O renascimento do eu

Página Um
Julián Carrón

Publicamos o prefácio de Julián Carrón ao novo livro de Luigi Giussani, "L’io rinasce in un incontro. 1986-1987", inédito no Brasil. É o quinto volume da série “L’equipe”, em que são reproduzidas as conferências e os diálogos de Dom Giussani com os responsáveis pelos universitários de Comunhão e Libertação

Quanto mais o tempo passa, mais evidente fica aos nossos olhos e aos olhos de todos o alcance da ajuda que Dom Giussani nos dá para que possamos responder aos desafios que somos obrigados a enfrentar. Ninguém duvida de que o maior desses desafios, hoje, é o da educação. Todos falam de uma “situação de emergência na educação” [...]. Nos diálogos que manteve com estudantes universitários durante os anos de 1986 e 1987, Dom Giussani identificou claramente a natureza dessa situação de emergência: “Gostaria de levá-los a observar uma diferença entre a geração dos jovens de hoje e a dos jovens que encontrei há trinta anos. Essa diferença, ao que me parece, está numa maior fraqueza de consciência dos jovens de hoje; uma fraqueza que não é ética, mas de energia de consciência. [...] É como se os jovens de hoje tivessem sido todos atingidos [...] pelas radiações de Chernobyl: o organismo, estruturalmente, é igual ao que era antes, mas, dinamicamente, já não é o mesmo. [...] Os jovens, de um lado, são abstratos na relação consigo mesmos, como se estivessem afetivamente descarregados – afetivamente, eles descarregam logo, como pilhas que em vez de durar seis horas durassem seis minutos –; de outro lado, por contraposição, refugiam-se na companhia, como se fosse para eles uma proteção”.
Passados tantos anos desde que essas palavras foram ditas, a realidade nada mais fez senão confirmar o diagnóstico. Se naquela época alguém até poderia considerar esse juízo exagerado, hoje temos de reconhecer que a realidade superou amplamente qualquer previsão.
Dom Giussani identifica a causa dessa situação na “influência nefasta e decisiva do poder, da mentalidade comum, ‘dominante’, em sentido literal. [...] Tudo o que nos cerca, a mentalidade dominante, a cultura invasora, o poder, cria um estranhamento em relação a nós mesmos: é como se já não existisse nenhuma evidência real, a não ser a moda, pois a moda é um projeto do poder”. Giussani fala de uma “sujeição fisiológica” realizada pela mentalidade que domina a vida de todos.
Em que consiste esse estranhamento em relação a nós mesmos produzido em nós pelo poder? “O poder faz que todos adormeçam, o máximo possível. Seu grande sistema, seu grande método é o de adormecer, anestesiar, ou, melhor ainda, atrofiar. Atrofiar o quê? Atrofiar o coração do homem, as exigências do homem, os desejos, impor uma imagem de desejo ou de exigência diferente do ímpeto sem fronteiras do coração. E dessa forma crescem pessoas limitadas, fechadas, prisioneiras, já meio cadáveres, ou seja, impotentes”. Se impressiona constatar a clareza no modo de enunciar a influência do poder, não sensibiliza menos a limpidez com que Dom Giussani identifica a causa dessa incidência do poder sobre nós: o que leva o poder a ter essa influência é a conivência de cada um de nós, pois todos estamos dormindo. Uma pessoa realmente desperta não tem medo do poder: “Nós não temos medo do poder, temos medo das pessoas que estão dormindo e que, por isso, permitem que o poder faça delas o que bem entende”. Dom Giussani estabelece os termos do problema numa espécie de lei matemática da existência: “O poder de alguém é proporcional à impotência dos outros”.
Mas, em sua tentativa de reduzir os desejos, de cortar a possibilidade dos desejos, de atrofiar a fonte dos desejos, o próprio poder nos dá ciência de que “o inimigo do poder são os desejos”. Por conseguinte, qualquer um que não quiser sujeitar-se ao poder já pode começar a luta. A partir de quê? “O início da luta contra o poder é expressar o desejo, ter consciência do próprio desejo e expressá-lo. E é por isso que é duro ser humano hoje [...], pois o poder alterou a simplicidade da natureza, a ingenuidade original [...]. Assim, faz-se necessária a pobreza do coração ou a pobreza do espírito; a afirmação indômita dos desejos que nos constituem originalmente (a exigência da verdade, da felicidade, da justiça e do amor) é exatamente o que constitui a pobreza (não há nenhuma paga para isso). E a riqueza do pobre é o pedido, a mendicância, a expressão dos desejos”.
É justamente aqui que surge o problema, que precisamos encarar muito bem. Como podemos ter consciência de nossos desejos para poder exprimi-los, se a influência do poder os reduziu em nós? O homem não pode sair sozinho dessa situação. Logo, a questão torna-se grave e o desafio ainda mais dramático.
“Onde é que pode ser encontrada, achada a pessoa? Onde é que eu posso encontrar a mim mesmo? O que estou para dizer não é uma resposta à situação em que vivemos [...]; o que estou dizendo é uma regra, uma lei universal que existe desde que o homem é homem: a pessoa se acha num encontro vivo”, com outra pessoa ou com um grupo de pessoas, “ou seja, com uma presença com que se depara e que suscita uma atração, [...] que provoca para o fato de que o nosso coração, com aquilo de que é constituído, com as exigências que o constituem, está ali, existe. Essa presença lhe diz: ‘Aquilo de que é feito o seu coração existe; veja, em mim, por exemplo, existe’. A atração e a provocação ao fundo de nós mesmos são dadas apenas por isso”.
Portanto, um encontro é o grande e único recurso para uma retomada do nosso eu. Mas qual é o alcance desse acontecimento na vida da pessoa? “Um encontro é o que suscita a personalidade, a consciência da própria pessoa. O encontro não ‘gera’ a pessoa (a pessoa é gerada por Deus quando nos dá a vida, por intermédio de nosso pai e de nossa mãe); mas é num encontro que eu me dou conta de mim mesmo, que a palavra ‘eu’ ou a palavra ‘pessoa’ é despertada. [...] É num encontro que o eu desperta da sua prisão em seu útero original, desperta de seu túmulo, de seu sepulcro, de sua situação fechada da origem e – por assim dizer – ‘renasce’, toma consciência de si. A consequência de um encontro é a suscitação do sentido da pessoa. É como se a pessoa nascesse: não nasce ali, mas, no encontro, toma consciência de si; portanto, nasce como personalidade”.
Esse encontro em que a pessoa é despertada constitui o início da aventura – vemos aqui em ação toda a genialidade educativa de Dom Giussani –; não é o fim de um percurso, não é a meta do caminho, mas o princípio de uma história destinada a invadir toda a realidade. Giussani nos dá ciência das consequências negativas de tratar o encontro como um ponto de chegada: “O problema começa aqui, neste ponto, quando a pessoa é despertada: toda a aventura começa aqui, não termina aqui. Por que, para muita gente, CL vira uma decepção? Porque, tendo entrado no Movimento, é como se tivessem fechado a questão, é como se tivessem chegado”. Ao contrário, o encontro marca um início: “A aventura começa quando a pessoa é despertada pelo encontro, por um encontro. E a aventura é o desenvolvimento dramático da relação entre a pessoa despertada e a realidade inteira de que ela é cercada e em que vive”.
A razão pelo qual o encontro não é o ponto de chegada, mas o início, é o fato de que só compreendemos o que nos aconteceu na relação com as circunstâncias, ao longo do caminho. De fato, insiste Giussani, “a realidade não deve ser arquivada por já sabermos, por já termos tudo. Nós temos tudo, mas só compreendemos o que é esse tudo no choque, ou melhor, no encontro com as circunstâncias, com as pessoas, com os acontecimentos. Não é preciso arquivar nada, [...] nem censurar, esquecer, renegar nada. O significado de tudo o que temos, da verdade que temos, [...] o significado desse ‘tudo’, nós o entendemos no juízo, enfrentando as coisas, portanto mediante o fato dos encontros e dos acontecimentos, mediante o encontro – identificando essa palavra com a relação com as pessoas – e nos acontecimentos. É preciso formular um juízo sobre essas relações e sobre esses acontecimentos! [...] Se é assim, significa que estamos sempre alertas, sempre a caminho, ou seja, sempre vivos”.
O encontro não nos poupa da relação com a realidade, mas nos leva a vivê-la mais intensamente que nunca. Reconhecido isso, Dom Giussani nos introduz num novo passo do caminho, que me parece decisivo. Se é o encontro com pessoas que desperta o homem, a esperança de sair da situação de “sono” que foi descrita – o efeito Chernobyl – não está ligada a uma organização, mas a presenças, as únicas que podem despertar o eu. Todos falam da educação dos jovens, discutem sobre isso, mas poucos têm consciência de que o problema é que os jovens “precisam indispensavelmente de uma só coisa, uma, aquela que é estabelecida pela natureza: a presença do adulto. Os jovens precisam de uma presença, ou seja, de que o adulto seja presença”.
Se essas presenças são tão decisivas para o despertar do eu, a questão mais urgente, então, é como são geradas. Como vimos, o indivíduo não é capaz de despertar sozinho de seu torpor e, assim, de se tornar uma presença. A única possibilidade é que a pessoa – alcançada pelo encontro – aceite pertencer ao lugar que a despertou. “Essa presença é possível exclusivamente na medida em que a autoconsciência, o sentimento que a pessoa tem de si, é carregada, cada vez mais carregada, desse pertencer; se a pessoa reconheceu e reconhece esse pertencer e ‘carrega-se’ dele, esse pertencer se torna uma carga cada vez maior de seu coração e de sua consciência. A pessoa continua a ser exatamente a mesma, aliás, talvez se sinta muito mais frágil, incoerente e mesquinha do que antes, mas, carregando essa coisa no íntimo, é diferente, é como o homem de Matisse, voa, abre caminho nos espaços e no tempo. O pertencer é a condição para que a pessoa seja presença. A pessoa só é presença se, chamando a atenção para outra coisa, leva qualquer homem, o pobre homem companheiro de caminho, a encontrar o que tem de encontrar”.
Esta é a prova dos nove, a verificação: quem aceita pertencer, cedo ou tarde, começa a experimentar “uma mudança na maneira de olhar, de perceber a realidade, de avaliar a realidade, de julgar a realidade, de imaginar a realidade, de projetar e de manipular – por aquele projeto ideal – a realidade, [que] torna as pessoas construtoras de humanidade do ponto de vista social, mesmo na hipótese de um destino humano próprio para cada uma delas”.
Em que consiste essa nova maneira de olhar? Numa percepção nova de si e de todas as coisas. Leiamos como Dom Giussani descreve esse “deslocamento” do olhar, esse surgimento de um ponto de vista original com o qual a pessoa começa a observar a realidade: “A maior evidência que pode existir para um homem autoconsciente, para um homem, por conseguinte, que tenha maturidade, para um homem maduro, é que ele não se faz por si mesmo. No instante, nada é mais evidente que o fato de que eu não me faço por mim mesmo, de que você não se faz por si mesmo, de que o ser, a vida não lhe são dados por você. Tudo o que sou e tudo o que você é nos é dado: não ‘nos foi’ dado, nos é dado. Por isso, pertencemos a um outro. [...] Nós pertencemos ao mistério desse ‘Tu que me fazes, como fazes todas as coisas’, pois instante após instante nada se faz por si mesmo e tudo flui dessa profundidade inefável”.
Mas “o fato de eu pertencer a Ti não exclui nada do que eu possa possuir humanamente, ou seja, com inteligência e coração, não exclui nada do que eu possa entender e amar. ‘Tu és, Senhor, meu único bem’ indica então, mais que uma alternativa, a maneira profunda e totalizante como nos devemos encarar, como devemos olhar para as coisas, como devemos olhar para nós mesmos, como devemos olhar para a mulher e para o homem, como devemos olhar para o passado, para o presente e para o futuro, como devemos olhar para tudo. [...] Mediante o que nos dirigimos a esse Mistério, vivemos e realizamos a relação com esse Tu? Mediante elucubrações, imaginações? Mediante afetações de sentimento, construções artificiosas do nosso espírito? Não! Mediante uma certa maneira de viver as relações com as coisas, com os homens, com tudo. É uma maneira de viver as relações que estabelece a minha relação com o Mistério!”.
Para nos introduzir nessa nova modalidade de relacionamento com as coisas, Dom Giussani se serve de um trecho da grande liturgia ambrosiana: “‘Concedendo-nos os bens que passam, vós nos impelis à posse da felicidade duradoura.’ Essa é a ideia do homem e da vida que é própria da existência cristã. Tudo é bem, mas passa; todavia, não passa negativamente. Esse limite inerente, tragicamente inerente a todas as coisas, existe para nos impelir à posse da felicidade duradoura. A realidade, os bens são uma ‘passagem’. E o conceito de passagem não é de modo algum o mais negativo; é um conceito fascinante, dramático, prenhe de aventura [...]. ‘Os bens que passam’ não significa algo que perde o vigor, não significa que o horizonte que imaginamos ilimitado se fecha e tudo se torna obtuso, todo se transforma em prisão, e o que parecia libertar sufoca, como uma mão que nos tapa a boca. [...] Os bens constituem uma passagem! [...] Portanto, há uma positividade, a positividade acerca do grande problema do significado, do para onde vamos (‘a felicidade duradoura’). [...] Prossegue a passagem da liturgia: ‘E, enquanto concedeis as consolações da vida presente’, que são bens, e portanto dão alegria, ‘já prometeis as alegrias futuras’. Aprofunda-se, aqui, a ideia anterior. A alegria presente, o gosto presente, o gozo presente é antecipação da alegria futura. O conceito de ‘passagem’ torna-se mais preciso, pois, se você passa sobre uma ponte, deixa-a para trás, mas, se uma alegria é antecipação, então é o início, é penhor, como dirá a liturgia em outra passagem, penhor do futuro; você não a perde mais!”.
Para nos tornar mais fácil a tomada de consciência da natureza dessa “passagem” na relação com a realidade, Giussani introduz um termo tão simples quanto sujeito a equívocos: sinal. E diz: “As consolações que vivemos no presente são sinal; mas isso com uma redenção do conceito de sinal que não existe na vida comum, pois o sinal é algo que você abandona, quando alcança o objeto. Humanamente falando, é assim. Aqui, não. O sinal, como antecipação, como penhor, se identifica com o futuro. Você conhece o futuro por intermédio do que começa a saborear já nesta vida. Logo, o gozo deste mundo é sinal de uma alegria futura, ‘para que nos seja dado [comenta ele de um modo comovente a liturgia] desde já antegozar [antegozar!] uma existência perene’. A amizade que tenho com você ou com vocês é para sempre! [...] A amizade que tenho com vocês constitui um sinal, um lampejo...”.
Para dar-se a entender de um modo ainda mais imediato, Giussani se serve de uma metáfora, a da alvorada, da primeira luz da manhã: “As coisas deste mundo são como uma alvorada. Se uma pessoa nunca tivesse visto o sol e sempre tivesse vivido na noite, nem poderia entender o que é a luz. Mas, ao primeiro claror da alvorada, seria tocada e arrebatada como por um acontecimento excepcional, pois as figuras das coisas começam então a se delinear. Já não está tudo imerso na homologação hostil da noite; as formas das coisas começam a ser vistas. É claro que a pessoa ainda não pode sonhar com o sol, mas a luz da alvorada pertence ao sol”.
Nesse alvorecer da relação com a realidade se dá toda a aventura do nosso eu despertado. E assim podemos ser libertados do esquema predefinido em que em maior ou menor medida procuramos encerrar as coisas que nos acontecem; aqui, a partida é sempre reaberta. Nada é já sabido, nada é óbvio. Continua Dom Giussani: “O que estou dizendo é o conceito que a nossa fé cristã tem da relação entre a vida e o seu sentido, o seu significado. ‘Enquanto concedes as consolações da vida presente, já prometes as alegrias futuras, para que nos seja dado desde já [me é dado desde já] antegozar uma existência perene...’” E como isso pode acontecer? “O como é a amizade que tenho com você e com ele, a relação que vivo com minha mãe, ainda que tenha morrido há dois anos, esse olhar profundo que uma paisagem aberta a perder de vista desperta e atrai. ‘Antegozar uma existência perene, e a beleza das coisas transitórias...’, ou seja, a beleza das coisas que são trânsito, passagem, que são sinal, ‘início-de’, pois a alvorada introduz você no dia; portanto, é a afirmação da beleza das coisas, e de que sua transitoriedade é o antegozo, é o início do eterno, e de que as coisas, assim, já não são perdidas (‘nem um fio de cabelo da sua cabeça!’), e de que essa beleza ‘não nos aprisiona’. Esse é o ponto! [...] Quando é que a beleza das coisas transitórias nos aprisiona? Quando é olhada, concebida, abordada, vivida eliminando sua natureza profunda, que é a de ser alusão-a, passagem-para, sinal-de, mesmo que seja um sinal e uma alusão que constituem o início do futuro, pois não há solução de continuidade entre esse ser efêmero e o ser enquanto tal, o ser eterno, tal como não existe solução de continuidade entre a alvorada e o sol, o esplendor do meio-dia”.
Desencadeia-se, assim, “uma positividade total no olhar para a vida, um amor à vida, com sua grandeza e sua pequenez, com sua presença infinitesimal e sua proposta estrondosa, arrojada; uma grande positividade, tanto assim que vivê-la tira o sono. O Evangelho usaria uma outra expressão: torna-nos vigilantes, tensos, como sentinelas sempre alertas nas muralhas da cidade. Portanto, uma grande positividade na maneira de viver. Mas uma positividade realista! Realista não significa que in cauda venenum, que em última instância essa realidade que você olha com positividade generosa e fascinada lhe seja inimiga, hostil. Não! Você não perde nada. Dá para entender que não perde nada? Pois tudo é introdução”. Ouçam agora que conhecimento profundo do humano Dom Giussani nos testemunha e como nos põe de sobreaviso contra o perigo sempre iminente de uma deslealdade com o que nos acontece: “Mas, se você, pensando ou contemplando a figura da sua namorada, ou olhando para a natureza, ou ouvindo música, se esquece e elimina a natureza profunda dessas coisas, essa natureza que introduz ao Mistério, que introduz ao que é duradouro, se você se esquece de que são a alvorada de um dia inconcebível, que você não pode imaginar, maior que você, se você se esquece disso, a beleza o aprisiona, a namorada o aprisiona. ‘Aprisiona’ significa que se torna uma prisão, em que você pode ter um ou outro momento de distração, para não se sentir esmagado, mas continua a ser uma prisão, um túmulo: se a realidade são quatro paredes, se a realidade é finita, para o homem é sempre o mesmo sufocamento – pois quatro paredes, quatro metros quadrados ou o cosmo também finito é tudo a mesma coisa –; quanto mais o homem pensa nisso, mais sufocante é”. Assim, este é o trabalho que nos espera, se não quisermos sucumbir na prisão da aparência: “Eu digo que toda a nossa atividade, todo o trabalho da nossa companhia é sobre este ponto: aprender a viver a beleza das coisas transitórias de modo tal que essa beleza não aprisione, mas seja caminho”.
Só isso introduz na vida uma dramaticidade e impede que a vida descambe – quase sem que nos demos conta – para o nada de uma existência sem significado: “No cotidiano, ou nós servimos ao poder ou a um Outro com ‘O’ maiúsculo; ou servimos ao poder ou ao Mistério que passa pelos nossos braços, pelos nossos pés, pelos nossos corações unidos, pela nossa companhia, o Outro que atravessa a história dentro da nossa companhia. Não há outra escolha: ou o poder ou esse Outro. Por isso, é a totalidade da nossa vida cotidiana que deve ser ‘buscada’ e como que invadida pela Sua presença: [...] ‘Cristo reconhecido dentro de todas as coisas’. ‘Quer comais, quer bebais, lembrai-vos que sois do Senhor’, diz São Paulo. E em outra parte: ‘Quer vigieis, quer durmais, sois do Senhor’. E ainda em outra parte: ‘Quer morramos, quer vivamos, somos do Senhor’, pertencemos. Não um Cristo confinado em certos momentos ou um Cristo, por conseguinte, acrescentado à existência, ao tecido da existência cotidiana, mas Cristo reconhecido dentro de todas as coisas. Que movimento pessoal é necessário para viver essa luta cotidiana contra a lógica do poder, para obter essa vitória cotidiana sobre o aparente e o efêmero, para afirmar essa presença constitutiva do destino das coisas, que é Cristo! É a revanche da pessoa contra a alienação do poder”.
Procuremos imaginar o tipo de movimento do nosso eu que pode ser introduzido no fluxo dos dias: “É um dinamismo novo diante da realidade inteira, um dinamismo que nasce de um juízo novo: ‘O valor da realidade és tu, ó Cristo’. Ele é a consistência de tudo. ‘Tudo n’Ele consiste.’ Tudo n’Ele é, tem consistência. É um dinamismo novo, um modo novo de usar o tempo do trabalho e o tempo livre, o tempo do amor e o tempo do esforço para superar a repugnância e o estranhamento. É um dinamismo novo em relação à realidade, que nasce de um juízo novo. Juízo: comparação com o critério de valor, Cristo. É um movimento pessoal, ou seja, em que Cristo é medida das coisas. Exatamente o oposto do nascimento do poder moderno: a razão medida das coisas”.
Gostaria de concluir indicando o último passo que Dom Giussani nos convida a dar, quase tomando-nos pela mão. É um passo decisivo, que introduz na vida um entusiasmo incomparável: o acontecimento de um eu como aquele que ele descreveu, que vive essa relação intensa com a realidade, que se torna história. Por intermédio de uma pessoa despertada por um encontro, o Acontecimento se torna história: “Atenção, pessoal, presença no ambiente! O resto não vale nada, se não é funcional a isso e não é gerador disso. [...] Última observação: tanto o mundo, a sociedade civil, todos os partidos – a começar por aquelas pessoas que deveriam ter uma sensibilidade mais próxima dessa –, quanto muitos representantes da Igreja ‘oficial’ odeiam a presença. No máximo, podem-nos permitir que pensemos, pessoalmente, no que quisermos: é a redução da nossa relação com Cristo a fenômeno absolutamente privado. No entanto, como o homem também é feito de corpo, essa relação com Cristo pode precisar também gesticular, e aí eles dão a você a Igreja, para que nela você possa gesticular. Mas o fato de Cristo se tornar presente graças à consciência de um homem, de um homem que se posiciona num ambiente com a consciência de pertencer a Cristo e, justamente por ter a consciência de pertencer a Ele, é mobilizado cultural e operacionalmente de um modo diferente, é determinado de um modo diferente, e isso se projeta – milagre supremo – na unidade, na criação de unidade”, isso o poder não pode tolerar.
Faço votos a todos de que possam vislumbrar na leitura de Dom Giussani um caminho para encontrar a si mesmos e não ser submissos, mas protagonistas da realidade, ou seja, à altura do desejo de seu coração, não porque sejam capazes, bons, honestos em virtude de suas forças, mas porque foram atingidos pelo encontro com uma humanidade diferente, que desperta o eu desde a profundidade da sua natureza original.