O Acontecimento presente

Página Um
Giancarlo Cesana e Julián Carrón

Notas dos depoimentos de Giancarlo Cesana e Julián Carrón no Dia de Início de Ano dos adultos de Comunhão e Libertação da região da Lombardia (Itália). Milão, 1º de outubro de 2005

GIANCARLO CESANA
Na reflexão dos responsáveis da Diocese e da Região, preparatória para este Dia de Início de Ano, surgiram muitos temas, mas eles podem ser resumidos a duas considerações, que são também perguntas, exigências fundamentais.
1. A primeira diz respeito à constatação de que freqüentemente – não apenas entre os outros, mas também entre nós – a presença dos cristãos no ambiente (seja este o trabalho, a paróquia ou o bairro) é dispersa. Ou seja, é vivida como um empenho individual – talvez até intenso – de pensamento e de testemunho. Mas isso não é suficiente. Não é suficiente nem para quem vive essa experiência, nem para quem a vê. Não é convincente, pois falta aquele aspecto fundamental que distingue a presença cristã: a unidade sensível. As pessoas compreendem a presença cristã pelo fato de que nós somos unidos, não pelo fato de sermos mais inteligentes, melhores, mais analíticos, mais empenhados, mais morais, mais decididos, mais tudo. Portanto, falta a unidade sensível: estarmos juntos não simplesmente de um modo ocasional ou cortês, “educado”, mas como ajuda sistemática de amizade guiada ao destino, como Dom Giussani definia o nosso movimento: “Uma amizade guiada ao destino”.
Fizemos os Exercícios de Rímini (exercícios espirituais anuais da Fraternidade de Comunhão e Libertação; nde.) com o título “A esperança não decepciona”. Como disse Albertino Bonfanti (cito os nomes de quem deu seu depoimento, ainda que talvez a maioria de vocês não os conheça, simplesmente para dizer que o Movimento não são idéias, o Movimento são pessoas), “o lugar físico da esperança é a unidade sensível como confirmação do amor que Deus nos dá por meio do testemunho e do sustento recíproco”. É a certeza de uma proximidade.
Unidade, portanto, não ideológica (nós não estamos juntos pelas idéias); nossa unidade é afetiva, ou seja, capaz de reconhecer e apegar-se para sempre a quem nos é dado como companheiro, quem quer que ele seja, pois nossos companheiros, a companhia que nos é dada, a amizade que nos é dada é a manifestação imprevista, positiva e vital do mistério de Cristo. Não há outra maneira de conhecer Cristo.
2. Vem daqui a segunda consideração, que, a meu ver, é particularmente importante depois da morte de Dom Giussani. Diz respeito à exigência de que aquilo que guia a nossa vida, aquilo que a nossa vida sente como referência, como fator constitutivo, não seja a aplicação e o desenvolvimento mecânico de uma teoria ou de uma organização, por mais que essa teoria e essa organização possam ser inteligentes, mas o envolvimento com um acontecimento – precisamente com aquele imprevisto de que eu falava antes –, que não pode ser um acontecimento de povo se não for em primeiro lugar pessoal e familiar, ou seja, cotidiano, ligado à vida de todos os dias. Um acontecimento que é excepcional. A presença de Cristo é um fato excepcional justamente porque se manifesta na banalidade cotidiana, na vida de todos os dias, isto é, naquilo que percebemos como a coisa mais previsível e costumeira: dentro disto de manifesta este imprevisto. Um acontecimento que é excepcional justamente porque se manifesta na banalidade cotidiana, que acaba por ser surpreendentemente transfigurada, ou seja, mudada em profundidade. A realidade e as relações de todos os dias se tornam fascinantes não quando repentinamente são transformadas de acordo com os nossos sonhos (a duração dessa felicidade é breve), mas quando são percebidas na profundidade de seu significado, na profundidade do fato de que são para sempre o sinal da salvação da nossa vida. Esse é o acontecimento; essa coisa que está no fundo, que está dentro da realidade é o acontecimento; esse fundo misterioso que muda a realidade é o acontecimento: “A realidade, porém, é Cristo”, dizia minha esposa em seu Diário, repetindo São Paulo.
“O Meeting, para quem dele participou”, disse Riccardo di Peschiera, “foi um exercício do olhar e da escuta”. Olhar e escutar é aquilo que somos chamados a fazer em primeiro lugar, a fazer no sentido de fazer, mesmo, ou seja, no sentido de trabalho: o trabalho em nossa vida é aprender a olhar e a escutar, se quisermos que o encontro, o encontro com o outro e com Cristo, que é aquilo que está no fundo (Dom Giussani, num encontro com os universitários, dizia: “Quando você olha para a sua namorada, para a namorada que você ama, de que ela é feita, no fundo? No fundo, o que é que a constitui, o que é que a torna única? Cristo!”), se quisermos que o encontro seja – como dizia Romeo Astori – imediato e não mediado pelos cálculos e pelas políticas, sejam elas leigas ou clericais.
Como escrevia o cardeal Ratzinger na introdução ao primeiro volume da história de Comunhão e Libertação: “A identidade não é produto da discussão [ou seja, aquilo que eu sou, aquilo que você é não é produto da discussão entre nós], mas é seu pressuposto e, assim, a verdade não é produto da discussão [não é produto dos nossos esforços], mas a precede [precede a discussão, precede os nossos esforços], e não deve ser criada, mas, sim, encontrada [reconhecida, justamente, por meio dos nossos esforços]”. O nosso esforço é o de encontrar, não o de criar; o nosso trabalho é o de encontrar. Essa é a única possibilidade de diálogo também para nós. O dia de hoje é um convite a esse trabalho, à mudança contínua à qual somos chamados para – como se repetiu na Assembléia de Responsáveis de CL em agosto, da qual vocês têm o relato em Passos – descobrir o Algo que está dentro de algo: “A realidade, porém, é Cristo”.
O dia de hoje é um convite a esse trabalho: de paixão, de dedicação e de oração, para que o nosso juízo, ou seja, a maneira como nós olhamos para nós mesmos e para toda a realidade, não seja uma definição fria, mas um gesto de caridade que cresce com o tempo, pois tudo cresce com o tempo.

JULIÁN CARRÓN
A origem da unidade sensível (a primeira questão) é um acontecimento (a segunda questão que apareceu); por isso, começarei dessa segunda questão.
Sendo que – como dizia agora Cesana – o acontecimento é um imprevisto, que espécie de atenção nos é pedida para nos darmos conta desse imprevisto e nos deixar tocar! Neste momento da nossa história, nos convém de modo particular olhar, estar atentos ao imprevisto.
Cada um de nós, depois da morte de Dom Giussani, fez a si mesmo esta pergunta: “E agora, o que acontecerá ‘sem’ – entre aspas – Dom Giussani?”. Pois todos estamos convencidos de que o fato de estarmos juntos não é o resultado de uma organização mais hábil, e não pode ser o resultado do desenvolvimento de um discurso; estamos convencidos de que a única possibilidade de que esta história continue a arrastar o nosso eu é tão-somente esta: que continue a acontecer o que nos aconteceu quando encontramos Dom Giussani e a história que nasceu dele, ou seja, um acontecimento presente, presente aqui e agora. Do contrário, teríamos de nos contentar com a nossa saudade dele até que o tempo acabasse por distanciá-lo definitivamente e o esquecimento se apossasse de nós, pois uma pessoa não pode viver do passado, dos frutos do passado; é preciso algo presente, e nós sabemos muito bem que somos tão frágeis, que precisamos de uma presença constante, permanente em nosso meio, que nos corrija continuamente, quase a cada instante. É por isso que o discurso, apenas, não é suficiente, que o passado, apenas, não é suficiente, mas é preciso algo hoje, agora, que me recupere.
Portanto, o que acontece entre nós? O que aconteceu desde que Dom Giussani partiu? Meu convite é a olhar – como ouvíamos antes. Olhar para quê? Olhar para o que acontece, pois nenhuma reflexão pode substituir o acontecimento. E o que é que tem acontecido? Relacionemos sinteticamente os fatos dos quais cada um de nós participou – alguns de um, outros de outro –: pensem nos Exercícios da Fraternidade, aos quais não é preciso acrescentar nada, pois todos nós fomos testemunhas deles; depois, em agosto, os Exercícios do Grupo Adulto; pensem no Meeting de Rímini, no qual muitos de vocês foram testemunhas do espetáculo de beleza e de unidade que vivemos juntos; pensem na Assembléia Internacional de Responsáveis, depois da qual um de vocês me mandou esta carta: “Caríssimo Julián, tomo a liberdade de lhe escrever tendo ainda diante dos meus olhos os dias extraordinários que passamos em La Thuile durante a Assembléia Internacional. Cheio de gratidão e surpresa, vi como despertava em mim um incontido desejo de realização. Foram tão cheios de intensidade os dias da Assembléia, que não é possível fazer outra coisa a não ser desejar que essa densidade de vida possa continuar no constante enfrentamento do cotidiano. Quando a pessoa experimenta um mais, como é que pode se separar dele, permanecer indiferente, não pedir que reaconteça a cada instante e que, sobretudo, possa ser reconhecido, que a pessoa possa permanecer apegada a esse pedido sem se afastar até que aquele mais se manifeste?”. Foi esse acontecimento que, depois, continuou nos Exercícios dos padres ou no encontro de responsáveis dos universitários, ou no encontro de responsáveis dos estudantes do ensino médio, para não falar dos muitos testemunhos das férias das diversas comunidades e grupos de Fraternidade. Como me dizia um padre que chegou do exterior, onde estava em missão, depois de ter rodado por várias férias e Fraternidades: “Um sopro de novidade corre entre nós”.
Cada um pôde ver, não o que eu respondo ou o que Giancarlo responde à pergunta, mas o que Aquele que está entre nós está respondendo. “Pelo Senhor é que foi feito tudo isso: que maravilhas Ele fez a nossos olhos!” (Sl 117).
É por isso que nos interessa olhar. Quem poderia pensar nisso? Quem poderia imaginar que depois da morte de Dom Giussani viéssemos a ter diante de nossos olhos tudo o que temos agora? Tudo o que vivemos juntos tem um só protagonista: o verdadeiro protagonista disso é Cristo presente entre nós.
Experimentem, caros amigos, olhar. Peçamos a Nossa Senhora que nos faça sair por um instante da distração em que normalmente recaímos, para olhar para o que está acontecendo. Experimentem olhar para isso e digam-me, depois, se conseguem não se comover diante do que acontece.
Isso nos faz perceber mais qual é a modalidade da presença de Dom Giussani, pois é impossível olhar para todas essas coisas sem pensar nele, em como ele continua a “agir” entre nós, agora, de um modo mais eficaz do que sempre agiu: do Céu, continua a tornar presente, a testemunhar Cristo. Está em ação lá em cima não menos do que o vimos em ação entre nós.
Somos visionários? Esta manhã eu pensava no que terá acontecido aos discípulos depois do Pentecostes: não o viam mais, mas que imponência da Sua presença graças à força do Espírito, que tornava Cristo ainda mais deles, mais de cada um deles, mais intensamente deles! Como é para nós agora: mais nosso, cada vez mais nosso. De onde vem essa energia, de onde vem essa intensidade de presença de Cristo, senão da intercessão que Dom Gius continua a fazer por nós?
Essa Presença entre nós não acontece só nesses momentos extraordinários, excepcionais, onde a Sua presença se impõe de modo tão evidente, mas há muitos testemunhos de como essa Presença acompanha e transfigura a vida cotidiana de muitos de nós, até nos momentos mais complicados da vida.
Dois amigos perderam seu filho num acidente de moto e, diante dessa impotência total, que um evento como esse faz experimentar, o pai, no meio de sua imensa dor, não pode deixar de reconhecer que algo maior se tornou evidente, ainda mais evidente, nessa circunstância: esse algo se chama Cristo. Para reconhecê-Lo – diz –, é preciso “olhar para a realidade como ela é, sem interpor os ‘se’ e os ‘mas’. E, por isso, no santinho de André [seu filho], quisemos pôr uma frase de Dom Giussani, que termina assim: ‘Agora você está perto de nós de uma maneira diferente de antes, mas infinitamente mais do que antes. E nos olha com a mesma piedade e com o mesmo olhar dAquele no qual você está’”.
É o mesmo olhar que uma de vocês descobre num amigo presente que olha para ela dessa forma, e que a faz perguntar: “Quem é você, que me quer bem mesmo e apesar do meu mal? Quem é você, que naquele dia me olhou e amou como eu nunca pensaria ser possível antes? Que inesperadamente me chamou e preferiu assim? De quem é você? Quem o constitui? Não posso fazer outra coisa a não ser repetir ‘tu’, dizer ‘tu’... mas com mais profundidade, com o desejo de que seja mais consciente. Pois eu sou responsável por este grande dom que me é dado: ter percebido a ternura do Mistério sobre mim, os olhos, o olhar de alguém que ama a minha vida. E quando uma pessoa foi agraciada dessa forma, não pode mais voltar atrás, pois teria de suprimir seu coração e a saudade que sente”. Um olhar presente, um olhar – dizia Dom Giussani – que dá forma ao olhar, e que podemos reconhecer agora entre nós.
A esposa de Antônio, a respeito do qual eu lia antes, que perdeu o filho, escreve: “Meu coração nunca esteve – por graça de Deus – desesperado, perdido [por essa tragédia], mas, mesmo na imensa dor, manteve-se numa grande e profunda paz. Eu me surpreendi, assim [essa é a palavra – “surpresa” –, pois quem poderia dizer uma coisa dessas?], com um dado que me impressionava e que impressionaria depois também, como eu soube mais tarde, a quem se aproximou de nós. Eu estava certa de que meu filho havia alcançado a sua plenitude e olhava nos olhos esse Mistério que tanto nos atrai e nos fascina a todos [o fato de uma mãe poder estar tão segura de que seu filho está agora nessa plenitude e de que olha nos olhos desse Mistério cujo fascínio nós só conseguimos vislumbrar é realmente uma coisa do outro mundo]. Meu filho literalmente nos regenerou; nós vemos isso na maneira diferente como nos tratamos, e na profunda mudança que provocou em mim e em meu marido no modo de nos olharmos. Dar-se conta do positivo que, apesar da morte, existia, acontecia, tornou-nos mais seguros e livres para comunicar a todos as razões da nossa fé. A única tarefa que eu tinha, para poder agradecer ao Senhor por não ter feito prevalecer a morte em nossa vida, era testemunhá-lo. Ouvi dizer muitas vezes que é só por uma grande alegria que se pode ser testemunhas dEle, e agora me dava conta de que era isso que me estava acontecendo; uma coisa absurda poder estar em paz, serena: sinto até vergonha de pronunciar essa palavra diante da morte de meu filho. Nunca, como neste período, nós percebemos, nos fatos que aconteceram, que aquilo que encontramos é verdadeiro para nós, como resposta humana a qualquer situação, e é verdadeiro para todos os nossos amigos, cristãos ou não. Esse já é o cêntuplo nesta vida, como respondi a meu marido. A nossa amizade foi um imenso conforto; não apenas conforto, mas uma companhia. De modo tangível, nós nos demos conta de não estarmos sozinhos no caminho para descobrir e viver o significado do nosso Destino e da nossa vida. Por isso, só posso agradecer ao Senhor pelo imenso dom que me concedeu ao me fazer encontrar a experiência do Movimento há trinta anos. Neste anos, várias coisas aconteceram, mas todas serviram para me fazer chegar a este momento com esta posição humana, uma posição humana que eu não teria se não tivesse encontrado a experiência do Movimento. Não é que os outros questionamentos tenham desaparecido, pelo contrário, todas as perguntas se aguçaram, mas agora a certeza de que o Senhor venceu, fazendo novas todas as coisas, é maior. E, depois, a pergunta assumiu realmente a forma da oração. O que nos aconteceu nestes dois meses nos tornou mais familiar o Mistério”.
É essa certeza que vence qualquer tentação de niilismo, quando o nada parece bater à nossa porta de um modo tão forte como a morte. Que imponência da Sua presença é necessária para que o nada e o desespero não vençam definitivamente!
Talvez seja simples. A uma de nós uma amiga universitária contava que lhe havia morrido uma tia e que o avô dessa garota (ou seja, o pai de sua tia) lhe disse: “Veja, Alessandra, Jesus não é bom, é ótimo!”; disse isso diante do caixão de sua filha, e depois acrescentou: “Você estudou muito, mas a coisa mais importante fui eu que aprendi, quando fui à fazenda e vi meu asno: a lei da vida é obedecer. E, seja lá como for, a vida é simples! E você sabe por quê? Porque é doada”.
Basta acolher esse dom, estar disponível a acolher a modalidade com a qual nos é doado; e foi por isso que Ele começou com cada um de nós esta luta pelo nosso destino, pelo nosso bem, como documenta uma outra pessoa que se encontra diante dessa luta: “Eu sentia um certo mal-estar e dizia sempre a todos, para não dar outras explicações: ‘Estou cansada’. Depois, lentamente, comecei a sentir tudo como um peso. Quando ia encontrar uma amiga, não conseguia olhá-la na cara, porque ela sempre me perguntava: ‘Como você está?’. E eu me irritava: ‘Estou bem, não fiz nada’. E na realidade no início era assim, ou seja, eu não me havia dado conta de estar insatisfeita e carregando um peso. Até porque não havia nenhuma razão em particular para estar assim. Esse fato de escorregar sem perceber para o formalismo e para a insatisfação sempre me aconteceu. E por muito tempo não fiz nada, a não ser esperar que passasse, sem julgar. Mesmo porque ninguém nunca me havia marcado de perto como a minha amiga, perguntando sempre: ‘Como vai?’. Só dessa vez finalmente entendi o que significa que Jesus – Ele mesmo, o Jesus concreto, aquele que preenche o coração – me falta. Porque, se Ele não existisse ou se meu coração não fosse feito para Ele, então eu não teria estado tão insatisfeita e impaciente. Descobri o que significa que Ele é uma pessoa tão concreta que podemos sentir Sua falta! Da mesma forma como eu sinto a falta da minha amiga que partiu em missão. E comecei a descobrir por que Santo Agostinho diz que meu coração está inquieto enquanto não repousa nEle, pois enquanto não sou ajudada a dizer: ‘És Tu que urges, que te fazes sentir nesta insatisfação’, eu não sou aplacada. A certa altura, eu não podia mais dizer apenas: ‘Tenho coisas demais para fazer’. Então, pensei que esse mal-estar que eu ‘amaldiçoei’, porque me fazia ficar mal, no fim das contas é uma maneira pela qual Jesus não me abandonou, não me abandona por intermédio dos meus amigos e desse mal-estar. Pois bem, eu nunca havia sentido isso desse jeito, na minha pele – a ponto de que, quando alguém lhe pergunta: ‘Como vai?’, desperta de novo e constantemente o drama –, e sentia raiva e revolta por dentro: ‘Chega, quero que me deixem em paz, quero ser livre para estar mal!’. Mas ela, a minha amiga, não parava de me incomodar, e era por meio dela, justamente, que Jesus clamava por mim e eu dizia: ‘Por que não me deixa em paz, afinal?’. Pensei até por um instante: ‘Chega, vou embora!’. Mas dava para entender muito bem que era uma questão entre mim e Ele, que não acabaria se as circunstâncias mudassem. Porque já sou marcada pelo encontro com Ele. Posso até fugir, mas para onde? Ele – ou a falta dEle – está sempre comigo. E uma parte de mim se perguntava sem parar: ‘E você, o que você quer?’. E uma parte de mim dizia: ‘Não, não me basta estar tranqüila. Eu quero ser feliz’. E me lembrei de uma frase que um amigo me disse, que a vocação é dizer: ‘Jesus, Tu me olhaste e eu Te pertenço’. É verdade, depois que fui olhada por Ele, e vi esse olhar, eu não posso ser mais eu mesma se me afastar dEle. A gente pode dizer isso com gratidão ou com ressentimento, como eu fiz na noite passada. E me sentia dilacerada ao falar assim, pois era uma evidência, mas eu queria dizer ‘não!’, como uma criança que só faz seus caprichos. Não sei se sou exagerada, mas quando lutava entre ceder a esse pertencer ou recusá-lo, tive mesmo a impressão de que aquele era um momento decisivo, vital, que talvez eu até pudesse continuar no Movimento, fazendo tudo como antes, mas, se não chegasse a dizer: ‘Tu. Estou aqui, retoma-me’, eu me perderia do mesmo jeito. Não sei se consigo me explicar. Impressionou-me também pensar que poderia insistir em dizer não, que ninguém, no fim das contas, podia me obrigar a ceder. E então eu disse apenas: ‘Se Te pertenço, tomes conta de mim. Eu, por mim mesma, não consigo ceder, não consigo te dizer: estou aqui’. Mais do que isso eu não conseguia fazer. Então pensei que era realmente a oportunidade certa para ver se os sacramentos são de fato uma força do alto, que não é minha. E na manhã seguinte fui me confessar e tomei a Comunhão. À tarde, com um esforço enorme, eu disse à minha amiga: ‘Você tinha razão, eu me havia perdido. Mas desejo que o meu eu viva. Não é verdade que nada me importa’. Anteontem à noite, eu decidi novamente pela minha felicidade, que o que me interessa mais do que tudo é que o meu eu viva. Foi dramático e doloroso como nunca, e fiquei impressionada e grata pelo fato de que Deus me tenha feito sentir tanto assim a ‘insuportabilidade’ da falta dEle, e de que me tenha posto perto da minha amiga; senão, quem sabe se e quando eu teria me dado conta disso. Impressionou-me muitíssimo também ver o quanto uma pessoa pode se obstinar em dizer não, mesmo quando tem todas as razões para dizer: ‘Sou um pobre coitado, leva-me contigo’. Porém, o fato de Jesus ter-me conquistado mais uma vez... é uma coisa enorme! Entendi também o quanto é realmente vital fazer o trabalho de que você fala, e como é indispensável uma companhia que me sustente nele. É isto que Comunhão e Libertação significa, é isto que é a amizade da minha amiga: Jesus que me corrige e que, com paciência e sacrifício, provoca a minha liberdade e espera e roga que a minha liberdade diga sim”.
Esse drama nos é familiar porque é o drama da nossa vida, entre ceder à Presença que encontramos e resistir. O trabalho que temos de fazer não é outro senão esse. No fundo, é simples: não antepor nada a essa Presença. Basta simplesmente ceder à Sua atração poderosa, basta ter esse mínimo desejo de felicidade, um instante de ternura, de piedade consigo mesmo.
É um trabalho que devemos fazer, amigos, pois muitas vezes – como vemos – a neblina se insinua.
Não devemos fazer esse trabalho pela necessidade de chegar a algo que não vemos, Jesus, mas devemos fazê-lo com tudo, para não reduzir a realidade a aparência.
Anteontem, eu dava este exemplo a um grupo de advogados: quantas vezes lhes aconteceu, marido e mulher, estarem na cozinha, um ao lado do outro, e sentir o outro a mil quilômetros de distância! Não que a pessoa fisicamente não esteja próxima, mas ela sente a outra longe, muito longe, pois o peso, a neblina, a estupidez se interpõem. Imagine que essa pessoa que fascinou você, e que agora você sente extremamente distante, sofresse um infarto: toda a neblina iria embora. E eu dizia a eles: “Caros amigos, ou o infarto, ou a educação!”. Ou seja, ou nos ajudamos a ultrapassar essa neblina que se impõe entre nós, que se impõe entre o que vemos e aquilo que está no fundo do real, de modo a nos deixarmos tocar, fascinar por Cristo e pelo outro que está diante de nós, ou prevalece todo o resto.
Por isso, retomaremos este ano, com a nova publicação de Educar é um Risco, o tema da educação como introdução à realidade total, ou seja, ao Mistério, ao Mistério das coisas. Pois – como nos disse padre Giussani –, se houvesse uma educação do povo (também entre nós), todos viveriam melhor. Portanto, o trabalho é essa iniciativa pessoal, de cada um de nós, para atravessar a neblina, uma iniciativa contra a neblina que se impõe, contra essa incapacidade de ver o que temos à nossa frente, uma iniciativa para descobrir aquele “Algo dentro de algo” de que falávamos em La Thuile.
Como dizia uma professora a seus alunos, tocada pelo que havia ouvido de uma menina de Florença: “Fiquei impressionada com a menina de Florença, cuja experiência vocês leram hoje. Movida pelo encontro de responsáveis, ela procurou o ‘Algo dentro de algo’ numa circunstância que era negativa. Comigo aconteceu a mesma coisa, quando estava em casa doente. Quem poderia esperar uma droga de uma gripe bem no reinício das aulas? A circunstância objetivamente negativa me impeliu a me perguntar todas as manhãs, quando acordava, com dor de cabeça, dor nos ossos, dor de ouvido, onde estava o ‘Algo dentro de algo’. Estava ali presente, para me obrigar a desejar sarar para voltar para a escola. Desejo: creio que seja a palavra fundamental. Desejo recomeçar para procurar no cotidiano aquele Algo que o torna fascinante e rico de novidade para mim. Espero que me ajudem nisso”.
O que nos interessa é isto: procurar no cotidiano aquele Algo que o torna fascinante e rico de novidade para mim. Esta é a origem da unidade sensível no ambiente, é isto que nos faz realmente livres: um apego tão grande a Cristo, que somos livres para ser nós mesmos em qualquer lugar, e por isso reconhecemos entre nós o pertencer a essa Presença única que nos arrastou a todos.
Por isso, estar unidos é tão-somente o resultado de seguir – cada um de nós – essa Presença, de ceder à atração dessa Presença. Então, seguir é a origem de uma comunhão vivida, e nos convém, pois, sem uma companhia no real, tal como nos mostraram os testemunhos que eu li, nós não conseguimos. Nós só podemos nos expor juntos no ambiente graças a essa vitória de Cristo entre nós, da qual a unidade visível dá testemunho como nenhuma outra coisa.
Estamos diante de um ano cheio de eventos eclesiais, culturais e políticos. Sermos nós mesmos, com tudo aquilo que encontramos e vimos, com a novidade que carregamos, será a nossa contribuição para o bem de todos.

(Traduzido por Durval Cordas)