é a mesma que nos recorda a Igreja ao longo da sua história: “Os preceitos da lei natural [isto é, as maiores evidências para o homem] não são percebidos por todos de maneira clara e imediata [por causa da redução do nosso eu, que também nós vivemos]. Na situação atual, a graça e a Revelação são necessárias ao homem pecador para que as verdades religiosas e morais [ou seja, as evidências] possam ser conhecidas ‘por todos e sem dificuldade, com firme certeza e sem mistura de erro’” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1960). Esta é a situação: já no século XIX, o Concílio Vaticano I o afirmava, depois retomado pelo Catecismo, falando do conhecimento de Deus. Por isso, num documento sobre o mesmo tema, a Comissão Teológica Internacional declara: “É necessário, portanto, ser modesto e prudente quando se invoca a ‘evidência’ dos preceitos da lei natural” (Comissão Teológica Internacional. Em busca de uma ética universal: novo olhar sobre a lei natural, 2009, n. 52). Essa condição agravou-se devido ao influxo da secularização e por isso a condição do homem contemporâneo é caracterizada precisamente pelo colapso das evidências.
Dom Giussani não estava portanto distraído quando, para responder a essa situação, nos comunicou o cristianismo, não para nos convencer das suas ideias, mas para que pudéssemos ver de novo a realidade tal como ela é; disse-nos que Cristo veio exatamente para despertar em nós o senso religioso, para despertar a nossa capacidade de conhecer o real. Se não nos dermos conta disso, acabaremos por bloquear aqui e ali algumas consequências, mas sem ajudar verdadeiramente o homem a ver. A situação está de fato radicalmente mudada: não é que as pessoas vejam a evidência e a neguem – porque são más, ou fechadas –; não a veem mesmo, e isso faz parte da decadência do humano que temos constantemente diante de nós. Se nós podemos dizer que vemos, é só porque somos cristãos, porque o fato de Cristo nos recoloca na posição de ver. Caso contrário, também nós pensaríamos como todos. Não podemos, então, recriminar o outro porque não vê (podemos fazê-lo, mas é inútil!): é preciso dar ao outro uma contribuição real, ajudando-o a sair desta situação bloqueada e a voltar a ver a realidade.
Impressionou-me uma observação do Cardeal Scola, contida numa entrevista ao jornal La Repubblica nos dias do Sínodo sobre a família. Parece-me preciosa para nós e por isso volto a propô-la. Falando do hoje no qual se encontra a Igreja, disse: “O confronto com a revolução sexual [como última tentativa do indivíduo de salvar-se a si mesmo, segundo todas as imagens que cada um pode inventar] é um desafio talvez não inferior ao que foi lançado pela revolução marxista” (A. Scola, “O não aos divorciados permanece, mas não é um castigo e sobre os homossexuais a Igreja foi lenta”, entrevista para Paolo Rodari. La Repubblica, 12 de outubro de 2014, p. 19). São duas tentativas, em nível social ou individual, de se salvar por conta própria.
Diante desse novo desafio, que envolve a Igreja e a nós mesmos, temos, na nossa história (refiro-me à vida do Movimento, ao longo da qual Dom Giussani nos acompanhou), o recurso que nos permite enfrentá-lo. Todavia, às vezes me parece que, não tendo aprendido o bastante com essa história, repetimos alguns erros do passado. E me espanta que não tenhamos ainda apreendido, em toda a sua densidade, aquilo que dissemos na primeira lição dos Exercícios da Fraternidade, exatamente relendo a nossa história: como Dom Giussani encarou o desafio da revolução marxista em 1968 e como julgou a nossa tentativa de responder a ela. Como não demos o devido valor a isso, podemos repetir as mesmas tentativas e os mesmos erros.

Uma insegurança existencial,
que faz buscar o apoio nas coisas que se fazem

Dom Giussani dizia que por detrás das nossas tentativas, todas elas desejosas de responder à situação, havia “‘uma concepção eficientista do empenho cristão, com tons de moralismo’. Mais que tons: uma redução completa a moralismo! [porque não entendiam, no fundo, do que se tratava] [...]. Segunda consequência [...] [é] a incapacidade de ‘culturalizar’ o discurso, de levar nossa experiência cristã até o nível em que ela se torna juízo sistemático e crítico, passando, portanto, a sugerir formas de ação. [...] Terceira consequência: o menosprezo teórico e prático da experiência da autoridade” (“A longa marcha da maturidade”, Passos, n. 92/abril 2008, pp. 23-24).
Por que isso acontecia, segundo Dom Giussani? Por causa de uma ingenuidade, “a ingenuidade do homem que diz: ‘Deixa comigo, que agora eu vou consertar tudo’ [...] Que melancolia!” (Idem, p. 21). Que melancolia, verdadeiramente, porque muitas dessas tentativas nasciam e nascem – podemos constatá-lo também hoje – “de uma insegurança existencial, isto é, de um medo profundo, que faz buscar o apoio nas próprias expressões. Essa observação, que já fizemos uma vez, é de uma importância capital. Uma pessoa cheia de inseguranças, ou que tem um medo e uma ânsia existencial no fundo, dominante, busca a segurança nas coisas que faz: a cultura e a organização. [...] É uma insegurança existencial, é um medo de fundo, que faz conceber como próprio ponto de apoio, como razão da própria existência, as coisas que se fazem num âmbito cultural ou organizativo”. No entanto, o mais terrível é aquilo que ele observa logo a seguir: assim, todas as coisas que fazemos, “toda a atividade cultural e toda a atividade organizativa não se tornam expressão de uma fisionomia nova, de um homem novo”, porque são sinais do nosso medo existencial. De fato, continua Giussani, “se fossem a expressão de um homem novo, poderiam até nem existir, quando as circunstâncias não o permitissem, mas aquele homem estaria de pé. Ao passo que, pelo contrário, muitos dos nossos aqui presentes, se não fossem essas coisas, não estariam de pé, não saberiam por que estão aqui, não saberiam a que aderem: não está, não consiste, porque a consistência da minha pessoa é a presença de um Outro” (Uomini senza patria. 1982-1983. Milão: Bur, 2008, pp. 96-97).
Se nós não dermos o devido valor a essa história, mesmo continuando a tomar iniciativa, com o nosso fazer, agitando-nos, não tocaremos a origem última da questão, ficaremos, como Dom Giussani nos relembra, na ingenuidade.

Aprofundar a natureza do sujeito
que enfrenta os problemas

Retomando a experiência do Evangelho, ele sublinha que a pessoa, a pessoa reduzida pelo poder, “encontra a si mesma [só] em um encontro vivo, quer dizer, em uma presença em que se embate e que libera uma atração” (L. Giussani, L’io rinasce in un incontro. 1986-1987. Milão: Bur, 2010, p. 182). Se isso não acontece, todas as nossas tentativas de responder aos novos desafios, a esta redução pela qual o homem pode se contentar com todas as imagens de si que constrói, segundo uma modalidade que pode ser diferente em relação à da revolução precedente, não terão qualquer resultado. Se o homem não se reencontra, só poderá sair ainda mais reduzido dos seus esforços de resolver o problema. Vemos já o quanto as tentativas de tantos dos nossos contemporâneos sejam incapazes de captar a natureza do eu e, portanto, de responder às suas exigências últimas.
O que Jesus faz para despertar o homem, para reerguê-lo desta situação? Encontra as pessoas, coloca diante delas uma presença humana – a Sua – não reduzida. Porque só se deparando com Ele, com sua presença, com a consciência clara que Ele tem de Si, com Sua capacidade de se dar conta de qual é a densidade e a espera do coração, pode ser despertada sua humanidade, a percepção do alcance da sua exigência, e as pessoas podem, consequentemente, não perder tempo procurando soluções que não são capazes de responder adequadamente. Por isso, Giussani insiste que “a solução dos problemas que a vida apresenta todos os dias ‘não nasce diretamente do enfrentamento dos problemas, mas aprofundando a natureza do sujeito que os enfrenta’” (in A. Savorana, Vita di don Giussani. Milão: Bur, 2014, p. 489), isto é, aprofundando a natureza do eu, a natureza do próprio desejo. Não está dizendo uma banalidade, porque é somente se o eu se dá conta de si mesmo até este nível, que poderá libertar-se de todas as supostas soluções e as bobagens que tem na cabeça, como também acontece conosco.
Mas, neste ponto, nós estamos diante do mesmo problema que Romano Guardini já tinha identificado com grande clareza: nós podemos até dizer que “é Cristo que desperta a nossa humanidade”, mas a questão é: “Quem protege Cristo de mim mesmo? Quem O mantém livre da astúcia do meu eu [de uma redução operada por mim] que quer fugir a um verdadeiro dom de si mesmo? E a resposta é: a Igreja” (R. Guardini apud H.B. Gerl, Romano Guardini: La vita e l’opera. Brescia: Morcelliana, 1988, p. 45), que nos alcança nesta época, particularmente, através do carisma. Então, se não nos damos conta de quem salva Cristo e o carisma de nós mesmos, perderemos Cristo e o carisma pelo caminho.

A responsabilidade do carisma que cada um tem
Por isso, sempre faz bem retomar a famosa intervenção de Dom Giussani O maior sacrifício é dar a vida pela obra de um Outro (in L. Giussani, L’avvenimento cristiano. Milão: Bur, 2003, pp. 65-70). Nela, ele nos deu todos os instrumentos para o caminho. Neste texto, nos diz que o carisma lhe foi dado por graça, mas deve passar para todos nós, para que sejamos revestidos por ele. “Cada um tem a responsabilidade pelo carisma; cada um é causa de declínio ou de incremento da eficácia do carisma [...]. Portanto, este é um momento em que, para cada um, a tomada de consciência da responsabilidade é gravíssima como urgência, como lealdade e como fidelidade. É o momento da responsabilidade que cada um assume para com o carisma”, porque “obscurecer ou diminuir [isto] [...] significa obscurecer ou diminuir uma intensidade de incidência que a história do nosso carisma tem sobre a Igreja de Deus e sobre a sociedade de hoje”. Mas na tentativa de fazer com que ele se torne nosso, e não podemos não desejar isso, na “versão pessoal que cada um dá do carisma para o qual foi chamado [...] quanto mais a pessoa se torna [realmente] responsável, tanto mais [este] passa inevitavelmente pelo seu temperamento, através daquela vocação irredutível a qualquer outra que é a pessoa”. Pela sua concretude histórica, cada um pode fazer o que quiser do carisma: “reduzi-lo, torná-lo parcial, acentuar aspectos dele em prejuízo de outros (tornando-o monstruoso), dobrá-lo a um próprio gosto de vida ou a um próprio interesse, abandoná-lo por negligência, por obstinação, por superficialidade, ou ainda abandoná-lo a um acento em que a própria pessoa se encontre mais à vontade, encontre mais gosto e se canse menos” (Idem, p. 68).
Eis, então, “a grande questão: cada um [de nós], em cada ato seu, em cada dia seu, em cada imaginar seu, em cada propósito seu, em cada agir seu, deve se preocupar em comparar os critérios de ação com a imagem do carisma, tal como este emergiu nas origens da história comum. [...] A comparação com o carisma é [...] a preocupação maior que metodológica, prática, moral e pedagogicamente é preciso ter. De outro modo, o carisma torna-se pretexto e ocasião para aquilo que queremos; acoberta e endossa algo que nós queremos fazer” (Idem, pp. 68-69).
Justamente para limitar esta tentação, que ele reconhecia ser algo de cada um de nós, Dom Giussani nos convidou a “tornar comportamento normal a comparação com o carisma, vivida como correção e como ideal continuamente ressuscitado. Devemos tornar tal comparação hábito, habitus, virtude. Esta é a nossa virtude: a comparação com o carisma na sua originalidade”. Ele dizia isso em 1992, e acrescentava: “Por ora, a comparação [é] em última instância com a pessoa determinada com a qual tudo começou [ou seja, ele mesmo]. Eu posso ser dissolvido, mas os textos deixados e o seguimento ininterrupto – se Deus quiser – das pessoas indicadas como ponto de referência, como interpretação verdadeira daquilo que em mim aconteceu, tornam-se o instrumento para a correção e para a ressuscitação; tornam-se o instrumento para a moralidade. A linha das referências indicadas é a coisa mais viva do presente, porque um texto pode ser ele próprio interpretado; é difícil interpretá-lo mal, mas pode ser interpretado assim. Dar a vida pela obra de um Outro implica sempre um nexo entre a palavra “Outro” e algo histórico, concreto, palpável, sensível, descritível, fotografável, com nome e sobrenome. Sem isto, se impõe o nosso orgulho, este, sim, efêmero, mas no pior sentido do termo. Falar de carisma sem historicidade não significa dizer um carisma católico” (Idem, pp. 69-70).
Esta comparação é crucial para nós, caso contrário ficaremos entregues a nós mesmos. Acontece o mesmo com Cristo: quem salva Cristo de nós mesmos? Quem salva o carisma de nós mesmos? Porque, afinal de contas, com as mesmas palavras podemos fazer diferentes misturas, com a mesma Bíblia podem fazer-se muitas denominações cristãs diferentes, como vemos.
Aqui se joga a nossa capacidade de estar diante dos novos desafios com toda a força do carisma que nos foi dado. E qual é o ponto decisivo da nossa contribuição original? Em que Dom Giussani identifica a missão de Cristo? Cristo não veio para resolver os problemas do homem, mas para educar o senso religioso, ou seja, para despertar o eu colocando-o na posição certa para enfrentar esses problemas. “Jesus Cristo, não veio ao mundo para se substituir ao trabalho humano, à liberdade humana ou para eliminar a provação humana, condição existencial da liberdade. Ele veio ao mundo para chamar a atenção do homem para o fundo de todas as questões, para sua estrutura fundamental e para sua situação real. [...] Não é tarefa de Jesus resolver os vários problemas, mas chamar a atenção para a postura com a qual o homem, mais corretamente, pode procurar resolvê-los. Cabe a cada homem empenhar-se nesse trabalho, que existe exatamente em função daquela procura” (L. Giussani, Na origem da pretensão cristã. São Paulo: Ed. Companhia Ilimitada, 2012, pp. 145-146).
Se o carisma não é capaz de educar pessoas capazes de enfrentar os desafios atuais, não há esperança para nós. Hoje, por exemplo, os jovens têm que andar pelo mundo, porque na Itália, muitas vezes, não encontram um trabalho adequado; se o carisma não consegue fazer crescer pessoas capazes de encarar este contexto cultural mudado, não podemos certamente pensar em “colocar portas nos campos” - como dizemos na Espanha – para evitar o problema, não podemos colocar senhas de acesso por todos os lados, em todas as portas. A única esperança é que se gere um sujeito capaz de estar nesta situação exatamente pela experiência de plenitude que o carisma lhe permite viver. Se o Movimento não é uma experiência presente, confirmada por essa plenitude, no qual eu encontro a confirmação da verdade das coisas, nós sucumbiremos. Padre Braschi nos recordava isso falando dos primeiros cristãos: como podiam viver daquele modo diante de certos desafios? Somente graças à consciência da graça recebida.

“Ninguém gera, se não é gerado”
Por isso, perante o colapso das evidências, todo o problema é se é gerado um sujeito capaz de ter uma consciência tal da sua própria natureza, da própria exigência humana, que não se deixe oprimir por imagens reduzidas e soluções parciais, que não dão nenhuma satisfação. A experiência cristã realmente vivida torna o eu livre de todas as tentativas parciais, ela o faz transbordar de alegria e de plenitude, colocando diante de todos uma humanidade verdadeiramente desejável. De fato, o que impressiona não são as diferentes opiniões sobre as coisas, mas uma humanidade verdadeira, plena, com a qual nos deparamos. A esta humanidade diferente o homem, qualquer que seja a latitude em que vive, não se pode subtrair, como contava um rapaz que viveu alguns meses no Texas. As pessoas que tinham algum contato com ele diziam: “Nunca tínhamos visto uma humanidade assim”. Repete-se hoje a mesma reação que os primeiros tinham diante de Jesus. Não são as opiniões religiosas que movem as pessoas, mas uma humanidade verdadeira, plena. Será necessário, em seguida, dar todas as razões de tal diversidade, mas o primeiro impacto é o encontro com uma humanidade verdadeira, não reduzida.
O que temos que viver para educar um sujeito capaz de enfrentar o real? Retornamos ao ponto inicial: “Ninguém gera, se não é gerado” (L. Giussani, “A alegria, a letícia e a audácia. Ninguém gera, se não é gerado”. Litterae Communionis, n. 58 julho-agosto/1997, p. XXVI), isto é, se não se deixa gerar agora pelo carisma, por aquela história que constantemente nos oferece todos os instrumentos para fazer o caminho. A graça de Dom Giussani foi não ter tido outra preocupação além deste gerar, como se tivesse previsto a situação em que nós, hoje, vivemos cada vez mais. Todos os outros se preocupavam com outras coisas, também justas, mas davam como óbvio o sujeito que teria que enfrentar os problemas. Quem deu toda a sua vida por esta geração do eu, da qual nós somos testemunhas, foi Dom Giussani.
Nós seremos fiéis ao carisma, o carisma poderá subsistir na história, se crescer esta capacidade do Movimento de gerar adultos como ele, de tal maneira transbordantes da presença de Cristo, de tal maneira alegres pela sua experiência de Cristo, que possam testemunhar diante de todos quem é Cristo. Não há outro caminho, sempre nos diz Papa Francisco, senão o testemunho de uma vida transbordante da Sua presença, de forma que quem quer que nos encontre possa fazer parte desta plenitude que nos foi dada por graça, mas que devemos ter continuamente a simplicidade de acolher, de receber, e sem a qual perderíamos a relação com a realidade. Por isso, ajudemo-nos, amigos, sustentemo-nos mutuamente nesta educação.
A luz que vem da nossa história – como dissemos nos Exercícios da Fraternidade – é uma contribuição para retornar às origens: só assim podemos viver neste contexto histórico com uma diversidade de olhar e segundo uma modalidade original de presença no real. Como nos disse o Papa, sem um ponto de apoio em algo de essencial – e o essencial é Cristo –, nós não poderemos evitar nos assustarmos diante dos novos desafios. O essencial, o retorno ao essencial, a que Dom Giussani sempre nos chamou e a que agora o Papa Francisco nos convida, é crucial para nós; do contrário, será difícil sermos suficientemente livres para buscar novas formas e modos para comunicar a verdade encontrada, como escreveu o Papa na mensagem ao Meeting de Rímini.

Gestos de humanidade nova que provocam um interesse
Sempre retornando ao essencial, nós seremos capazes de apresentar diante de todos uma presença, uma modalidade nova de estar no real, que, ao encontrá-la, as pessoas poderão superar o desconforto profundo que lhes impede de assumir uma responsabilidade pessoal dentro das circunstâncias. Para enfrentar com responsabilidade, aos desafios atuais, deve acontecer algo que desperte o eu todo, de forma que possa recomeçar a olhar para as coisas com clareza suficiente e aderir ao que de novo reconhece como evidente. Sem isso, nós não poderemos responder, não poderemos dar uma contribuição real à situação atual.
A nossa contribuição original, aquela pela qual Dom Giussani começou tudo, consiste em reconstruir um sujeito que seja capaz de reconhecer a verdade, a evidência das coisas, e de aderir a elas. É isto que torna apaixonante o momento histórico que estamos vivendo: o fato de que as pessoas, vendo em certos gestos a evidência de algo verdadeiro, mesmo no meio da indiferença geral (que é um sintoma do enfraquecimento do sujeito), comecem a se interessar, permaneçam atraídas. Lembram-se de como Dom Giussani descrevia uma presença original? “Não se constrói uma realidade nova com discursos ou projetos organizativos, mas vivendo gestos de humanidade nova no presente” (Dall’utopia alla presenza. 1975-1978. Milão: Bur, 2006, p. 66), quer dizer, gestos nos quais uma pessoa pode ver, tocar com a mão, aquilo que a torna mais ela mesma. E quando uma pessoa descobre isto, começa a mudar. Gestos de humanidade nova, isto é, de amizade.
Mas, um olhar à altura do humano, uma companhia que leve ao destino, só existe por força da presença de Cristo, porque sem a presença de Cristo nós não vemos nem podemos fazer nada. “Cristo coincide com a experiência que eu faço de mim”, disse recentemente um amigo. Isto é a superação do dualismo: Cristo coincide com a experiência que eu faço de mim, na minha relação com o real. E se vê que Cristo está presente não apenas porque eu digo “Cristo” – muitos o podem dizer –, mas porque eu faço uma experiência diferente de mim, como capacidade de captar a realidade e de ser livre, não definido pelo contexto que me rodeia.
Nós estamos juntos para isso. Mas temos que tomar ainda mais consciência da natureza do desafio, se quisermos dar uma contribuição real à situação presente. Caso contrário, tentaremos abafar as consequências: o que, por um certo tempo, poderá até ser útil, mas não será aquilo que mudará verdadeiramente as coisas. Isso significa que precisaremos de tempo: começamos a plantar as oliveiras sabendo que talvez não vejamos os frutos, a não ser em certos momentos, em certas pessoas. Justamente por isso é ainda mais decisivo que saibamos identificar bem o propósito para o qual estamos no mundo. Dom Giussani tinha compreendido isto muito bem, muito antes de outros: Cristo veio para despertar o homem; e a Sua presença é documentada pelo fato de que quem O reconhece se relaciona de forma diferente com o real, vive intensamente cada circunstância que lhe é dada. Apenas se fizermos experiência disso, poderemos comunicar isso aos outros, dando as razões da nossa fé, movendo assim algo na razão de quem encontrarmos. Do contrário, a nossa contribuição será igual a zero.