Reconhecer Cristo. Os primeiros acentos de uma moralidade nova

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Notas da meditação de padre Luigi Giussani diante de oito mil universitários reunidos em Rimini para os Exercícios Espirituais – Sábado, 10 de dezembro de 1994


A meditação desta manhã terminava com a frase icástica de Kafka: "Existe um ponto de chegada, mas não há nenhum caminho". É inegável: há um desconhecido (os geógrafos antigos traçavam quase uma analogia deste desconhecido com a famosa "terra desconhecida" com que terminavam seus grandes mapas; nas margens do mapa assinalavam: "terra desconhecida"). Às margens da realidade que o olho abraça, que o coração sente, que a mente imagina, há um desconhecido. Todos o sentem. Todos sempre o sentiram. Em todos os tempos, os homens o sentiram tanto que até o imaginaram. Em todos os tempos, os homens procuraram, através das suas elocubrações ou das suas fantasias, imaginar, fixar o rosto deste desconhecido. Tácito, no Germania, descrevia assim o sentimento religioso que qualificava os antigos teutões: secretum illud quod sola reverentia vident, hoc deum appellant (àquela coisa misteriosa que eles intuíam com temor e tremor, a isto chamavam Deus, a isto chamam Deus). Todos os homens de todos os tempos, qualquer que seja a imagem que tenham feito dele, hoc deum appellant, chamam Deus a este desconhecido diante do qual passam os olhares, da maioria indiferentes, mas de muitos apaixonados. Indubitavelmente, entre os apaixonados estavam aqueles trezentos que percorreram com o cardeal Martini o trajeto que vai de San Carlo à Catedral de Milão. Trezentos representantes de religiões diferentes! E como podemos nomear, com um denominador comum, aquilo que eles pretendiam exprimir e homenagear com a sua participação da grande iniciativa do cardeal de Milão? Um secretum illud, algo de misterioso, terra desconhecida, algo que não se pode conhecer – que não se pode conhecer!
Gostaria de recordar agora uma comparação que se encontra no segundo volume da Escola de Comunidade (Na origem da pretensão cristã) – quem já tiver lido este livro a conhece. Imaginem o mundo humano, a história humana, como uma imensa planície, e nesta imensa planície uma imensa multidão de empresas de construção, particularmente especializadas em fazer estradas e pontes. Cada uma no seu canto, do seu canto procura lançar, entre o ponto em que estão, entre o momento efêmero que vivem, e o céu pontilhado de estrelas, uma ponte que ligue os dois termos, segundo a imagem de Victor Hugo na sua bela poesia de Les contemplations intitulada "Le Pont" ("A ponte"). Nela ele imagina, sentado na praia de noite, uma noite estrelada, um indivíduo, um homem que olha, fixa seu olhar na maior estrela, a aparentemente mais próxima, e pensa nos milhares e milhares de arcos que seria preciso erguer para construir esta ponte, uma ponte que nunca pode ser terminada, que nunca será completamente realizada. Imaginem, então, esta planície imensa, toda ela apinhada de tentativas de grupos grandes e pequenos, ou até solitárias, como na imagem de Victor Hugo, cada um pondo em prática o projeto que imaginou, que fantasiou. De repente, ouve-se na imensa planície uma voz poderosa, que diz: "Parem! Parem todos!". E todos os operários, os engenheiros, os arquitetos suspendem o trabalho e olham para o lado do qual veio a voz: é um homem, que erguendo o braço continua: "Vocês são grandes, são nobres no seu esforço, mas esta sua tentativa, embora grande e nobre, permanece triste, motivo pelo qual tantos renunciam a ela e não pensam mais nela, e se tornam indiferentes; é grande, mas triste, porque não chega nunca ao termo, não consegue nunca ir até o fim. Vocês são incapazes disto porque são impotentes para este objetivo. Há uma desproporção que não pode ser preenchida entre vocês e a última estrela do céu, entre vocês e Deus. Vocês não podem imaginar o mistério. Ora, deixem o seu trabalho tão cansativo e ingrato, venham atrás de mim: eu lhes construirei esta ponte, aliás, eu sou esta ponte! Porque eu sou o caminho, a verdade, a vida!".
Estas coisas não são compreendidas no seu valor intelectual rigoroso, se não nos identificamos, se não procuramos nos identificar de coração. Imaginem, portanto, vocês que, das dunas de areia junto ao mar, vêem um agrupamento de pessoas do vilarejo próximo que estão a ouvir uma dentre elas que fala, que está lá no meio do grupo e fala; e vocês passam direto para ir à praia, para onde se dirigem; passam perto e, quando estão passando e olhando curiosos, ouvem o indivíduo que está no meio dizer: "Eu sou o caminho, a verdade, a vida. Eu sou o caminho, a verdade..."; o caminho que não se pode saber, do qual falava Kafka; "Eu sou o caminho, a verdade, a vida". Imaginem, façam um esforço de imaginação, de fantasia: o que vocês fariam, o que vocês diriam? Por mais céticos que possam ser, vocês não podem deixar de sentir o seu ouvido atraído para aquele lado, e pelo menos olham com curiosidade extrema para aquele indivíduo que ou é louco ou é verdadeiro: tertium non datur; ou é louco ou é verdadeiro. De fato, houve um só homem, um, que disse esta frase, um em toda a história do mundo – do mundo! –, de tanto que é verdade. Um homem no meio de um grupinho de pessoas, tantas vezes no meio de um grupinho de pessoas, e tantas vezes também no meio de uma grande multidão.
Então, na grande planície, todos suspendem o trabalho e ficam atentos a esta voz, e ele repete continuamente as mesmas palavras. Quais foram os primeiros que se incomodaram com aquilo? Os engenheiros, os arquitetos, os donos das várias empresas de construção, que disseram quase imediatamente: "Vamos, vamos, pessoal, ao trabalho, ao trabalho. Operários, ao trabalho! Ele é um fanfarrão!". Era uma alternativa radical, categórica, ao projeto deles, à sua criatividade, ao seu lucro, ao seu poder, ao seu nome, a si mesmos. Era a alternativa a si mesmos. Depois dos engenheiros, dos arquitetos e dos chefes, os operários também, começando um pouco a rir, com mais dificuldade desviaram totalmente o olhar daquele indivíduo, falando ainda por um pouco dele, caçoando dele, ou então dizendo: "Vai saber, vai saber quem é, será que é louco?". Mas alguns, ao contrário, não. Alguns perceberam um acento naquela voz que nunca tinham ouvido, e assim não respondiam ao engenheiro, ao arquiteto ou ao dono da empresa que lhes dizia: "Vamos, rápido, o que vocês fazem aí, por que vocês ainda estão aí parados olhando para lá?"; continuavam a olhar para ele. E ele avançava. Ou melhor, eles se aproximaram dele. Em cento e vinte milhões, eram doze. Mas aconteceu: isto é um fato histórico.
O que Kafka diz ("não há nenhum caminho") não é verdade historicamente. É verdade, paradoxalmente, poderíamos dizer, teoricamente, mas não é verdade historicamente. Não se pode conhecer o mistério! Isto é verdade teoricamente. Mas se o mistério bate à sua porta... "Se alguém me abrir a porta, entrarei em sua casa e irei jantar com ele" (Ap 3, 20): são palavras que lemos na Bíblia, palavras de Deus na Bíblia. Mas é um fato que aconteceu.

E o primeiro capítulo de São João, que é a primeira página literária a falar disto, fora do anúncio geral: "O Verbo se fez carne" – aquilo de que toda a realidade é feita se fez homem –, contém a memória daqueles que seguiram imediatamente, que resistiram à solicitação que lhes era feita por parte dos engenheiros, dos arquitetos. Em uma folha, algum deles anotou as primeiras impressões e os traços do primeiro momento em que o fato aconteceu. O primeiro capítulo de São João, de fato, possui uma seqüência de notas que são realmente notas de memória. Um dos dois, quando velho, lê na sua memória as anotações que ficaram, pois a memória tem uma sua lei. A memória não tem como lei uma continuidade sem espaços, como acontece por exemplo em uma criação fantástica, da imaginação; a memória literalmente "toma notas", como nós fazemos agora: uma anotação, uma linha, um ponto, e este ponto representa tantas coisas, de tal forma que a segunda frase começa depois das tantas coisas supostas pelo primeiro ponto. As coisas são mais supostas que ditas, algumas só são ditas como pontos de referência. Por isso, eu, com os meus setenta anos de idade, releio estas coisas pela milésima vez, e sem nenhum sintoma de cansaço. Desafio vocês a imaginarem uma coisa em si mais grave, mais pesada, no sentido de pondus, maior, mais carregada de desafio para a existência do homem na sua fragilidade aparente, mais cheia de conseqüências na história, do que esta, do que este fato.
"Naquele dia, João estava ainda lá com dois discípulos. Fixando seu olhar em Jesus, que passava, disse...". Imaginem a cena, então. Depois de 150 anos de espera, finalmente o povo hebraico, que sempre, ao longo de toda a sua história, durante dois milênios, tinha tido algum profeta, algum profeta reconhecido por todos, depois de 150 anos finalmente o povo hebraico teve de novo um profeta: chamava-se João Batista. Outros escritos da antigüidade também falam dele, está documentado historicamente, portanto. Todas as pessoas – ricos e pobres, publicanos e fariseus, amigos e adversários – iam ouvi-lo e ver a maneira como vivia, do outro lado do Jordão, em terra deserta, terra de gafanhotos e ervas silvestres. Ele tinha sempre um grupo de pessoas à sua volta. Entre estas pessoas naquele dia havia também dois que estavam indo pela primeira vez e vinham, digamos, do campo – mas eles vinham do lago, que era bem distante e estava fora do círculo das cidades mais desenvolvidas. Estavam lá como dois "caipiras" que pela primeira vez vêm à cidade, deslocados, olhando com os olhos arregalados para tudo o que estava à sua volta e sobretudo para ele. Ficavam lá com a boca aberta e os olhos arregalados a olhar para ele, a ouvi-lo, atentíssimos. De repente, uma pessoa do grupo, um homem jovem, vai embora, toma o caminho ao longo do rio para ir para o norte. E João Batista, inesperadamente, olhando fixamente para ele, grita: "Eis o Cordeiro de Deus, eis aquele que tira o pecado do mundo!". Mas as pessoas não se moveram, estavam acostumadas a ouvir o profeta de quando em quando exprimir-se com frases estranhas, incompreensíveis, sem nexo, fora de contexto; por isso, a maior parte dos presentes não fez caso daquilo. Os dois que vinham pela primeira vez, que ficavam lá escutando João Batista atentamente, olhando para os seus olhos, seguindo os seus olhos para onde quer que girasse o seu olhar, viram que mirava aquele indivíduo que ia embora, e puseram-se a seguir este indivíduo. Seguiram-no permanecendo à distância, por temor, por vergonha, mas estranhamente, profundamente, obscura e sugestivamente curiosos. "Aqueles dois discípulos, ouvindo-o falar assim, seguiram a Jesus. Jesus se voltou e vendo que o seguiam disse: 'O que buscais?'. Responderam-lhe: 'Rabi, onde moras?'. Ele lhes disse: 'Vinde e vede'". Esta é a fórmula, a fórmula cristã. O método cristão é este: "Vinde e vede". "E foram, e viram onde morava, e ficaram com ele todo o dia. Eram cerca de 4 da tarde". Não se especifica quando partiram, quando foram atrás dele; todo o trecho, também o seguinte, é composto de notas, como eu dizia antes: as frases acabam em um ponto que dá por óbvio que se saibam já muitas coisas. Por exemplo: "Eram cerca de 4 da tarde"; mas quando é que foram embora, quando é que foram lá, quem o sabe? De qualquer forma, eram 4 da tarde. Um dos dois que tinham ouvido as palavras de João Batista e haviam seguido aquele homem se chamava André, era o irmão de Simão Pedro. Ele encontrou em primeiro lugar seu irmão Simão... Deixaram Jesus, e o primeiro que André encontra é o irmão Simão, que voltava da praia, voltava ou da pescaria ou de consertar as redes necessárias para o pescador, e lhe diz: "Encontramos o Messias". Não narra nada, não cita nada, não documenta nada, é sabido, é claro, são notas de coisas que todos sabem! Poucas páginas podem ser lidas que sejam verídicas de maneira tão realista, verídicas de maneira tão simples, onde nenhuma palavra é acrescentada à pura recordação.
Como pôde dizer: "Encontramos o Messias"? Jesus, falando com eles, terá dito esta palavra, que estava no vocabulário deles; porque, dizer que aquele era o Messias, "como quatro e quatro são oito", com tanta certeza, teria sido impossível. Mas se vê que, ficando lá horas a escutar aquele homem, vendo-o, olhando-o falar – quem é que falava deste modo? Quem alguma vez já havia falado deste modo? Quem já havia dito estas coisas? Nunca foram ouvidas! Nunca fora visto alguém assim! –, lentamente, dentro do espírito deles, ia abrindo caminho a expressão: "Se eu não acredito neste homem, não acredito em mais ninguém, nem nos meus olhos". Não que tenham dito isto, não que tenham pensado assim, sentiram isto, não pensaram. Aquele homem terá, portanto, dito, entre outras coisas, que era ele aquele que tinha de vir, o Messias que tinha de vir. Mas fora tão óbvio na excepcionalidade do anúncio (da afirmação), que eles o carregaram consigo como se fosse uma coisa simples – era uma coisa simples! –, como se fosse uma coisa fácil de compreender.
"E André o conduziu a Jesus. Jesus, fitando o olhar sobre ele, disse: 'Tu és Simão, o filho de João. Chamar-te-ás Cefas, que quer dizer pedra'". Os judeus tinham o costume de mudar o nome, ou para indicar o caráter de alguém, ou então por algum fato que acontecia. Portanto, imaginem Simão, que vai com o irmão, cheio de curiosidade e um pouco de temor, e que olha fixamente para o homem a quem o irmão o conduz. Aquele homem o está fixando de longe. Pensem na maneira como o fixava, a ponto de compreender o seu caráter até a medula dos ossos: "Chamar-te-ás pedra". Pensem em uma pessoa que se sente olhada assim por alguém que nunca viu, absolutamente estranho, que se sente entendida assim no profundo de si. "No dia seguinte, Jesus tinha estabelecido que partiria para a Galiléia...". É meia página feita deste modo, feita destes breves acenos e destes pontos em que tudo o que aconteceu era tratado como se fosse óbvio que todos o soubessem, que fosse evidente para todos.
"Existe um ponto de chegada, mas não há nenhum caminho". Não! Um homem que disse: "Eu sou o caminho" é um fato histórico que aconteceu, cuja primeira descrição está dentro desta meia página que eu comecei a ler. E cada um de nós sabe que aconteceu. Nada aconteceu no mundo tão impensado e excepcional como aquele homem de que estamos falando: Jesus de Nazaré.

Mas para aqueles dois, os dois primeiros, João e André – André, muito provavelmente, era casado, tinha filhos –, como foi possível que fossem convencidos tão imediatamente e que o reconhecessem (não há uma outra palavra que possa ser dita diferente de reconhecê-lo)? Direi que, se este fato aconteceu, reconhecer aquele homem, quem era aquele homem, não quem era no fundo e minuciosamente, mas reconhecer que aquele homem era algo de excepcional, de incomum – era absolutamente incomum –, irredutível a qualquer análise, reconhecer isto devia ser fácil. Se Deus se tornasse homem, viesse até nós, se viesse agora, se tivesse penetrado na nossa multidão, se estivesse aqui entre nós, reconhecê-lo, a priori eu digo, deveria ser fácil: fácil reconhecê-lo no seu valor divino. Por que é fácil reconhecê-lo? Por causa de uma excepcionalidade, por causa de uma excepcionalidade incomparável. Eu tenho na minha frente uma excepcionalidade, um homem excepcional, sem comparações. Que quer dizer excepcional? Que quererá dizer? Por que o excepcional toca você? Por que você sente "excepcional" uma coisa excepcional? Porque corresponde às expectativas do seu coração, por quanto confusas e nebulosas possam ser. Corresponde de repente – de repente! –, corresponde às exigências da sua alma, do seu coração, às exigências irresistíveis, inegáveis do seu coração, como você jamais poderia imaginar, prever, porque não há ninguém como aquele homem. Ou seja, o excepcional é, paradoxalmente, o aparecimento daquilo que é mais natural para nós. O que é natural para mim? Que aquilo que eu desejo aconteça. Mais natural do que isto! Que aquilo que eu mais desejo mais aconteça: isto é natural. Esbarrar com algo absoluta e profundamente natural, porque correspondente às exigências do coração que a natureza nos deu, é uma coisa absolutamente excepcional. É como uma estranha contradição: o que acontece nunca é excepcional, realmente excepcional, porque não chega a responder adequadamente às exigências do coração. Acena-se à excepcionalidade quando algo faz o coração bater por uma correspondência que se crê de um certo valor e que o dia seguinte desacreditará, que o ano seguinte anulará.
É a excepcionalidade com a qual se mostra a figura de Cristo que torna fácil o reconhecê-lo. É preciso imaginar-se dentro, eu disse, é preciso identificar-se com estes acontecimentos. Se pretendemos julgá-los, se queremos julgá-los, não digo compreendê-los, mas julgá-los substancialmente, se são verdadeiros ou falsos, é a sinceridade da identificação que você vive que torna verdadeiro o que é verdadeiro e não falso, e que não torna o seu coração duvidoso da verdade. É fácil reconhecê-lo como presença divina porque é excepcional: corresponde ao coração, e a pessoa aceita e nunca iria embora, que é o sinal da correspondência com o coração. Nunca iria embora, e o seguiria por toda a vida – e de fato o seguiram durante os outros três anos que ele viveu.
Mas imaginem aqueles dois que ficam a ouvi-lo durante algumas horas e que depois têm de ir para casa. Ele se despede deles e eles voltam calados, calados porque invadidos pela impressão que tiveram do mistério que sentiram, pressentiram, ouviram, e depois se separam. Cada um dos dois vai para a sua casa. Não se cumprimentam, não porque não se cumprimentem, mas se cumprimentam de um outro modo, cumprimentam-se sem se cumprimentar, porque estão repletos da mesma coisa, são uma só coisa aqueles dois, de tanto que estão repletos da mesma coisa. E André entra em sua casa e tira o manto, e a esposa lhe diz: "Mas, André, o que você tem? Está diferente, que lhe aconteceu?". Imaginem a ele que rompesse em choro abraçando-a, e ela que, perturbada com isto, continuasse a lhe perguntar: "Mas o que você tem?". E ele a abraçar a sua esposa, que nunca se sentiu abraçada assim em sua vida: era um outro. Era um outro! Era ele, mas era um outro. Se lhe tivessem perguntado: "Quem é você?", teria dito: "Compreendo que me tornei um outro... depois de ter ouvido aquele indivíduo, aquele homem, eu me tornei um outro". Rapazes, isto, sem ter de fantasiar demais, aconteceu.
Não apenas é fácil reconhecê-lo, foi fácil reconhecê-lo na sua excepcionalidade – porque "se não acredito neste homem não acredito mais nem nos meus olhos" –, mas foi fácil também compreender que tipo de moralidade, isto é, que tipo de relacionamento dele nascesse; porque a moralidade é a relação com a realidade enquanto criada pelo mistério, é a relação justa, ordenada com a realidade. Foi fácil, foi fácil para eles compreender como era fácil o relacionamento com ele, o segui-lo, o ser coerentes com ele, o ser coerentes com a sua presença – coerentes com a sua presença.
Há uma outra página de São João que diz estas coisas de um modo espetacular: está no último capítulo de São João, o vigésimo primeiro. Naquela manhã, o barco estava chegando à margem e não tinham conseguido pegar peixes. A algumas centenas de metros da praia, se deram conta de um homem que estava ali, de pé – ele havia preparado uma pequena fogueira, dava para ver de cem metros –, e que dialogou com eles de uma certa maneira que agora não descrevo em detalhes. João foi o primeiro a dizer: "É o Senhor!"; e São Pedro no mesmo instante se joga no lago e em quatro braçadas chega à praia: e é o Senhor. Ao mesmo tempo chegam os outros e ninguém fala. Colocam-se todos em círculo, ninguém fala, todos calados, porque todos sabiam que era o Senhor ressuscitado: já estivera morto, e já se havia deixado ver por eles depois que ressuscitara. Tinha preparado peixe assado para eles. Todos se sentam, comem. No quase total silêncio que pesava sobre a praia, Jesus, deitado, olhou para o seu vizinho, que era Simão Pedro: fixou-o, e Pedro sentiu, imaginemos como sentiu, o peso daquele olhar, porque se lembrava da traição de poucas semanas antes, e de tudo o que tinha feito – fora chamado até de Satanás por Cristo: "Vá para longe de mim, Satanás, escândalo para mim, para o destino da minha vida" (cf. Mc 8, 33) –, lembrava-se de todos os seus defeitos, porque quando se erra gravemente uma vez volta à mente também todo o resto, até aquilo que é menos grave. Pedro se sentiu como que esmagado sob o peso da sua incapacidade, da sua incapacidade de ser homem. E aquele homem ali ao lado abre a boca e lhe diz: "Simão (imaginem como Simão devia tremer), tu me amas?". Mas, se vocês procuram identificar-se com esta situação, tremem agora pensando nela, somente pensando nela, pensando nesta cena tão dramática; dramática, quer dizer, tão descritiva do humano, expositiva do humano, exaltadora do humano, porque o drama é o que exalta os fatores do humano, somente a tragédia os aniquila. O niilismo leva à tragédia, este encontro traz à vida o drama, porque o drama é a relação vivida entre um eu e um tu. Então Pedro, como num respiro, como num respiro respondeu: a sua resposta foi apenas balbuciada como num respiro. Não ousava, mas... "Não sei como, sim, Senhor, eu te amo; não sei como, mas é assim". "Sim, Senhor. Não sei como, não posso te dizer como, mas..." Enfim, era facílimo manter, viver o relacionamento com aquele homem, bastava aderir à simpatia que ele fazia nascer, uma simpatia profunda, semelhante à simpatia vertiginosa e carnal da criança com sua mãe, que é simpatia no sentido intenso do termo. Bastava aderir à simpatia que ele fazia nascer. Porque, depois de tudo o que lhe havia feito, e a traição, ouviu ser-lhe dito: "Simão, tu me amas?". Por três vezes. E ele pensou na terceira vez, talvez, que houvesse uma dúvida na pergunta, e respondeu mais amplamente: "Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que te amo. A minha simpatia humana é por ti; a minha simpatia humana é por ti, Jesus de Nazaré".
Aprender com uma excepcionalidade está dentro de uma simpatia: isto é a lógica do conhecimento e a lógica da moralidade que a convivência com aquele indivíduo tornava necessárias, apenas isto. Aprender é uma simpatia última. Como para a criança com a sua mãe, que pode errar mil vezes por dia, cem mil vezes por dia, mas se a tiram de sua mãe, ai! Se pudesse compreender a pergunta: "Você ama esta mulher?", e responder, pensem que "sim" ela gritaria. Quanto mais errou, mais gritaria "sim", para afirmá-lo. Estou falando de homem para homens, que, sendo jovens, têm menos preconceitos; estão abarrotados de preconceitos, de fato, mas são os preconceitos dos adultos. Qual é no fundo, então, a coisa que a moralidade da simpatia para com ele exige que você faça, que você realize? Observá-lo, ou aquele observar ativo que se chama seguir. Segui-lo. E de fato voltaram a ele no dia seguinte, ele voltou a eles no terceiro dia, porque morava em uma cidade vizinha. Começou a ir à pesca com eles, e à tarde ia encontrá-los na praia quando consertavam as redes. E quando ele, de quando em quando, começava a percorrer as cidades do interior, passava por eles e dizia: "Vinde comigo?", alguns iam, alguns não iam, depois acabavam por ir todos. Acabavam por passar fora algumas horas, depois mais horas, depois o dia inteiro, depois ele começava a passar fora também a noite, e eles o seguiam, esqueciam da sua casa... Não se esqueciam da sua casa! Havia algo maior do que a sua casa, havia algo do qual a sua casa nascia, do qual o seu amor à mulher nascia, que podia salvar o amor com que olhavam para os filhos e os viam com preocupação tornarem-se adultos, havia algo que salvava tudo isto mais do que as suas paupérrimas forças e a sua pequeníssima imaginação. O que eles podiam fazer? Diante dos anos feios de carestia, ou diante dos perigos a que iam de encontro os filhos? Foram atrás dele! Todos os dias ouviam o que ele dizia, todas as pessoas ficavam ali com a boca aberta, e eles com a boca mais aberta ainda. Não se cansavam de ouvi-lo.
Pois ele era bom. "Tomou uma criança, abraçou-a e disse: 'Ai daquele que arranca um fio de cabelo da menor destas crianças'" (cf. Mt 18, 2-6), e não falava de não fazer mal físico à criança, o que até certo ponto se tem um pouco mais de reserva em fazer – hoje não, e este não é o último sinal triste dos tempos –, mas falava do escândalo à criança que, ninguém pensa nisto, é fazer-lhe mal. Ele era bom. Quando viu aquele funeral, informou-se logo: "Quem é?". "É um adolescente, cujo pai morreu há pouco tempo". E sua mãe estava gritando e gritando e gritando atrás do féretro, não como era costume naquela época, mas como é comum na natureza do coração de uma mãe, que livremente se exprime. Deu um passo na direção dela e lhe disse: "Mulher, não chores!" (Lc 7, 11-14). Mas há algo de mais injusto do que dizer a uma mulher cujo filho morreu, sozinha: "Mulher, não chores"? E era, pelo contrário, o sinal de uma compaixão, de uma afeição, de uma participação da dor sem limites. Disse ao filho: "Levanta-te!". E restituiu-lhe o filho. Mas não podia restituir-lhe o filho sem dizer nada: teria permanecido na sua solenidade de profeta e taumaturgo, de homem dos milagres. "Mulher, não chores", disse. E restituiu-lhe o filho. Mas disse antes: "Mulher, não chores".
Imaginem durante um, dois anos ouvi-lo todos os dias assim, senti-lo tão bom, senti-lo com tanto poder sobre a natureza que a natureza estava como que ao seu serviço. E naquela tarde foi de barco com eles, e fez-se noite. A certo ponto ergue-se um vento impetuoso, uma tempestade terrível se desencadeia de repente sobre o lago de Genesaré, e estavam para ir a pique. O barco estava cheio de água, ele dormia, estava tão cansado que não ouvia nem a tempestade e dormia na popa. Um deles disse: "Mestre, acorda, acorda, vamos a pique!". E ele levantou a cabeça, estendeu a mão e "deu ordens ao vento e ao mar e fez-se de repente uma grande calmaria". Aqueles homens – termina o Evangelho – aqueles homens, amedrontados, diziam entre si: "Mas quem é este?" (Mt 8, 23-27 e Lc 8, 22-25). Esta pergunta dá início na história do mundo, até o fim do mundo, ao problema de Cristo. Esta pergunta – precisa – no oitavo capítulo do Evangelho de São Lucas. Eram pessoas que o conheciam muito bem, que conheciam a sua família, que o conheciam como a palma de sua mão, iam atrás dele, tinham abandonado as suas casas! Mas era tão desproporcionado o modo de agir daquele homem, tão inconcebível, tão soberano, que era espontâneo aos seus amigos dizer: "Quem é este?". O que tem por trás dele? Não há nada que o homem deseje mais do que esta "incompreensibilidade". Não há nada que o homem deseje mais ardentemente, ainda que temerosamente, sem se dar conta, do que esta presença inexplicável. Porque é ele, Deus. Ele é o sinal e a conexão com o mistério. De fato, é a mesma pergunta que lhe fizeram os seus inimigos no fim, antes de matá-lo. Poucas semanas antes de matá-lo, discutindo com ele, lhe disseram: "Até quando nos manterás na expectativa, dize de que parte vens e quem és!" (cf. Jo 10, 24). Tinham o seu registro civil, era alguém que haviam registrado, trinta e três anos antes. Não há homem nenhum no mundo do qual nós possamos dizer: "Mas quem é este que faz estas coisas?", constrangidos pela admiração e pela desproporção entre a imaginação do possível e o real que a pessoa tem diante de si.
Compreende-se então como daquela vez que ele matou a fome de mais de cinco mil homens, sem contar as mulheres e as crianças – matou a sua fome misteriosamente –, depois desapareceu, porque queriam torná-lo rei. Aqueles homens disseram, tocados na sua economia: "Este é realmente o Messias que deve vir!" (Jo 6, 14), voltando de repente à mentalidade comum que sempre haviam vivido, que todos tinham – como era ensinado pelos seus chefes, o Messias deveria ser um homem poderoso que iria dar a Israel, ao seu povo, a supremacia sobre o mundo. Fugiu deles, e muitos deles intuíram que tivesse ido a Cafarnaum. Então contornaram o lago para encontrá-lo, ao anoitecer do sábado. Foram à sinagoga, porque o lugar em que podiam encontrá-lo era a sinagoga: ele, de fato, tomava sempre como ponto de partida para falar o trecho bíblico que era proposto ao povo naquele dia, do rolo que o empregado da sinagoga lhe trazia. E de fato era lá na sinagoga que estava falando, e estava dizendo que os pais deles haviam comido o maná, mas que ele dava de comer algo de muito maior, a sua palavra: a sua palavra é verdade. A verdade dava-lhes de comer, a verdade dava-lhes de beber, a verdade sobre a vida e sobre o mundo. Abre-se a porta no fundo, entra este grupo que o procurava, que o havia perseguido, digamos. Buscavam-no. Buscavam-no por um motivo errado, porque queriam torná-lo rei, não porque estavam tocados pelo sinal que ele era, pelo mistério da sua pessoa, que o poder dos seus gestos afirmava, mas porque tinham um interesse, buscavam nele um proveito material. O motivo era errado, porém o buscavam. Buscavam-no. Ele tinha nascido para que todo o povo o buscasse. Comoveu-se e inesperadamente veio-lhe em mente – a ele, homem como nós, para quem as idéias vinham, como a nós, das circunstâncias – uma idéia fantástica. Mudou o sentido daquilo que dizia e exclamou: "Não vos darei a minha palavra, mas vos darei de comer o meu corpo, de beber o meu sangue!". A deixa, finalmente os políticos e os jornalistas e os "homens da TV" daquele tempo tiveram a deixa: "É louco, quem pode dar de comer da sua carne?". Quando ele dizia uma coisa que era importante, mas as pessoas não compreendiam e se escandalizavam com o que dizia, ele não explicava, mas repetia, repetia: "Em verdade, vos digo: quem não come da minha carne não pode começar a compreender a realidade, não pode entrar no reino do ser para compreender a realidade, não pode entrar nas entranhas da realidade, porque a verdade é esta". Todos foram embora: "É louco, é louco, diziam", durus est hic sermo, "tem um jeito estranho de falar" (cf. Jo 6, 60). Até que, na penumbra do anoitecer, sobrou só ele com os doze de sempre. Eles também em silêncio, de cabeça baixa. Imaginem a cena na pequena sinagoga de Cafarnaum, que é como uma sala de aula nossa, de 30 ou 40 lugares. "Vós também quereis ir embora? Não retiro aquilo que eu disse: vós também quereis ir embora?". E Simão Pedro, teimoso, Pedro: "Mestre, nós também não compreendemos o que tu dizes, mas, se te deixamos, para onde iremos? Tu tens palavras que dão sentido ao viver" (cf. Jo 6, 67ss). (Kafka: "Existe um ponto de chegada, mas não há nenhum caminho"). Aquele homem era o caminho. "Se te deixamos, para onde iremos? Qual será o caminho, qual pode ser o caminho? O caminho és Tu!".

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Aqueles dois, João e André, e aqueles doze, Simão e os outros, falaram dele às suas esposas, e algumas daquelas mulheres foram com eles; a certo ponto muitas foram com eles e o seguiram: abandonavam as suas casas e iam com eles. Mas falaram dele também a outros amigos, os quais não necessariamente abandonavam também as suas casas, porém participavam da simpatia deles, participavam da posição positiva de estupor e de fé deles naquele homem. E os amigos falaram dele a outros amigos, e depois a outros amigos, depois a outros amigos ainda. Assim passou o primeiro século, e estes amigos invadiram com a sua fé o segundo século e ao mesmo tempo invadiam também o mundo geográfico. Chegaram até a Espanha no final do primeiro século e até a Índia no segundo século. E depois estes do segundo século falaram a outros que viveram depois deles, e estes a outros depois deles, como um grande fluxo que se alargava, como um grande rio que se alargava, e chegaram a falar a minha mãe – a minha mãe. E minha mãe falou dele a mim, que era pequeno, e eu digo: "Mestre, eu também não entendo o que Tu dizes, mas se te deixamos, para onde vamos? Só Tu tens palavras que correspondem ao coração". Que é a lei da razão: a lei da razão é a comparação com o coração. Os critérios da razão são as exigências da minha natureza, do coração. Contaram-me de uma amiga nossa que lendo um texto nosso, ela que não é católica, observou: "Mas eu encontrei aqui a palavra coração usada não como eu a entendo, porque o coração como eu entendo é ponto de referência do sentimento: eu tenho um sentimento, ele tem um outro; enquanto que aqui não, este coração de que se fala em O senso religioso é igual para todos, é igual para todos, é igual para mim e para você". Se o coração é o lugar da exigência do verdadeiro, do belo, do bom, do justo, da sede de felicidade, quem de nós pode fugir destas exigências, quem? Constituem a natureza dele, a minha, a sua, por isto somos mais unidos que "ausentes", que estranhos, como normalmente somos. E o último coreano, o último homem de Vladivostok, o último homem da mais distante e perdida região da terra está unido a mim justamente por isto.
Desde aquela noite nasceu um fluxo humano que chegou até agora, até a mim. Assim como a este fluxo pertencia minha mãe, da mesma forma pertenço eu, e dizendo-o a tantos amigos eu torno também eles participantes deste fluxo. Mesmo que vocês já a tenham lido em Litterae (Litterae Communionis, revista bimestral de Comunhão e Libertação, nº 43, jan./fev. 95, p. 2, nde.), eu releio, porque não é perder tempo, uma carta que me foi escrita, e descoberta infelizmente tarde, por um jovem doente de AIDS, que morreu dois dias depois de ter-me escrito: “Caro padre Giussani, escrevo-lhe chamando-o ‘caro’, ainda que não o conheça, nunca o tenha visto, nem nunca o tenha ouvido falar. Ou melhor, para dizer a verdade posso dizer que o conheço enquanto, se entendi alguma coisa de O senso religioso e daquilo que Ziba me diz, conheço-o por fé e, acrescento eu, agora graças à fé. Escrevo-lhe somente para dizer-lhe obrigado; obrigado pelo fato de ter dado um sentido a esta minha vida árida. Sou um antigo colega de colegial de Ziba, com quem sempre tive uma relação de amizade, pois, mesmo não compartilhando da sua posição, sempre me tocou a sua humanidade e a sua disponibilidade não interesseira [que é o único modo como podemos gritar a um outro e a todo o mundo: “Cristo é verdadeiro”]. Penso ter chegado ao fim da linha desta vida atribulada levado por aquele trem que se chama AIDS e que não dá trégua a ninguém. Agora dizer isto não me dá mais medo. Ziba me dizia sempre que o importante na vida é ter um interesse verdadeiro e segui-lo. Este interesse eu persegui muitas vezes, mas nunca era o verdadeiro. Agora vi o interesse verdadeiro, encontrei-o e começo a conhecê-lo e a chamá-lo pelo nome: chama-se Cristo. Não sei nem o que quer dizer e como posso dizer estas coisas, mas quando vejo o rosto do meu amigo ou leio O senso religioso, que está me acompanhando, e penso no senhor ou nas coisas que Ziba me conta do senhor, tudo me parece mais claro, tudo, até o meu mal e a minha dor. A minha vida, que já se tornou monótona e estéril, que se tornou uma espécie de pedra lisa onde tudo escorre como a água, tem um sobressalto de sentido e significado que varre os pensamentos ruins e as dores, aliás, abraça-os e os torna verdadeiros tornando o meu corpo cheio de larvas e apodrecido sinal da Sua presença. Obrigado, padre Giussani, obrigado porque me comunicou esta fé ou, como o senhor o chama, este acontecimento. Agora me sinto em paz, livre e em paz. Quando Ziba rezava o Angelus na minha frente, eu blasfemava na sua cara, odiava-o e lhe dizia que era um covarde, porque a única coisa que sabia fazer era dizer aquelas rápidas orações na minha frente. Agora, quando balbuciando tendo rezar o Angelus com ele, compreendo que o covarde era eu, porque não via nem a um palmo do meu nariz a verdade que estava na minha frente. Obrigado, padre Giussani, é a única coisa que um homem como eu pode lhe dizer. Obrigado, porque, em lágrimas, posso dizer que morrer assim agora tem um sentido, não porque seja mais bonito – tenho um grande medo de morrer –, mas porque agora sei que há alguém que me quer bem e que talvez até eu possa me salvar e que eu também posso rezar para que os colegas de quarto encontrem e vejam como eu vi e encontrei. Assim me sinto útil, pense, somente usando a voz me sinto útil; com a única coisa que ainda consigo usar bem eu posso ser útil; eu, que joguei fora a vida, posso fazer o bem somente rezando o Angelus. É impressionante, mas ainda que fosse uma ilusão esta coisa é demasiado humana e razoável, como o senhor diz em O senso religioso, para não ser verdadeira. Ziba colou sobre a minha cama a frase de Santo Tomás: ‘A vida do homem consiste no afeto que principalmente o sustenta e no qual encontra a sua maior satisfação’. Penso que a minha maior satisfação seja a de tê-lo conhecido [eu nunca o vi!], escrevendo-lhe esta carta, mas a satisfação ainda maior é que na misericórdia de Deus, se Ele quiser, conhecerei o senhor lá onde tudo será novo, bom e verdadeiro. Novo, bom e verdadeiro como a amizade que o senhor introduziu na vida de muitas pessoas e da qual posso dizer ‘eu também estava lá’, eu também nesta vida suja vi e participei deste acontecimento novo, bom e verdadeiro. Reze por mim; eu continuarei a sentir-me útil durante o tempo que me resta rezando pelo senhor e pelo Movimento. Um abraço. Andrea".
Dois mil anos foram queimados por esta carta. Não foi ontem, é hoje, não é hoje para mim, mas é hoje para você, qualquer que seja a posição que você tenha: mude-a, se deve ser mudada! Eu também todas as manhãs compreendo que devo mudá-la, porque eu sou responsável por tantas coisas que Ele me deu. Digo somente que este acontecimento ou esta presença é de hoje – de hoje! Aquele fluxo humano de que falamos, eu o introduzo hoje na sua vida. Não há senão Deus, Deus apenas, ontem, hoje e sempre. Um acontecimento grande, dizia Kierkegaard, só pode ser presente, porque não é um passado, algo morto, que pode nos mudar. Mas, se algo nos muda, é presente: “É, se muda”, diz um texto nosso.

Mas não há somente esta carta belíssima. Vocês leram (no nº 42 de Litterae Communionis, cit., nov./dez. 94, p. 2., nde.) a oração que escreveram os nossos amigos de Turim que perderam todos os seus familiares na recente tragédia do Piemonte: "Nesta hora tremenda e grande queremos agradecer ao Senhor, Deus nosso e Pai nosso, por nos ter dado em Cristo Francesco, Cecilia, Lucia e Cecilia. Através deles, Tu, ó Cristo, começaste a fazer-te conhecer a nós com o Batismo, a educação, a adesão de Lucia ao Movimento e a chegada de Cecilia, acolhida como um milagre. Faz, ó Cristo, que agora que eles estão em Ti enquanto fazes toda a realidade, nos ajudem a reconhecer-te cada vez mais em cada instante da vida". Depois de dois mil anos, é agora; para Alberto, Mario, está presente agora. Gritam a Ele, que está presente agora, que chegue a vencer a sua frieza, da sua ignorância, da sua distância! Quando eu era garoto e adoecia, e ficava de cama com febre, via as pessoas longe, longe; o quarto, as paredes, eu os via longe, longe; via os móveis muito longe e tinha medo de ficar só em um espaço grandíssimo, larguíssimo; e quando minha mãe entrava no quarto, via-a pequenininha, quase inexistente. É uma patologia que nos faz vê-Lo distante, porque Ele é Deus, o presente. "É", Ele "é", porque está presente. O que não existe na nossa experiência presente, que não está de modo algum na nossa experiência presente, o que não estaria de maneira alguma na nossa experiência presente não existe, não existiria.

Vão ler em Litterae um terceiro testemunho (Litterae Communionis, cit., nº 43, jan./fev. 95, p. 43, nde.). Seis amigos nossos estão na grande Sibéria, na cidade de Novosibirsk. Estão lá há três anos e têm um certo grupo de amigos que se fizeram batizar. Um deles contou o que aconteceu na sua vida. É um rapazinho de 17 anos. "Encontrei o Movimento logo depois do meu encontro com a Igreja Católica. Naquela época eu não conhecia praticamente nada da vida cristã e compreendia menos ainda. Encontrei uma companhia de pessoas bastante jovens, onde havia sobretudo estudantes e alguns italianos que falavam pouco ou nada de russo. Ouvia-os falar da vida, do trabalho, falavam da sua experiência cristã, do seu primeiro encontro com Cristo, cantavam também e se divertiam. Depois iam juntos à Missa, às vezes rezavam as Vésperas. Tive a impressão de serem apenas bons amigos, mas, na verdade, havia algo de estranho para mim: por que estes estrangeiros tinham vindo tão longe, para um lugar tão frio e onde a vida não é tão confortável? E, depois, pessoas tão jovens, diferentes umas das outras e mesmo assim amigas; por que estão juntas? É provável que justamente nisto, ou também nisto, consista a graça do primeiro encontro, quando você, intuitivamente, experimenta exatamente aquilo de que tem necessidade na vida, experimenta algo correspondente, bom, que desperta em você curiosidade e desejo, de maneira tal que toda vez você revive o primeiro encontro sem reconhecer até o fundo por quê. De fato, só depois é que comecei a intuir e a compreender que nesta companhia está presente Alguém, diante do qual tudo se inclina, e que junta pessoas que à primeira vista não poderiam jamais estar juntas. Eu acho que para mim foi uma espécie de 'momento extraordinário' quando reconheci a presença de Cristo, quando o descobri naquela companhia. Reconheci que sou amado [como Andrea], muito amado por Jesus, precisamente através destas pessoas que Ele mesmo colocou do meu lado e que me acompanham. Já faz três anos que estou no Movimento de CL e isto me ajuda. Posso dizer que agora experimento o gosto da vida e isto me parece mesmo muito importante [o contrário do que hoje é dominante: a perda do gosto da vida como sintoma do macabro da cultura presente]. De fato, os aspectos da vida são diferentes: o trabalho, o descanso, o estudo, as férias; ver o sentido em todos os aspectos da vida, reconhecer que Deus se tornou acontecimento na nossa vida: o cristianismo é exatamente isto. Nada acontece por acaso, nada acontece simplesmente por acontecer e cada momento da história pode testemunhar a presença de Cristo aqui e agora. Tenho muitos amigos, encontro muitas pessoas e experimento sempre uma grande dor pelo fato de que ainda não experimentaram a graça do primeiro encontro que permite perceber a Sua presença e obriga a segui-Lo. Gostaria de comunicar a todos os que encontro o desejo de experimentar o gosto desta vida [gosto: gosto é um termo tão natural, tão carnal e tão divino, é a felicidade eterna, o gosto eterno, é o objetivo do viver]. Claro, a minha experiência ainda é pequena, mas peço que em todos os aspectos da vida eu possa testemunhar Cristo, presente aqui e agora. Josif".

E de fato, assim como para Josif, a maior surpresa para mim, cristão, é experimentar agora, é encontrar a correspondência com o coração que Ele é, agora. Porque quando o jornalista se aproximou de uma irmã da congregação de Madre Teresa de Calcutá, na Índia, e lhe fez algumas perguntas, entre outras coisas ela – uma freira muito jovem, com menos de vinte anos – disse: "Lembro-me de ter recolhido um homem das ruas e de tê-lo levado para nossa casa". "E o que disse aquele homem?". "Não resmungou, não blasfemou, disse apenas: 'Vivi pela rua como um animal e estou para morrer como um anjo, amado e tratado. Irmã, estou para voltar para a casa de Deus' e morreu. Nunca vi um sorriso como o que vi no rosto deste homem". O jornalista replicou: "Por que até nos maiores sacrifícios parece que não há esforço em vocês, que não há cansaço?". Então interveio Madre Teresa: "É Jesus aquele para quem fazemos tudo. Nós amamos e reconhecemos Jesus, hoje". Hoje: o ontem não existe mais. O que existia ontem ou está presente hoje ou não existe mais.

Desagrada-me não poder ler toda esta carta de Glória, porque é muito longa, mas vocês a encontram em Litterae (no nº 42 de Litterae Communionis, cit., nov./dez. 94, p. 30, nde.). Ela é uma jovem professora que foi com Rose para a África, para Campala, e que escreve: "Nada para mim aqui é imediato [nada para mim é conveniente, nada é fácil para mim]. E em certos momentos experimentei como que uma impossibilidade de estar diante dessa gente doente, suja, sem um mínimo de condições de higiene e saúde. [Mas quem a faz ficar ali? A lembrança de dois mil anos atrás? Algo agora. Uma presença que existe agora.] Uma manhã, quando fui dizer bom dia a Rose, ela me disse: 'Reze a Nossa Senhora para que hoje não se espante ao ver como Cristo vai se apresentar a você'. Com estas palavras no coração, fui com Cláudia à casa de detenção para menores. Tudo me causava aversão: o cheiro, a imundície, a sarna, os piolhos. E naquele momento, relembrando as palavras de Rose, compreendia que o pedido coincidia com a posição da minha pessoa". Ela, curvada sobre o doente, ou sobre a criança no orfanato, ela, curvada desse jeito, nesta posição: o seu pedido, o pedido de ser, que é o pedido do coração do homem – porque mesmo que a pessoa não pense nisto, grita-o, grita o pedido de ser, o pedido de ser feliz, o pedido do verdadeiro, o pedido do bem, do bom, do justo, do belo –, este pedido era a sua posição, o pedido coincidia com a própria posição que assumia.

Mas a maior notícia destes tempos, talvez a maior de toda a nossa história, é a que aconteceu em Brasília. Tinha um garoto entre os mais delinqüentes de Brasília, muitas vezes assassino, porque o seu bando é um bando de assassinos. Na sua classe, no início do ano, começa a dar aulas uma professora dos Memores Domini. Ela tem o nosso linguajar. O menino fica perturbado, ele também quer ter os olhos cheios de azul como os dela e não escuros, escuros, negros, sujos, como ele tem. Pretende mudar. O chefe do bando percebe que algo não vai bem, e logo o põe à prova, intima-o a ir matar uma pessoa. Ele diz: "Eu não mato mais ninguém". E o chefe: "Eu te mato, então": matou-o. É o segundo mártir da nossa história.

Mas qual é a fórmula sintética de toda a figura de Cristo por si mesma, como homem, registrado pela administração de Belém, e presente agora solicitando e exigindo a vida e o coração de cada um de nós para que através de nós o mundo inteiro o reconheça, para que o mundo seja mais feliz, para que todas as pessoas do mundo sejam mais felizes, saibam o "porquê", possam morrer como Andrea? A fórmula sintética que descreve toda a dinâmica de Jesus é que ele foi "enviado" pelo Pai. Por que Jesus, sendo Deus, Verbo de Deus, a expressão de Deus, por isso a origem do mundo, se tornou homem? Por que entrou nas entranhas de uma menina de 15 anos, foi gerado dentro destas entranhas, nasceu menino, tornou-se jovem, adolescente, homem, homem de trinta anos, falava como o ouvimos falar, toca Andrea, toca as pessoas de Villa Turro (os doentes de AIDS de que nossos amigos tomam conta), toca o menino de Brasília? Por que se tornou homem e age na história deste modo, torna-se presente na história deste modo? Para levar a termo o desígnio de um Outro. Ele usa, Ele mesmo usa a palavra extrema que indica a origem de tudo e de que portanto a vida nasce: o Pai. A sua vida se define como chamada pelo Pai para desenvolver uma missão: a vida é vocação.
Esta é a definição cristã de vida: a vida é vocação. E vocação é cumprir uma missão, desenvolver uma tarefa, que Deus determina para cada um através das circunstâncias banais, cotidianas, momento após momento, que Ele permite que nós tenhamos de atravessar. Por isto, Cristo é o ideal da nossa vida, enquanto ela é tentativa de resposta, desejo de responder ao chamado de Deus; vocação, chamado de Deus, desígnio que o Mistério tem sobre mim, porque eu neste instante, se for sincero, se pensar seriamente, compreendo: nada é tão evidente, nem você que está a dois metros de mim, nada é tão evidente quanto o fato de que neste instante eu não me faço por mim, não me dou os cabelos, não me dou os olhos, não me dou o nariz, não me dou os dentes, não me dou o coração, não me dou a alma, não me dou os pensamentos, não me dou os sentimentos, tudo me é dado: para que eu cumpra o Seu desígnio, um desígnio que não é o meu, através de todas as coisas, através do escrever, através do falar, através do Angelus, como dizia Andrea, através de tudo, tudo. "Quer comais, quer bebais" (1 Cor 10, 31), diz São Paulo, fazendo a comparação mais banal que se possa imaginar; "na vigília ou no sono" (1 Ts 5, 10); "quer vivamos, quer morramos" (Rm 14, 8) – dirá ainda em outras passagens –, tudo é glória de Cristo, isto é, desígnio de Deus. Cristo é o ideal da vida. Aquele que João e André ouviam era o ideal da vida. Por isto o seu coração teve um sobressalto, por isto foram para casa em silêncio, por isto naquela noite André abraçou sua esposa como jamais a havia abraçado, sem saber dizer nada. Tinham encontrado o ideal da vida. Não podiam exprimir-se logo deste modo, pobrezinhos. Disseram-no poucos anos depois. Desde então, foram por todo o mundo a dizê-lo: Cristo é o ideal da vida.

Que quer dizer que Cristo é o ideal da vida? É o ideal para a maneira como tratamos toda a natureza; é o ideal para a maneira como vivemos o afeto, como, portanto, concebemos, olhamos, sentimos, tratamos, vivemos a relação com a mulher e com o homem, com os pais e com os filhos; é o ideal com o qual nós nos dirigimos aos outros e vivemos as relações com os outros, isto é, com a sociedade, como conjunto e companhia de homens. Qual é a característica que este ideal infunde na maneira que temos de tratar-nos uns aos outros, de tratar tudo, desde a natureza – pretendo indicar com esta palavra tudo o que existe, porque posso tratar mal, injustamente, este microfone, como fiz antes sem me dar conta –, até o pai e a mãe? A característica está em duas palavras que têm a mesma raiz, mas são uma o princípio e a outra o fim da trajetória da ação: a primeira se chama gratidão. Por quê? Por causa daquilo que eu disse antes, de que nada existe de mais evidente neste momento, para mim e para você, do que o fato de que você não se faz por si, de que tudo é dado, existe um Outro em você que é mais você do que você mesmo, você surge de uma fonte que não é você: esta fonte é o mistério do ser. Assim, analogamente, você compreende que todas as coisas são feitas por um Outro. Você, como homem, é a consciência da natureza: o eu é o nível em que a natureza toma consciência de si mesma. Assim como eu tomo consciência de que não me faço por mim, da mesma forma toda a natureza não se faz por si, é dada: dado, dom. Por isso, grato: a gratidão como fundamento de toda ação, de toda atitude, como premissa. O que esta gratidão introduz em todas as ações? Introduz um aspecto, uma nuança, uma aura de gratuidade; gratuidade pura, aquela da qual falava Ada Negri, como tantas vezes recordamos, em uma incomparável poesia sua, que exprime isto de um modo que eu não sei dizer melhor: "Tu amas, e não pensas ser amada: a cada/ flor que desabrocha ou fruto que amadurece/ ou criança que nasce, ao Deus dos campos e das estirpes dás graças no coração". Você ama, você gosta da flor não porque a cheira, mas porque existe, olha para o fruto que amadurece não porque o morde mas porque existe. Olha para a criança não porque é sua, mas porque existe. Esta é a pureza absoluta. Por favor, façam um esforço para identificar-se com este caráter absoluto de pureza. Uma nuança desta pureza, desta gratuidade entra em nós mesmo sem que nos demos conta dela, quase naturalmente entra em toda ação nossa. Porque se qualquer atitude minha para com você não tem dentro esta gratuidade, uma nuança desta gratuidade, é feia, é uma relação decaída, caduca e decaída, é um relacionamento no início da sua ruína, do seu desmanchar-se. Só esta pureza de gratuidade permite que nada mais se desfaça, não deixa nada mais se desmanchar, mantém todas as coisas que eram do passado, nascidas no passado, as mantém no presente; de tal forma que o meu sujeito no presente se enriquece de tudo o que fez ontem e anteontem, e nada é inútil, como dizia Andrea dois dias antes de morrer.
Por isto, o resultado do seguir Jesus como ideal da vida, da vida como vocação, o resultado – como diz o Evangelho – é o cêntuplo (Mc 10, 29-30): as coisas se tornam mais potentes, torna-se mais potente o meu relacionamento com você, é como se tivéssemos nascido juntos; eu não o conhecia, até poucos anos atrás eu não o conhecia, e não tenho nenhum tipo de interesse, no sentido de levar algo em troca, de um ganho, nenhum, não é para levar vantagem que estamos juntos; e me sinto muito bem com você, não importa o que você pense, mas não sou seu amigo por causa disso. Assim, há uma riqueza mais potente em todos os relacionamentos, no modo de olhar para a flor, no modo de olhar para as estrelas, no modo de olhar para as plantas, para as folhas, no modo de suportar a mim mesmo, que descaradamente pretendo de vocês que fiquem aqui ainda mais cinco minutos, em todos os modos, no modo como penso nas minhas culpas de ontem: "Senhor, perdoa-me, perdoa a mim, pecador"; mas dizer isto não me frustra, não me deprime, torna-me mais verdadeiro, se não dissesse isto eu seria menos verdadeiro, porque o sou, pecador.
Desta riqueza deriva uma capacidade de fecundidade que ninguém tem; de fecundidade, isto é, de comunicação da sua própria natureza, da sua própria riqueza, da sua própria inteligência, da sua própria vontade, do seu próprio coração, do seu próprio tempo, da sua própria vida. É dizer: "Eu daria a vida por qualquer um de vocês"; qualquer um de nós por qualquer um dos outros o diria, o diz. Se não o diz é porque nunca pensou nisto, se nunca pensou nisto é porque nunca pensou dando-se conta da presença de Cristo. Se parte disto, diz: "Eu daria até a vida" – Jesus, ajuda-me, porém! É uma fecundidade no trabalho, uma paixão pelo trabalho que não é por vantagens ou por gostos ou por particulares contribuições para o sucesso da minha presença na sociedade; é amor ao trabalho como perfeição de ação, qualquer que seja o seu resultado. É uma fecundidade que é amor a dar aquilo que eu sou, a dar a mim mesmo por você, quer dizer, a dar a si mesmo pelos filhos. Amor a tudo o que entra e entrar em relação com os filhos, amor aos outros que são filhos, eles também são filhos, a todos os homens: ao povo. Uma fecundidade no trabalho, uma fecundidade diante dos filhos, uma fecundidade na vida do povo. Em suma, o ideal da vida se torna o bem dos outros, o bem para os outros: o bem para os outros, o bem de vocês, o meu próprio bem. Este é o objetivo pelo qual Deus fez o mundo: o bem de tudo, o bem. É o contrário do que diz o livro de Norberto Bobbio, um livro sobre o mal, sério e comovente, creio comovente por algumas frases, porém o desígnio de um pai é o bem do filho. O ideal da vida torna-se o bem.

***

Agora peço a vocês que estejam atentos a estes últimos cinco minutos, porque o que estou para dizer é a coisa mais aguda de tudo o que dissemos hoje, é a conseqüência mais aguda do tema de hoje. Há uma forma de vocação que decide por um caminho inopinado e inopinável, impensado e impensável na mente de qualquer um, e que se chama, desculpem se o digo logo, virgindade. É uma forma de vocação que transpassa, como a luz transpassa o vidro (a palavra "transpassa" é um pouco insubstituível), é uma forma de vocação que transpassa as urgências mais naturais, assim como se apresentam à experiência de todos. Aqueles que fazem este caminho têm as urgências naturais que todos têm: esta forma de vocação transpassa as urgências mais naturais assim como se apresentam à experiência realizando-as paradoxalmente segundo uma potencialização nova.
Neles, com esta vida, com esta forma de vocação, o trabalho se torna obediência. Porque toda pessoa vai trabalhar por vários motivos, entre os quais há também aquela nuança que se chama gratuidade: mas aqui o trabalho se torna todo gratuidade, tende a se tornar totalmente gratuidade. Por que você vai para o seu escritório de advogado, por que você vai para a sua sala de aula de professora? O dia do pagamento, ou a carreira, ou o fato de que é preciso mesmo trabalhar tornam-se realmente, com o passar do tempo, menos importantes, subsiste somente a vontade do bem para os outros: que se realize a vontade de Deus. Isto é, o trabalho se torna obediência. O que é a obediência? A obediência é fazer uma ação para afirmar um Outro. O que é a ação? A ação é o fenômeno pelo qual o eu se afirma, afirma a si mesmo, realiza a si mesmo. Para realizar a mim mesmo, a ação que eu faço não a faço por mim mesmo, mas por um Outro: esta é a obediência. A lei da ação é um Outro, é afirmar um Outro, é amor ao Verbo, é amor a Cristo. O trabalho é amor a Cristo.
Se o trabalho se torna obediência, o amor à mulher ou ao homem se exalta. Um homem que se exalta no sentido físico do termo é um homem que se ergue em toda a sua estatura, em toda a altura da sua pessoa. O amor à mulher se exalta como sinal da perfeição, do atrativo para o qual o homem é feito. Foi o que intuiu Leopardi. Houve um momento da sua vida, do qual depois decaiu, em que intuiu que o rosto da mulher era um sinal: tinha amado muitas mulheres, mas naquele momento intuiu que o que buscava não era este ou aquele rosto, mas um outro rosto, com o "R" maiúsculo, uma mulher com o "M" maiúsculo, a quem fez aquele belíssimo hino. O amor à mulher exalta-se como sinal de perfeição e de atrativo do belo, do bom, do verdadeiro e do justo, que é Cristo, porque a perfeição, a fonte do atrativo, a fonte do belo, do bem, do verdadeiro e do justo é o Verbo de Deus. Aquele que transparece, como dizia Leopardi no hino À sua mulher, em uma paisagem da natureza, ou na beleza de um sonho, ou na beleza de um rosto, é o divino que está na origem de todas as coisas: no rosto do outro – do outro por excelência para o homem que é a mulher, e vice-versa – transparece; transparece de modo inefável, que não se consegue dizer. Quem conseguiu dizê-lo melhor, na minha opinião, foi Leopardi, que não o disse, mas chegou quase a dizê-lo. Desculpem-me, para que não lhes pareçam abstratas estas coisas, leio a vocês uma carta que um ex-noivo mandou à sua própria ex-noiva. Tinham ficado juntos durante três anos. Depois de três anos ela intuiu que a sua vocação era a da virgindade e lhe disse que iria freqüentar um período de verificação. O ex-namorado escreve-lhe isto: "Querida, desejo aprisionar apenas mais algumas poucas palavras, uma vez que tudo já está guardado nos nossos corações para sempre [para sempre! Nada é eliminado]. Estou comovido, isto é, movido ao estupor por aquilo que está se realizando na sua vida, ou melhor, por quem a está realizando. É uma alegria que conduzirá para mim com o tempo o destino de bem que a levou consigo. Até a dor que me assalta, algumas vezes mais forte do que outras, pelo que lhe fiz em certos momentos do nosso encontro, é assumida por uma misericórdia que a torna mais verdadeira. Permanece um mistério, que porém já se revela. Toda a plenitude do relacionamento entre nós, daquele pedaço de história que caminhamos juntos, é explicado melhor deste modo. Agrada-me acreditar que cada instante que você gastou comigo, até diante da minha incapacidade, não seja perdido [para sempre!] e tenha servido, isto é, tenha sido usado por Cristo para levá-la até Ele. Peço-lhe perdão, ou melhor, que doe a mim a sua mendicância, na certeza de que você deu amor maior à minha pessoa pertencendo assim aos Memores Domini, isto é, que me quis bem muito mais assim do que se tivesse casado comigo. Agradeço-lhe por esta sua espera e peço a Nossa Senhora para que existam sempre em volta de você rostos de esperança como você tem agora, para protegê-la e amá-la em cada passo seu. Dei-lhe de presente um ícone de Cristo, sinal da Sua encarnação [um conceito que a ortodoxia tem bem claro], para que conforte-a sempre a presença dEle e para que você se lembre de rezar por mim, pela tarefa que agora me foi confiada de amar Elisabetta, pelos meus familiares e pelos nossos amigos, mas sobretudo para que você não abandone aquele abraço do Espírito Santo que é o Movimento e a sua misteriosa sentinela".
Ele entendeu. Vocês entenderam que ele entendeu? O trabalho se torna obediência, o amor à mulher se torna sinal supremo de perfeição do atrativo que ela exerce sobre nós, da felicidade que nos espera; e o povo, ao invés de sujeito de uma história humana cheia de conflitos e de lutas, torna-se história de pessoas, de um fluxo, de um rio de consciências que lentamente se iluminam cedendo ao menos na morte à glória de Cristo.
Isto se chama caridade, estas mudanças se chamam caridade. O trabalho que se torna obediência se chama caridade. O amor à mulher que se torna sinal da perfeição final, da beleza final, se chama caridade. E o povo que se torna história de Cristo, reino de Cristo, glória de Cristo, é caridade. Porque a caridade é olhar para a presença, para toda presença, com a alma tomada pela paixão por Cristo, pela ternura por Cristo. Há uma letícia e uma alegria que são possíveis somente nestas condições. Letícia e alegria são duas palavras que se não fosse isso deveriam ser arrancadas do vocabulário humano, porque não existe a possibilidade de letícia e de alegria de outra forma: existe o contentamento, a satisfação, tudo o que vocês quiserem, mas a letícia não existe, porque a letícia exige a gratuidade absoluta que é possível somente com a presença do divino, com a antecipação da felicidade, e a alegria é a sua explosão momentânea, quando Deus quer, para sustentar o coração de uma pessoa ou de um povo em momentos educativamente significativos.
Porém, me desculpem, que o trabalho se torne obediência, que o amor à mulher se torne sinal, como intuiu Leopardi, que o povo não seja um emaranhado de pessoas, mas o reino de Cristo que avança, esta caridade é a lei de todos, não dos virgens. É a lei de todos, sim, é a lei de todos. A virgindade é a forma visível de vida que chama a atenção de todos para o mesmo ideal de todos, para todos, que é Cristo, a única coisa pela qual vale a pena viver e morrer, trabalhar, amar a mulher, educar os filhos, dirigir e ajudar um povo. É para todos, mas alguns são chamados ao sacrifício da virgindade justamente para que estejam, entre todos, presentes, para chamar a atenção para este ideal que é para todos. Vocês deveriam ter estudado no terceiro volume (tomo II) da Escola de Comunidade, se chegaram lá, o conceito de milagre. O milagre é um acontecimento – como se define ali – que inexoravelmente remete a Deus, um fenômeno que inevitavelmente faz você pensar em Deus. O milagre dos milagres, maior do que todos os milagres de Lourdes, maior do que todos os milagres de qualquer santuário do mundo, o milagre dos milagres, quer dizer, o fenômeno que inexoravelmente obriga você a pensar em Jesus, é uma bela menina de vinte anos que abraça a virgindade.
A Igreja é o lugar deste caminho e de todos os influxos operativos, fecundos, florescentes sobre as pessoas que caminham juntas, na companhia que Deus cria, em que todos os caminhos estão juntos. A Igreja é o lugar em que todas estas pessoas se enriquecem, doam-se e enriquecem-se com o dom do outro. A Igreja é mesmo um lugar comovente de humanidade, é o lugar da humanidade, onde a humanidade cresce, incrementa-se, expulsando continuamente aquilo que de espúrio entra nela, porque somos homens; mas a Igreja é humana, por isso os homens são humanos quando expulsam o espúrio e amam o puro. A Igreja é uma coisa realmente comovente.
A luta com o niilismo, contra o niilismo, é esta comoção vivida.

(traduzido por Durval Cordas)