“Se não fosse teu, meu Cristo, me sentiria criatura finita” (São Gregório Nazianzeno)

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Notas da colocação de Luigi Giussani na Assembléia Internacional de Responsáveis de Comunhão e Libertação.
La Thuile, 17 de agosto de 1997



I

Influência da Igreja na sociedade:
o drama dos tempos modernos.
O prevalecimento da ética sobre a ontologia


As circunstâncias pelas quais Deus nos faz passar são fator essencial da nossa vocação, da missão à qual Ele nos chama; não são um fator secundário. Se o cristianismo é o anúncio do fato de que o Mistério se encarnou em um homem, a circunstância na qual a pessoa toma posição a respeito disto diante de todo o mundo é importante para a própria definição do testemunho. Aliás, da maneira como esta posição é obtida em nós mesmos é possível entender se e quando é vivido o pertencer, esse pertencer de que fala o quarto capítulo da Escola de Comunidade1 , que é raiz profunda de toda a expressão cultural. Como vocês meditaram, e nós sempre sublinhamos entre nós, uma expressão cultural nasce de um pertencer, brota daquilo ao qual se pertence. Não digo que tenhamos consciência disso também teoricamente; podemos não ter a consciência adequada disso, mas de fato é esta coisa à qual se pertence, é esta coisa à qual nós pertencemos que é decisiva para a nossa expressão cultural.
Como lembrei nos Exercícios da Fraternidade, a realidade da Igreja, como acontecimento cotidiano em que se torna presente o Acontecimento original, coloca-se hoje diante do mundo, não esquecendo (pelo amor de Deus!), mas considerando como suposto, dando por óbvio – ao menos metodologicamente – o conteúdo dogmático para o qual apontamos agora, a ontologia da questão, ou seja, simplesmente a fé, o acontecimento da fé.
Gostaria de fazer uma comparação. Consideremos o conceito de Deus criador. Certamente, é no cristianismo que a ideia fundamental da Bíblia, a ideia do Deus criador, do inefável infinito onipotente Deus, é ecoada, retomada, com uma força e uma vontade de que influencie e determine a vida em todos os seus pormenores, como não acontece em nenhuma outra parte do mundo. A maneira de conceber este Deus é realmente a afirmação do Mistério. Não a afirmação do Mistério como uma realidade e tão somente isto, mas do Mistério como uma realidade que está absolutamente além de todas as nossas medidas, que, porém, tem incidência nos mínimos detalhes de tudo o que o homem faz: qualquer relação que o homem estipule – para construir ou para destruir – com as coisas e com as pessoas é determinada em primeiro lugar pela maneira como a relação com o Mistério é concebida e sentida e, portanto, pela maneira como se torna operante na relação com tudo.
Estas afirmações pertencem à ontologia da questão: Deus criou a realidade do cosmo. Mas a religiosidade, que se baseia nesta explicitação da consciência humana à qual a investigação ou a intuição da razão nos faz chegar, normalmente (estatisticamente, posso até dizer) parece-me realizar-se, traduzir-se no cotidiano justamente como o delinear-se de uma maneira de viver no esforço de mudança, de adaptação, de conversão, sobretudo de aceitação, de disponibilidade a qualquer circunstância na qual Deus exprima a sua vontade. Os dez mandamentos representam uma expressão genial que a Bíblia dá a toda uma reflexão e uma leitura detalhada da relação que o homem estabelece com a realidade, consigo mesmo e com a realidade, agindo com a consciência desta Presença, da grande presença do Mistério. Esta é a genialidade da Bíblia, que tornou possível à humanidade dar-se conta desta suprema e concreta verdade; concreta no sentido de que envolve toda a práxis do humano (os dez mandamentos). Mas a pregação, de fato, mesmo na Igreja, normalmente, 90 vezes em 100, detém-se sobre os chamados de atenção éticos, não certamente sobre observações psicológicas e estéticas, que derivam de considerações de valor ontológico. A maneira como todos falam de Deus é “deverista” mais que, ou antes que, atraente; quando falam dEle, consciente ou inconscientemente, é de maneira “deverista”: será estetizante em momentos excepcionais ou com temperamentos excepcionais. Na Igreja, esta esteticidade é concretizada, é encarnada na realidade sacramental-litúrgica, e desta forma é retomada constantemente para o povo cristão. Lemos a respeito disto, em um artigo de Adriano Dell’Asta, o belíssimo relato dos primeiros homens que, enviados pelo Rei Vladimir, haviam-se aproximado dos monges cristãos; convidados pelos monges a entrar e a assistir a uma liturgia comum (com cantos, etc.), saíram estupefactos e, de volta, disseram ao Rei: “E nós não sabíamos se nos encontrávamos no céu ou na terra, pois na terra não se vê nenhum espetáculo com uma tal beleza” 2 .
Mas teologia e catequética, teólogos e catequistas se posicionaram em defesa da ética, dando a princípio por óbvia a evidência do conteúdo dogmático. Ou seja, até mesmo na vida da Igreja nestes últimos séculos foi dado por óbvio o conteúdo dogmático, quer dizer, o conteúdo que antes citamos e que sempre citamos como o objeto da nossa mensagem, o objeto que define a nossa mensagem: o Credo.
Nos primeiros séculos, a comunicação da concepção do homem, da sociedade e da história, portanto da experiência cristã, aconteceu através de “fatos”, estruturas eclesiais, estruturas gerais, fundamentais: dioceses e comunidades locais; nexos entre várias dioceses, num relacionamento último, realizado de várias maneiras, com o Bispo de Roma. Por isto, o Estado, ou seja, o poder na sociedade, como quer que fosse identificado, qualquer tipo de método usasse, concebia a sua relação com a Igreja como entre duas instituições, entre duas autoridades.
Mas o Acontecimento é igualmente Acontecimento presente, para a Igreja, tranquilamente até a Idade Média. O Acontecimento é igualmente acontecimento presente. Os acontecimentos eram um Fato, como foi um fato o Acontecimento primeiro, original, eram fatos que faziam reviver o Acontecimento original; fatos que deveriam ser lidos com o coração, ou seja, que deveriam ser lidos com a razão (aqui nasce o senso religioso cristão); que deveriam ser lidos com o coração para reconhecê-Lo, para buscá-Lo como realidade presente. Do Fato original, do Acontecimento original derivou, assim, a Tradição. A presença do Acontecimento original, o Acontecimento original que se concretiza e age hoje, que se tornou presente todos os dias do tempo até agora, chama-se Tradição: esta, portanto, constitui a repetição do Acontecimento primitivo, do Acontecimento original todos os dias. E o seu instrumento é a Memória.
Mas a influência racionalista tornou o Estado autárquico, autocrático, confirmou a autofundamentação absoluta do Estado: o Estado é um poder que vem para as mãos daqueles que o tomam para si; identifica-se antes de mais nada como poder. Mas esta é a “lógica” que nasce da afirmação da razão como medida das coisas: o homem medida do ser. Assim, a ideologia substituiu evidentemente toda a modalidade de existência do fato religioso cristão. Não mais uma passagem, dia após dia, da presença renascida – que tem um renascimento todos os dias –, do Fato original; a ideologia é, ao contrário, constituída por um a priori abstrato, projetado sobre o mundo e portanto sobre a existência, que é hospedado e se nutre na cabeça do homem, na sua mente. Mais precisamente ainda, a realidade é concebida não como a realização continuamente nova do antigo, do originário, do primeiro Acontecimento que se deu. A realidade é concebida de acordo com a postura com a qual a pessoa está diante do tempo e da realidade. Ou seja, o a priori é determinado pela postura com a qual a pessoa está diante da realidade. Assim, a pessoa pode sentir uma hostilidade para com a realidade, uma dificuldade como primeiro aspecto diante da realidade, ou uma indiferença ao que é real, ou uma incapacidade de dominá-lo; ou, ao contrário, pode viver uma vontade de domínio, uma sede de posse, de ganho, ou de gosto imediato, ou então é uma pretensão de determinar em larga escala a realidade da qual participa. Cada uma destas posturas torna-se o ponto de vista predeterminado a partir do qual conceber a realidade. Qualquer nível de postura que o homem assume diante da realidade, qualquer rosto com o qual olha para a realidade, este rosto interior – que se nutre do temperamento e do caráter do qual um homem é dotado estruturalmente desde o nascimento – é alimentado como a priori, como ponto de vista predeterminado pela postura com a qual a pessoa vive. Normalmente – aliás, sempre – a pessoa não se dá conta completamente disso, não tem consciência disso ou, ao menos, não tem consciência crítica completa de como nasce esta postura e de que impacto ela tem sobre a maneira de ver, de falar, de julgar e de operar com o real. A concepção é determinada pela preferência que domina o estado de espírito diante da existência: a concepção do real é predeterminada eticamente por um comportamento; não pela razão, mas por um comportamento com base no qual se usa a razão.
Assim, o critério não é mais a Tradição, mas o desenvolvimento lógico de uma ideia, de uma percepção; não a Tradição – Memória! –, mas a lógica de desenvolvimento de um a priori, ou seja, o filosofar abstrato. Todo o universo humano, concretamente, tem diante da realidade tantos streams, tantas correntes quantos são os grupos, ou, por outro lado, as “tradições” individuais (no sentido biológico, étnico, do termo) às quais “pertence”.
Não, portanto, a tradição de um acontecimento vivido, ou seja, uma memória vivida de fatos, mas um desenvolvimento lógico de um a priori determinado em última instância pela postura que moralmente, eticamente, um homem assume diante do tempo e da realidade.
Fica assim descoberto e evidenciado o prevalecimento da ética, na medida em que sublinha os valores mais elementares. Ou mais oportunos: os valores comuns a todos, dizia Dewey, o pai e mestre reconhecido de toda a educação escolar americana – quando completou oitenta anos de idade, dedicaram a ele uma festa nacional de dois dias –. E dizia isto abertamente: temos de abandonar a busca, ou a pretensão da busca de um absoluto; a busca de pontos de vista e de afirmações que podem ser facilmente compreendidos por todos é a única maneira que nos resta de obter uma certa ordem e uma certa paz3 . Como postura, é exatamente o contrário daquilo que a Igreja afirma no mundo: para ela, com efeito, a ética tem como fonte a verdade última, Deus, o Mistério como fonte de tudo o que “é”, enquanto “é” (a verdade ontológica). Afirma-se, assim, o prevalecimento da ética, na medida em que esta sublinha os valores mais elementares. Se o objetivo a que mirava Dewey pode ser compreensível e até patético, a posição que ele exprime nada mais é que a fonte de um relativismo, exige um relativismo total. Portanto, neste prevalecimento da ética, nesta acentuação dos valores mais elementares, o Acontecimento original não tem mais espaço, a não ser como imagem à qual se referir, como um ponto de comparação, como um interessante mestre do passado.
Mas há uma observação importante. O indivíduo não pode demonstrar uma capacidade de enfrentar a totalidade das coisas, a totalidade da existência. Este é um objetivo que parece poder e dever ser alcançado através da organização de um povo, uma organização de povo ideologicamente criada, feita, encontrada, pensada como afirmação de uma lógica que nasce de um conjunto de situações para afirmar interesses naturalmente parciais. Ou seja, a organização é favorecida, criada, por personalidades ou por forças parciais que podem conquistar o poder ou tornar poder teorizado o que antes era uma herança familiar.
Ora, até a “aurora incompleta do Renascimento” 4 – como dizia De Lubac –, a tradição cristã tecia a trama da mentalidade comum. O exemplo mais bonito nos vem da frase de Michelangelo que usamos como inscrição do nosso cartaz de Natal: “Que posso eu, ó Senhor, se não vens a mim, com a costumeira inefável cortesia?” 5 . Michelangelo não era medieval, mas, qualquer que fosse a filosofia que tinha, o seu coração estava ainda cheio de gosto e comoção pelo valor da experiência cristã tradicional. No início, no crepúsculo matutino do Humanismo-Renascimento, a figura de Petrarca traz em si a mesma impressionante exemplificação quando, no Hino à Virgem, com o qual se fecha o Cancioneiro, ele termina com esta estrofe que tantas vezes citei: “O dia se apressa, e [já] não pode estar longe,/ assim corre e voa o tempo,/ ó Virgem única e sozinha, e fere o coração a consciência ou a morte./ Recomenda-me ao teu Filho, verdadeiro/ homem e verdadeiro Deus,/ que acolha o meu último suspiro em paz” 6 . Esta última palavra é introduzida por um suspiro que identifica a passagem, que já começou, da clareza da “memória” cristã para uma concepção mais aberta para o antigo, para a antiga cultura greco-latina, e por isso para uma sabedoria que se baseia na razão, no instinto natural e, portanto identifica uma trajetória ética e um ideal da vida concreta bem diferente do que Michelangelo ainda documenta ter no coração.
Assim, o nascente Estado moderno percebeu desde o início que era preciso criar uma mentalidade diferente da mentalidade da Igreja – uma nova “hegemonia”, como depois desenvolveu mais brilhantemente do que todos os outros Gramsci –.
Para tanto, o Estado procurou entrar diretamente no processo de educação e na escola e, sobretudo, sentindo a Igreja como refratária a si, procurou chegar até institutos sociais, funções sociais e associações que encarnavam o conteúdo da mensagem da Igreja ou que veiculavam o conteúdo próprio da mensagem da Igreja.
Neste sentido, a postura de grande parte do episcopado, historicamente, sofreu uma mudança: de uma clareza e persuasividade ao gritar o valor da mensagem cristã (função que foi preservada em última instância pelo Papa), para a tentativa, especialmente após o século XVIII, de defender a Igreja sublinhando a ética ao invés da ontologia, procurando, no fundo, no fundo, entrar em acordo com o Estado. Esta postura do episcopado tinha um ponto de partida, uma raiz boa, de amor à afirmação cristã, de busca de tranquilidade social e de liberdade para a Igreja. Diante do enrijecimento do Estado e da sociedade, especialmente com a Revolução Francesa – mas também muito antes dela –, todas as artérias e as veias da humanidade estavam já carregadas de aversão à fé de uma religião revelada, à impossível concepção de um Deus que se faz homem, que se identifica com uma criatura. A acentuação de valores comuns, de virtudes que a vida civil também estimava e respeitava como postura, como lei, tornava mais fácil para a Igreja entrar em acordo com uma sociedade com tantas mudanças de influências e de temáticas.
A comunicação que a Igreja faz da sua mensagem foi assim se alterando, tornando-se fidelidade formal ao dogma enquanto portador de uma ontologia nova. A comunicação da mensagem e do conteúdo da ontologia nova – ou seja, o anúncio do Deus que se fez homem, o anúncio de que este acontecimento, acontecimento no sentido histórico do termo, continua na história porque aquele homem ressuscitou (“Estarei convosco todos os dias até o fim do mundo” 7 , dizia Jesus) – e a fidelidade ao dogma como portador desta ontologia diversa, inconcebível, impensável para a razão do homem, tornam-se cada vez mais formais. Estou falando especialmente das consequências da Revolução Francesa, do período que se seguiu à Revolução Francesa: o século XIX, mas sobretudo o século XX, no qual as influências da vida social, da mentalidade comum apareceram mais claras e decisivas. Como conteúdo da mensagem, todo o privilégio foi dado cada vez mais aos valores morais, sempre mais concebidos com base nas visões da cultura dominante. Pois, com justiça, os homens de Igreja sentiam-se todos transpassados de temor e tremor diante da incompreensão que a mentalidade comum, a forma cultural que determinava a mentalidade comum vinha desenvolvendo contra a visão cristã. Por isso, lançaram suas forças naquilo que os outros podiam entender, que até os adversários tinham de admitir: as virtudes fundamentais, a ética fundamental. Mas, da mesma maneira como se considerou e tratou a mentalidade dominante, os valores morais também foram concebidos, mais ou menos lentamente, sob a influência do poder vigente, o qual, armado dos jornais, dos meios de comunicação de massa, “sugerindo” a ruína a determinadas instituições e formas sociais, socialmente imponentes, encaminhava-se para a hegemonia: o poder do Estado evoluía para a hegemonia total. Na melhor das hipóteses, portanto, a mensagem ética da Igreja foi caracterizada pela fidelidade aos dez mandamentos, mas dando privilégio a um ou a outro deles. O privilégio que se dava a um ou a outro mandamento era produzido e determinado por cada época. Eu tenho 75 anos, mas creio que possa ser compreendido também por vocês o que a mim parece evidente: até uma certa idade, enquanto não comecei a fazer o Movimento, o que me dominou, na pregação sempre voluntariamente seguida, utilizada e obedecida, eram dois mandamentos: o sexto e o nono. Vinte anos depois, trinta anos, quarenta anos depois, a cultura dominante (tão dominante que até a teologia católica ficou repleta dela) e a sensibilidade que se exprimiu em 1968, por um lado, para nós na Itália, e claramente em 1989, com a queda do muro de Berlim, sublinhavam e sublinham concretamente o quinto e o sétimo mandamentos, e esquecem, ou fazem passar por uma metamorfose, até o primeiro e segundo e o décimo. Assim, hoje, sob o império da influência do Estado e, portanto, da cultura que promove a educação do cidadão, ouvimos os padres falarem muito mais da moral como “respeitar o semáforo” do que da moral como dizer: “Jesus, Jesus, ajuda-me”.
A busca contínua de um entendimento entre as duas instituições, Igreja e Estado, acabou por caracterizar também o nascimento e o desenvolvimento do associacionismo católico, este também inspirado ou aceito pela hierarquia, que – de fato – abriu através do tempo toda a passagem possível para a vitória do poder estatal, pois a cultura dominante é sempre decidida pelo poder, sempre recebe a sua forma do poder (assim, por exemplo, muitas formas de “associacionismo católico” conceberam e puseram em prática uma “escolha religiosa”, separando o problema religioso da existência da história, chegando a separar a fé até da obediência ao Papa).
Ora, o Estado, vendo-se diante de um espaço tão livre de resistência à sua ação, tomou conta dele rapidamente, apossando-se dos instrumentos necessários para obter os seus resultados, ou seja, os meios de comunicação de massa, as escolas, os jornais. Bem, de um certo ponto de vista, não imediatamente a escola: primeiramente, a imprensa e a televisão, por último a escola. O poder do Estado, com efeito, por causa da arrogância liberal e da confiança na própria riqueza e no próprio poder por parte dos ricos, no início se interessou pela escola com muita ingenuidade, com uma certa liberdade: deixava uma certa liberdade, mais tolerada que afirmada como princípio. Então o problema penetrou na responsabilidade da família. Quem tinha uma paixão pela educação dada de forma cristã se concentrou na família, na preocupação própria da família. Mas hoje nem isto é mais possível. A pretendida “reforma escolar” do Ministro da Educação na Itália torna-se o primeiro caso em que o ataque a qualquer coisa que limite o poder do Estado na educação adquire proporções máximas: qualquer experiência educativa que pretenda intervir vindo de fora desse projeto deve ser eliminada. E o que torna atroz este momento é que um projeto como este pode ser pensado e realizado pelo fato de que a mentalidade de todas as pessoas, e mesmo de grande parte dos eclesiásticos, está em conformidade, está de acordo com quem o concebeu.
Pretendi assim indicar, ainda que rapidamente e por menções breves, a relevância da circunstância em que Deus nos coloca para viver a missão: a fé que nos deu e portanto a missão inerente a ela (pois o conteúdo da fé é reconhecê-Lo, chegando até a possibilidade de anunciá-Lo ao mundo, “reconhecer” enquanto dom que Deus nos dá para nos tornar capazes de anunciá-Lo ao mundo); e, por outro lado, indiquei também o mal-estar que aqueles que vivem a missão com paixão têm de viver hoje dramaticamente: sem se escandalizar, têm de viver dramaticamente a aparente incompreensão ou insensibilidade que grande parte do ambiente católico oficial dirigem a quem entra na luta com audácia e com coragem.


II

Tudo recomeça do eu


É um momento trágico – talvez, mais que trágico, seria preciso dizer dramático –: está em jogo a maior coisa que a história do homem já acolheu no seu seio, que já penetrou na história do homem, que tem como fim a salvação de todos os homens e, portanto, não pode deixar de estar na raiz também de uma esperança de sociedade mais equilibrada e tranquila, mais carregada de sentido da pessoa e de comportamento e decisões razoáveis, de capacidade de perdão e de misericórdia, sem a qual só se pode viver mal (e disto, infelizmente, nós somos testemunhas nestes anos).
Neste momento, digamos trágico, o que resta, o que pode restar como fonte de liberdade real? De “liberdade real”, pois aquilo contra o qual vai este ultrapoder do poder, o ultrapoder inerente a todo poder, em qualquer campo, é aquilo que Deus criou como característica do sujeito criado capaz de reconhecê-Lo como o “Deus que é tudo em tudo” 8 . O que pode restar como fonte de liberdade real? O indivíduo, a pessoa.
Entendi isto de maneira nova em junho do ano passado, quando, solicitado pelo meu limite físico, vi-me a repetir a frase do Salmo 8: “Que é o homem, para dele te lembrares, o filho do homem, para que te importes com ele?” 9 . O que é? Se o homem fosse só matéria, segundo qualquer acepção filosófica hoje dominante, se fosse só matéria, tudo acabaria em corrupção, tudo! Não há nenhuma outra possibilidade. Dante, escrevendo a Divina Comédia, e Beethoven, compondo a Nona Sinfonia, acabariam em pó e depois em nada.
Eu dizia a mim mesmo tudo isto, dizia-o como se fosse a primeira vez que me colocasse o problema da alma e do corpo. E me perguntei: “Mas o que é, então, esta minha realidade? Por que eu não me resigno, por que sinto indevida, não verdadeira, esta eliminação de algo, esta definição da substância de algo não segundo todos os seus fatores, aliás, segundo os fatores mais nefastos da existência da própria coisa?”. Corpus quod corrumpitur aggravat animam10 , diz a Bíblia: o corpo que se corrompe pesa sobre a alma. Mas sobretudo dizia a mim mesmo: “Não é possível que eu acabe assim! Que há além desta fisicidade corruptível? No fundo, o que é esta minha – minha! – realidade? Que há nela pelo qual eu nunca aceitaria que Dante e Beethoven, na sua produção, se tornassem pó e depois nada?”. O eu. O eu!
Mas onde se encontra? Se fosse possível fazer uma análise científica de todo o homem, de todas as suas células, uma a uma, e colocá-las aí à vista para os visitantes, o eu não seria encontrado. Onde está? A pergunta quantitativa nasce e esgota o direito que nos dá a experiência. Onde se encontra o eu? Se fosse possível fazer uma análise científica de todas as células, o eu não seria encontrado. E, de fato, o eu é relação com o Infinito, com o Ser, e só. Não há mais nada a dizer: o eu é esta superação de tudo o que o “atesta”, no sentido de que “colabora com ele”. É como se o eu tomasse nas mãos a infinita variedade das coisas particulares e as refundisse segundo uma potência – a potência da exigência do Infinito pela qual o eu é totalmente formado, pela qual é definido.
O problema, portanto, é o eu, a pessoa. Isto não está em contradição com a associação ou com o tipo de pessoas nas quais confiar para ter força. Mas é que a força da associação, a força da Igreja, a força da convivência civil, esta força é a pessoa. E a força da pessoa é a consciência do que ela é e do ideal pelo qual deve usar aquilo que ela é e tudo o que com ela está, tudo aquilo com o qual se depara. Com efeito, o eu é, se opera: consciência do ser e consciência do operar.
É um paradoxo, no máximo, não uma contradição. Pois não se pode eliminar um dos dois termos esgotando o sentido, o significado, o valor do outro. É paradoxal, pois não se entende como pode subsistir esta relação com o Infinito, esta exigência de relação com o Infinito: exigência de amor, de verdade, de beleza, de justiça, de felicidade. Mas não há homem que não vibre diante deste chamado de atenção. Talvez seja preciso muito tempo para ultrapassar todas as sedimentações, mas estas exigências são inegáveis, são o “coração” do homem, segundo a Bíblia e segundo o que sempre dissemos.
A força da associação, a força da Igreja, a força da convivência civil é a pessoa; e a força da pessoa é a consciência do que ela é e do ideal pelo qual deve usar o que é. É, se opera: consciência do ser e consciência do operar.

a) O eu como liberdade
Falamos, então, da liberdade como última Thule11 de um olhar para a essencialidade do eu. Especialmente nestes dias, tenho pensado que isto explica por que o nosso movimento cresceu sem nenhum programa, sem nenhum projeto e sem nenhuma pretensão: cresceu do nada. O último pensamento era que na semana seguinte se pudesse estar ainda vivos, que existíssemos ainda. Nascemos com esta, não digo humildade, nascemos com este senso realista do pouco que somos. Quando um professor disse de nós, recentemente, em uma Comissão Parlamentar italiana: “Seria preciso eliminá-los todos”, fez-me lembrar do que eu ouvi em 1975. Toca o telefone, estávamos em Milão, na via Ariosto, levanto o telefone do gancho e ouço duas pessoas que já estão falando, fico quieto e ouço uma delas dizer: “Estes rapazes, estes de GS, como dizem, seria preciso matá-los todos!”. 1975, 1997: é exatamente a mesma coisa! E, talvez, aquele que falou naquela época e o indivíduo que fala hoje sejam “democráticos”, pertencentes a partidos democráticos, daquela época e de hoje. Um partido democrático tolera: a “tolerância” é fundamental para um partido democrático, e sobretudo o “diálogo”, como se dizia há trinta anos. Nós poderíamos ser os únicos a serem perseguidos, pois todo o resto pode ser homologado pelo Estado como fonte de poder. Qualquer concepção pode ser homologada pelo Estado, salvo a concepção do homem cristão. É a concepção do homem que é diferente de todas as outras: o homem é a sua liberdade. Por isso Gramsci dizia que o poder quer de qualquer jeito estar no poder; o problema do poder é como permanecer no poder e hegemonizar cada vez mais toda a sociedade.
É a concepção do homem que é diferente de todas as outras: o homem é a sua liberdade. Só nós vemos a liberdade como essência do homem; não “nós cristãos”, mas “nós”, filhos da Igreja.
A pretensão do Estado, no momento em que caíram por terra todos os “ismos”, traz à luz do dia a concepção dominante, que no fundo é afirmação do carpe diem: viva o hoje, agarre o que lhe podem dar as circunstâncias. O carpe diem é afirmado como ideal de vida, tanto pelo jovem viveur quanto pelo grande senador vitalício, filósofo e escritor: são carpe diem bem diferentes como conteúdo, mas a fórmula pode ser utilizada para ambos.
Quando é que a vida como vocação, como ideal, supera e, portanto, despedaça a inexorável limitação do carpe diem? Quando a vida pode ser concebida, é concebida, é reconhecida como concebida por um outro fator no qual está o verdadeiro poder – quando a vida tem um nexo com este fator supremo, quando é concebida como reconhecimento deste fator, quando pode ser concebida como dominada, determinada, governada, possuída por um outro fator. Um outro fator. Até certo ponto, não sabemos o que dizer, a não ser usando estas palavras aproximativas. O reconhecimento deste fator supremo, que está além e é outro, tão “outro” a ponto de poder ser identificado como algo “além” do que pode ser adequadamente experimentado pelo homem, não diz respeito ao Estado: o reconhecimento disto diz respeito ao eu. A liberdade é reconhecer que somos de um Outro.
A única maneira que o homem tem de participar do Deus, do Ser, é reconhecer que “tudo o que é” é o Outro, um Outro que está Presente. Como eu disse em Rímini, nos Exercícios da Fraternidade, a liberdade é a grande questão da relação entre o Ser, Deus, que é “tudo em tudo” 12 , e a criatura, o ser “participado”. O grande problema é o eu como liberdade. A liberdade é a grande questão, aqui está o verdadeiro mistério. O resto a pessoa pode não entender, mas para a razão, na sua abertura original, não sufocada pelo presunçoso preconceito, é evidente, é claro que Deus é tudo. Se Deus é Mistério, tudo é Mistério. Mas há algo que se impõe como uma realidade que escapa a Deus: a liberdade do homem. Ao Ser como tal não se pode acrescentar nada, nem tirar nada, mas a liberdade parece subtrair alguma coisa ao Mistério, ao mistério do Ser, a Deus. E pensar que foi Deus que criou a liberdade! Esta é a coisa mais fascinante que meditamos em Rímini. “Criada” quer dizer que Deus fez a sua criatura participar de Si, concebeu a sua criatura como capacidade de relacionamento com Ele, quis ser reconhecido por uma criatura. Isto é totalmente abrangido pelo conceito de liberdade que Ele nos deu. Assim, se o Ser é tudo, a liberdade é reconhecer que Deus é tudo. E a liberdade é a vertigem do eu. E é um amor, não uma escolha; a escolha é uma especificação, uma condensação provisória e passageira, a se realizar, da liberdade. A liberdade é a vertigem do eu.

b) O eu como amizade original
O eu humano, feito à imagem e semelhança de Deus, reflete originariamente o mistério do Ser justamente no dinamismo da liberdade, cuja lei será o amor. E o dinamismo em que se dá este amor só poderá ser indicado e definido por uma palavra: amizade. Se Deus me dá a vida, se o Criador me dá o ser, aceitar isto é a forma substancial da amizade, da qual deriva a capacidade de estabelecer todos os outros laços, pois, deste ponto de vista, todos os outros laços são verdadeiros se são, de maneira hierárquica, amizade. Por isso, o eu se define num devir justo, na justiça do seu caminho como devir, se a forma fundamental da amizade, se o momento fundamental da amizade é afirmado, é reconhecido, torna-se consciente, é reconhecido conscientemente. A primeira amizade é a criatura que aceita que Deus a tenha criado, é o aceitar-se enquanto criados, exatamente como criados. Assim, em um Tu desabrocha o eu, irrefreável, indestrutível, imortal. Pois o Tu é a palavra que está no vértice da relação entre o eu criado, entre o ser criado, o ser participado e o Ser como insondável mistério reconhecido, aceito, ao qual estou disponível, no qual qualquer coisa que for permitida ou que se tenha deixado acontecer na minha vida tem um sentido positivo, que paradoxalmente pode ser afirmado até com a morte.
A maior tentação, psicologicamente falando a mais difundida, em qualquer um, em qualquer nível, é a de Jeremias e de Jó: “Que eu jamais tivesse nascido!” 13 . Mas é o contrário! Quando velha, a pessoa entende até o que nunca havia entendido, ou seja, torna-se mais jovem: entende que existir é um bem em si, por uma evidência imediata natural, como para uma criança. A não-aceitação é ser apenas “contra” e tão somente isto, por isso é violência; toda a violência tem esta raiz, originalmente. A não-aceitação é a introdução – no gesto de Deus como dado, como dom, que dá a vida como dom –, é a introdução de uma violência no gesto de Deus, é a intromissão de um corpo estranho, implica o reconhecimento de um corpo estranho, de um fator estranho à experiência, ou seja, à vinda à tona daquilo que se ama, daquilo que somos. Não nos amamos porque pretendemos reconhecer como fator que determina o significado da nossa vida algo que se introduz, que é introduzido de fora de uma reflexão sobre a experiência, um corpo estranho, um fator estranho à experiência, à vinda à tona daquilo que somos. Pois o que somos é feito de reconhecimento e de aceitação. É claro, como dizia São Tiago, que até os demônios crêem em Deus, mas o temem e tão somente isto14 . Até quem é contra Deus, a ponto de negar a bondade da criação que existe n’Ele, reconhece que Deus é tudo em tudo; caso contrário não é Deus, pois o Ser é tudo de tudo o que “é”, em tudo o que “é”.


III

O permanecer da liberdade:
o Acontecimento de um encontro


Mas como o eu pode permanecer como liberdade e amizade com o Ser, sem ceder à presunção da sua medida e à desilusão desesperada? Como o eu pode viver a relação com a realidade, pessoas e coisas, nesta positividade de olhar que se torna, em cada ação, pedido de ser?
Como, por exemplo, o eu pode viver a relação com a realidade – pessoas e coisas – nessa positividade de olhar que se torna em cada ação pedido de ser? Para isto, é importante entender o que Jesus dizia aos apóstolos quando falava do matrimônio, da relação entre o homem e a mulher: o homem não é capaz de realizá-lo, pois é incapaz de uma permanência do amor15 . Mas o que é impossível ao homem não é impossível a Deus. Por isto Deus veio até nós. Veio até nós como acontecimento de um encontro, como presença humana à qual Ele mesmo deu o nome de companhia, como envolvimento concreto, real, físico, que implica tempo e espaço, conosco. “A Deus, ninguém viu – diz o Evangelho de João –: o Filho Unigênito, que provém do seio do Pai, este nos falou d’Ele” 16 : Deus feito homem, aliança definitiva de Deus com o homem: Jesus. O que é definitivo define o rosto, portanto a minha pessoa, a minha natureza, a minha personalidade. Assim, eu sou definido pela relação com esta Presença definitiva.
Nós colocamos no centro da nossa vida esta Presença que explica tudo, que está na origem de tudo o que somos e que fazemos, dentro da nossa autoconsciência e do nosso agir. E esta Presença é justamente o homem Jesus, nascido de uma mulher. O maior choque que um grande teólogo teve ao nos encontrar foi quando se deu conta de que lhe faltava algo: faltava-lhe, metodologicamente, como que um ponto de partida que fosse a humanidade de Cristo, a humanidade de Cristo não como ponto de chegada, no sentido de consequência ou fruto, mas realmente como o método insubstituível, o ponto de partida, para conhecer a Deus – ou seja, o significado, a estrutura do próprio eu, o próprio rosto17, o sentido da vida, a perfeição para a qual se caminha, como farol que ilumina o nosso caminhar.
O Acontecimento, com A maiúsculo, o Acontecimento que é mais acontecimento do que qualquer outro, o acontecimento kat’exochén, é Deus que se fez homem. Este homem ressuscitou dos mortos e, portanto, está presente em todo tempo e espaço. Pois o tempo e o espaço são, para nós, homens, lugar de novidade, mas também limite inevitável: se eu estou aqui, não posso estar com os meus amigos que estão em Caltagirone. Mas tempo e espaço não são mais Seus limites, pois Ele ressuscitou da morte. A morte é a consequência extrema dos nossos limites, é a realização exasperante dos nossos limites. Um Homem não pode ser ressuscitado, a não ser que vença o tempo e o espaço, na medida em que é superior a eles; o tempo e o espaço não são mais limites para Ele; e por isso, como foi, assim é: como foi em Nazaré, assim é hoje onde eu estou.
Nós colocamos no centro da nossa vida esta Presença que explica tudo, que é a origem de tudo o que somos e fazemos, dentro da nossa autoconsciência e do nosso agir: ela é justamente o homem Jesus, que nasceu de uma mulher de quinze-dezessete anos, em Nazaré, aquele buraco da Palestina que ninguém conhecia, e que viveu lá. Faltava àquele teólogo – ele mesmo expressou isto – a humanidade de Cristo como ponto de partida e não como ponto de chegada.
O Acontecimento é Deus que se fez homem. Este homem ressuscitou dos mortos e está presente em todo tempo e espaço, que não são mais seus limites. Está presente em todo tempo e espaço na medida em que se torna presente através da minha presença – através da nossa presença. Fui chamado, escolhido, nasci e fui escolhido para ser partícipe, ator desta Sua presença.

a) O Batismo
A escolha que define o nosso eu, o nosso rosto, o novo e eterno rosto de cada um de nós, é um gesto; esta escolha de mim como partícipe da Sua presença no mundo é o Batismo: um fato a tal ponto real que se pode descrever toda a sua exterioridade, tem uma data precisa, tomou-nos até fisicamente em um momento determinado; parece uma coisa, como dizer, absolutamente insignificante do ponto de vista da dignidade e da eficiência. Ao contrário, o Batismo é a criação de um tipo de protagonista novo na história da humanidade. Agarrado por Cristo, o homem batizado torna-se protagonista novo, partícipe do protagonismo novo em toda a história, cujo sentido é Deus feito homem, ou seja, este Homem que é Deus.
Que implica a participação da minha pessoa no Mistério de Cristo que opera no Batismo? “Quem é batizado se identifica com Cristo, tanto que não existe mais nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, mas todos vós sois um, ‘eis18, uma só pessoa em Cristo Jesus” 19. Esta é uma realidade ontológica, aqui se afirma uma ontologia nova. E não podemos nos admirar de que o Mistério seja capaz de comunicar-se da maneira que quiser! Vocês entendem o que eu queria dizer quando sublinhava que o dogma é como que dado por óbvio, ao mesmo tempo em que todo o discurso cristão fica no nível ético?

b) Companhia como morada do eu
“Uma só pessoa”, uma unidade humanamente inconcebível: é o surgimento de uma companhia humana cuja única razão de existência é a Sua presença. Ao invés de “única”, poderíamos dizer “a única cuja razão e realidade de existência é concebida como adequada é a Sua presença”. Para explicitar o motivo exaustivo, adequado, trata-se de uma companhia de homens que em última instância estão juntos porque Cristo está presente. A companhia humana que é o lugar da Sua permanência no tempo e no espaço é chamada por São Paulo “o Seu corpo misterioso” 20. É uma realidade humana nova na qual está presente o Mistério de Cristo. É uma realidade natural na qual está presente o Mistério de Cristo. Natural, portanto, no sentido de que se demonstra e se especifica como rosto humano, mas tem dentro de si algo maior. O Sacramento é um sinal cuja fisionomia externa pode ser descrita e compreendida (comer pão e vinho), mas que tem dentro Aquele que se proclama ser a sua definição: a Eucaristia é participar do corpo e do sangue de Cristo, é comer e beber o corpo e o sangue de Cristo – “Se não comerdes da minha carne, não entrareis no Reino dos Céus”, diz Jesus exatamente, no sexto capítulo do Evangelho de São João21.
A realidade humana nova na qual está presente o Mistério de Cristo é a Igreja que vem à tona ao meu lado, que vem à tona ao meu lado naquelas circunstâncias determinadas: com meu pai e minha mãe, depois quando fui para o seminário, depois quando comecei a encontrar pessoas que se tornavam atentas a mim e minhas amigas, porque eu dizia certas coisas, e quando, finalmente, fui conduzido para uma companhia que tornava e torna imediato para mim o Mistério de Cristo na Igreja. Esta companhia é para cada um de nós a morada na qual o nosso eu tem início para realizar-se no relacionamento que deve ter com toda a realidade.
O conceito de morada diz que não pode haver realização do eu, não pode haver eu, enquanto existente e maduro, destinado à maturidade, a não ser na grande hipótese educativa que Deus prevê ao fazê-lo nascer, que é a companhia à qual Deus o entrega: família, escola da vida, movimento, ou seja, as maneiras como esta morada se traduz concretamente. Esta morada, na sua complexidade e compreensividade total, é a Igreja. Por isso, qualquer “movimento” se realiza para assegurar a maturidade do eu e tem como finalidade a sua realização. A primeiríssima missão, que está na origem de todas as coisas criadas, a primeiríssima missão no homem novo é a missão para com o próprio eu.
A missão para com o próprio eu é dada por um âmbito em que Jesus o coloca. Por isso, em um determinado âmbito, Jesus persegue dois objetivos.
O primeiro é a criação do eu como semente, como origem de uma criatura nova (Batismo), à qual é dada a tarefa, entre outras coisas, de animar todo o resto da criação. Deste ponto de vista, o artigo de Marco Bersanelli, que saiu em Litterae22, é a coisa mais impressionante que Deus me fez tocar este ano: uma visão da formação do cosmo, do cosmo em dilatação, na qual se fala de bilhões de anos-luz, na qual se evidencia – até agora é impossível deixar de dizer isto – que este universo poderia ter sido feito em função do aparecimento do eu, para que pudesse surgir, no misterioso ser das coisas, no cosmo imenso e ao mesmo tempo finito, aquele ponto que se chama “eu”: todo o cosmo torna-se consciente de si, entende o que é e aquilo para o qual está destinado neste ponto que é o eu, o homem.
A maturidade deste eu, a realização completa deste eu é a primeiríssima missão, que está na origem de todas as coisas; a primeiríssima missão é a missão para com o próprio eu, e esta missão para com o eu é dada por um âmbito em que Jesus o coloca. Por isso, em um determinado âmbito, o primeiro objetivo que Jesus persegue é a criação do eu novo com o Batismo.
O segundo é o seu amadurecimento. A morada do eu, na qual o eu nasce – família, realidade social emergente in fieri23, movimento humano, o povo e a nação, a Igreja, e o que está destinado a ser Igreja (toda a humanidade) –, tem como segundo objetivo o amadurecimento deste eu. Jesus coloca esta semente, à qual Ele deu vida e forma, em um âmbito, em um ambiente, em um hic et nunc24 (um ambiente é um hic et nunc), através do qual pretende amadurecer o próprio desenvolvimento deste eu, de forma tal que o eu tome consciência de si e ajude Jesus na novidade que representa cada instante da história, ajude Jesus na misteriosa glória para a qual o Pai o enviou.
O que fez com que o ideal se tornasse o denominador cada vez mais normal de todas as minhas ações, o que me tornou consciente do meu destino, mas antes de mais nada da minha origem, de onde está a minha consistência, o que fez com que o ideal se tornasse um sentimento da vida normal, de modo tal que a vida é sentida cada vez mais coincidente com aquela postura – estar vivo coincide com estar naquela postura –, foi a família, depois o seminário, depois o Movimento. E comecei a sentir o Movimento quando começava a falar: não era uma coisa difícil, era uma coisa que se impunha.
De qualquer forma, a missão tem como fronteira um âmbito delimitado, tal como é delimitado o âmbito no qual o eu nasceu. Depois, a partir do Movimento, veio a última aplicação e a última descoberta da identidade entre estes três lugares: a vida da Igreja, o Movimento como a modalidade com a qual Deus me oferecia o seu dom supremo que é o Seu Corpo misterioso no mundo e colocava como horizonte implícito de qualquer ação minha o horizonte do mundo.
Por isso, família, seminário, Movimento, Igreja são lugares geradores de uma vida como amizade. Sempre dissemos que a amizade é um dom recíproco que nasce como consequência do amor ao destino um do outro: amor consciente ou inconsciente, bem expresso ou expresso seja lá como for. A primeira amizade é o próprio Destino que se dá ao homem: dá-se ao homem criando-o. O próprio Mistério se dá ao homem, criando-o. Aceitar ser criados, como dissemos antes, é a fórmula fundamental da amizade. Qualquer movimento do eu, do homem, ou é por sua natureza amizade ou não é realmente humana (seria como uma máquina à qual faltasse uma peça fundamental). O conceito de amizade, para o qual estamos apontando já há tanto tempo, tantas vezes – e que deverá ter um desenvolvimento – parece-me que hoje, neste tempo, pode tornar claro, pode ao menos começar a esclarecer, a sua origem, o seu valor original: a participação da natureza de Deus como Trindade. A Trindade é uma realidade que o homem não pode imaginar, não pode encontrar com a sua busca, mas cujo conhecimento Jesus tornou possível. A Trindade é a amizade como natureza de Deus. No seu dinamismo, o amor entre o Pai, o Filho e o Espírito é o fundamento da amizade: é a amizade que está na origem e constitui todas as relações entre as pessoas humanas.

c) Missão
Somos batizados, fomos tornados protagonistas da história, para cumprir uma missão, a missão de Jesus: tornar presente o acontecimento de Deus feito homem, em qualquer lugar, onde quer que estejamos. Em qualquer lugar, onde quer que estejamos! O fato de que em Novosibirsk, naquela Universidade em que há 250 mil inscritos, ouça-se Julián Carrón falar da historicidade dos Evangelhos, com a atenção de todo o corpo dos professores, mas sobretudo que exista lá um grupo inicial de CL e que uma das pessoas desse grupo, durante uma reunião, ponha-se a recitar em russo o hino Alla sua Donna de Leopardi25 – pois até os pormenores históricos são importantes para a memória! – e depois o Atto d’amore de Ada Negri26; o fato de que uma outra moça extremamente jovem, Júlia, de Karaganda, no Cazaquistão, que está há apenas sete meses conosco, escreva uma carta como aquela que foi publicada em um dos últimos números de Litterae27 (que pouca gente que tenha feito o colegial saberia escrever), estas são coisas do outro mundo! Aquela moça, aonde quer que vá, carrega consigo o encontro que fez, aquilo pelo qual ela nasceu e renasceu.
Este é o ponto que nos deve animar, reanimar, confortar e tornar seguros em tudo o que fazemos: a missão é a vocação pela qual nos é dada a vida. O Ser, comunicando-nos uma participação de Si, criando-nos, nos dá como tarefa, como dever, como lei, como moral, o testemunho do Ser. Pois, se o Ser se tornou homem, este é o problema fundamental; o punctum dolens é que o Mistério se fez homem, Jesus Cristo, o enviado do Pai. O Senhor único, o Mistério que faz todas as coisas e todo o tempo no qual as coisas existem, subsistem, torna-se familiar para nós através de Jesus – homem escolhido por Ele de maneira tal a torná-lo partícipe de maneira imediata da Sua natureza divina, da natureza do próprio Mistério. Através de Jesus, o Mistério torna-se familiar para nós, um homem nascido de mulher.
Revelar, anunciar, gritar que Deus se fez homem, que tem um nome preciso, Jesus de Nazaré, fazer com que todo o mundo o saiba através do testemunho que se dá onde a pessoa vive e onde Deus a mandará amanhã: isto caracteriza o nosso carisma. A genialidade do carisma que nos foi dado não está na busca meditabunda à maneira de Laurentius Eremita (“Foi-me dito: ‘Tudo deve ser acolhido sem palavras e santificado no silêncio’. Então compreendi que toda a vida passaria no dar-me conta do que tinha me acontecido, e a Tua palavra me encheu de silêncio”). Não é que nós não estejamos sujeitos ao fato de que toda a vida nos foi dada para que nos déssemos cada vez mais conta do que nos aconteceu, mas o nosso carisma é método para dizer o conteúdo primeiro da missão, é método para dizer que Jesus é o Verbo de Deus que assumiu em Si um homem, que o criou dentro do mistério da Trindade: um Homem! É o método que o Mistério seguiu. O Mistério, para comunicar-se, para deixar conhecer de si aquilo que quis deixar-nos conhecer, usou a nossa humanidade, um homem como nós! Através deste homem, nós conhecemos o Pai.
“Você vai embora?”. “Sim, estou indo, mas ficarei fora por pouco tempo. Ficarei fora só quinze dias”. “Quinze dias sem que eu possa vir aqui ao Laboratório com o desejo de ver a letícia do seu rosto!”. Assim disse a uma moça do Movimento um cientista americano que trabalha no mesmo Departamento que ela: ela nunca havia falado com ele, aliás, ela o sentia um pouco como um estranho, e ele lhe disse estas coisas. Isto me fez voltar a pensar na frase da Liturgia: “Tornarei conhecida a força do meu poder sobre o mundo pela letícia dos vossos rostos” 28. Toda a notícia da nossa experiência, toda a nossa difusão, desde a América até a Sibéria, consistiu de indivíduos que foram para lá, indivíduos enviados ou que foram por sua conta, primeiro que foram por sua conta e depois também enviados. A moça de quem falei, à qual o cientista falou do rosto cheio de letícia, é o pólo de atração de todos aqueles que trabalham ali. Estimando-a muito, o chefe do Departamento fez-lhe a proposta de assumir uma responsabilidade por causa da qual terá de ficar um longo tempo na América. Ele a chamou e lhe disse: “Estou muito interessado em você por causa da sua maneira de viver: mas de onde é este modo de vida, de onde você o tira?”. Este é o problema do carisma, ou por que nós, com o nosso movimento, correspondemos a um carisma.


IV

Ecumenismo


A novidade está somente no acontecimento de um encontro com pessoas cuja humanidade se apresenta como mais verdadeira e fascinante (como aconteceu ao Chefe de Departamento e ao colega cientista): um encontro no qual as palavras do Santo Evangelho encontram já uma documentação concreta na mudança, na diversidade de vida de quem as pronuncia; em segundo lugar, um encontro que abraça e compartilha a experiência daqueles com os quais nos deparamos. Aqueles, com os quais a pessoa que vive a missão se depara, não têm ainda a vida mudada como ela; mas a pessoa que está lançada na missão abraça todas as pessoas, compartilha a experiência de qualquer um que encontre. É uma paixão real pelo destino de cada pessoa, é um amor a tudo o que há de verdadeiro em qualquer um.
Por isto, ecumenismo é a palavra capital, a chave de abóbada, culturalmente, neste momento do desenvolvimento da nossa consciência. É preciso entender bem o significado e o valor de uma palavra como esta diante da redução que faz dela a mentalidade dominante.
O ecumenismo significa o caráter decisivo do amor a Deus que se revelou em Cristo como verdade e fonte de certeza total e de esperança, ou seja, de uma esperança nova, porque não é submetida pela interrogação dramática, aliás, trágica, do vazio – à maneira de Bloch –, mas é a afirmação de uma certeza que a partir do presente desafia todo o futuro, em qualquer situação. A esperança é uma certeza sobre o futuro que se apóia em uma certeza presente, em uma Presença.
Com a palavra ecumenismo quer-se indicar que o olhar cristão vibra com um ímpeto capaz de exaltar todo o bem que existe em tudo o que encontra, na medida em que o reconhece como partícipe daquele desígnio cuja concretização se revelou em Cristo e cuja realização final começa na história do Seu Corpo misterioso. Com efeito, para exaltar o bem que existe em um outro, tenho de amar o meu próprio bem na medida em que corresponde à verdade de Cristo que reconheço. Esta é a razão do perdão cristão e o mundo foi conquistado pelo cristianismo em última instância justamente por esta palavra que resume tudo: misericórdia. A capacidade de misericórdia se exprime como sensibilidade ao bem, como certeza de que o bem vem pela força de Cristo. “Te amo, ó Deus, minha força” 29. “De tudo sou capaz nAquele no qual está a minha força” 30.
O ecumenismo nasce do acontecimento de Cristo, que é o acontecimento da verdade de tudo o que existe, de todo o tempo, de todo o espaço, da história. Cristo é o acontecimento da verdade no mundo: “O Verbo se fez carne” 31, a verdade se fez presença humana na história e continua no presente. Esta Presença invade, tende a invadir toda a realidade. Quando há consciência clara da verdade suprema que é o rosto de Cristo, ao se olhar para tudo o que se encontra se revela algo de bom, pois Cristo é a consistência de tudo32. O ecumenismo não é, então, uma tolerância genérica que permite que o outro continue sendo ainda um estranho, mas é um amor à verdade que está presente em qualquer um, ainda que seja por um fragmento.
Toda vez que o cristão encontra uma realidade nova, aborda-a positivamente, porque ela tem algum reflexo de Cristo, algum reflexo da verdade que é Cristo. Nada é excluído deste abraço positivo. Há, portanto, uma única fonte de olhar positivo para tudo o que existe, para todos os relacionamentos. Quem, ao contrário, está apegado a uma identificação parcial, à “sua” verdade, não pode deixar de estar diante de tudo defendendo o que ele próprio diz, a menos que seja completamente cético ou niilista.
Muitas vezes, aqueles que guiam os povos e têm responsabilidades a diversos títulos, se são cheios de bom senso, favorecem um certo “ecumenismo”, pois têm medo da guerra e da violência, que nascem inevitavelmente se a pessoa afirma apenas a si mesma. Assim, parece que colocar-se juntos, tentando cada um respeitar o rosto do outro, pode representar a realização do ecumenismo pacífico, da paz. Mas isto não é paz, é um equívoco. Isto, de fato, acaba sendo, na melhor das hipóteses, tolerância, ou seja, de maneira radical, potencial indiferença. Assim, da maneira como normalmente é conclamado hoje, o termo “ecumenismo” parece indicar a melhor expressão da boa vontade de quem é bom de coração e está no comando do povo, quer se trate de chefes religiosos ou de políticos.
Este “ecumenismo”, entendido como confraria das várias tentativas filantrópicas para construir o mundo, revela-se como o principal inimigo da identidade cristã. Este “ecumenismo”, com efeito, na melhor das hipóteses, é uma tentativa de tolerância, na qual cada um está atento aos seus interesses e aproveita, dos outros, o que lhe convém. Mas, quando só se perseguem os próprios interesses particulares, acaba-se por olhar para os outros como potenciais inimigos dos quais se defender: diante do que mais interessa, deixa-se, de fato, de ser tolerantes. Desta forma, a tolerância se reduz a afirmar cinicamente que tudo deve poder existir na sociedade, tudo.
De fato, esta é a posição de quem tem o poder nas mãos hoje. Teoricamente, são tolerantes, mas depois as coisas são colocadas de maneira tal que o que não se quer que se pense ou se faça, de fato, não se pode nem pensar nem fazer. Ou então existe a macabra posição do intelectual, do filósofo ou do artista, que se desinteressa praticamente de tudo: julga como nada, como aparência efêmera, tudo o que existe, salvo o que ele procura, o que ele vê como satisfatório, o que ele persegue na sua afirmação da particularidade, de uma particularidade. Esta posição é o ponto de onde se origina, em última instância, o niilismo teorizado. Ou a indiferença ou uma situação que dê o poder a mim, que assegure ou esteja de acordo com o poder que eu tomei: só nisto se traduz a tolerância.
Uma sociedade pluralista implica inevitavelmente que o outro, diante da comunidade, da companhia, seja, tenha, possua, veicule em si uma esperança certa; que, no fundo, abstratamente, teoricamente, a priori, faz parte da natureza da razão, do coração do homem. Mas, tão logo esta esperança se põe em ação, aplicando-se ao tempo e ao espaço, depois de um milésimo de milésimo, desaba, porque a certeza da esperança tende a identificar-se com algo que o homem já tem nas mãos, e é a lógica do carpe diem. A certeza da esperança como futuro tende a se identificar com algo que já se tem nas mãos, de tanto que a esperança é certeza no futuro que se apóia em uma certeza presente.
A certeza da esperança cristã, ao contrário, não exclui nada nem ninguém, não julga ninguém, no sentido forte do termo, ou seja, do juízo final (“Não julgo a ninguém, nem a mim mesmo” 33, dizia São Paulo): não julga ninguém de tudo o que encontra. Não tolera; ama o que encontra, justamente porque olha para aquilo segundo o seu destino. Exatamente na medida em que olha para a verdadeira origem e o destino daquilo que encontra, então tolera a qualquer um. Tolera a qualquer um, não no sentido de tolerar: ama. Amar quer dizer reconhecer o que é justo, para o destino, e por isso valorizá-lo, como os dentes brancos da carcaça apodrecida do cão (de que fala o agraphon que já outras vezes citamos34): todo o resto está podre, o único ponto que se pode salvar são os dentes, e Jesus diz só aquilo do cão.
No horizonte que tenho da experiência do meu relacionamento com você, eu faço vir à tona... não “eu faço vir à tona”, mas reconheço a vinda à tona e a imponência do pequeno pormenor, de um pequeno pormenor acima de tudo o que há de nefando em você, acima de toda a sua estranheza. Em última instância, isto é a piedade: o amor pelo outro, que afirma a esperança de que o destino chegue até ele, de que a misericórdia o salve. O desejo da salvação de toda a humanidade é justamente a vontade de Deus. Diz São Paulo: “Deus quer que todos os homens sejam salvos” 35. Não podemos deixar que isto se torne matemática, não podemos dizê-lo com a nossa mentalidade que é inevitavelmente quantitativa. Não sabemos o que quer dizer, é paradoxal, não podemos dizer: “isto sim, isto não”, “é preciso fazer isto, é preciso fazer aquilo”. Por outro lado, não podemos deixar de dizer que a positividade última com a qual o Ser fez o ser participado é uma positividade última para qualquer ser participado. Mesmo se todo o mundo se tornasse uma tempestade contra nós, e fôssemos reduzidos a doze na grande tempestade da conflagração última do cosmo, mesmo que sobrassem doze, Cristo vence. Mesmo que nós doze estivéssemos ali para ser mortos, pois o poder é totalmente contra nós, vem Cristo e vence o poder (ou o anticristo).
Esta é a única leitura que pode dar sentido à história para o homem cristão. Ele é o único que pode dizer algo verdadeiro, experimentável, como pressentimento, como aurora, enquanto os outros se abandonam a fantasias sem nenhum relevo sobre a solução da vida prática de todos os dias, pois a despertam, a reviram, apertam o seu pescoço para fazê-la ficar de pé, fazem mal a tudo, fazem tornar-se mal até o bem, até a capacidade de bem reduzem a uma entrega ao mal. O único homem que pode dizer algo verdadeiro como algo experimentável, como pressentimento, como programa, como projeto, é o homem cristão, pois, como aurora, a salvação começa a ser parte da sua experiência, do seu presente, através da mudança das suas atitudes, da sua pessoa, do seu modo de se relacionar. Os outros se abandonam a fantasias sem nenhum relevo sobre a vida concreta, exceto uma violência que, quando se tem poder e força, arrasta36.
O Ser, a Origem de tudo, é de todos os dias: com Jesus, apresenta-se todos os dias como companheiro de caminho. Como diz o versículo de Jeremias nas Completas de sexta-feira: “Tu estás entre nós e nós somos chamados com o Teu nome: não nos abandones, nosso Deus”.
A ecumenicidade católica está aberta a todos e a tudo, até os últimos detalhes, pronta a exaltar com toda a generosidade possível qualquer coisa que tenha até mesmo uma distante afinidade com a verdade, mas é intransigente diante do equívoco possível. Se a pessoa descobriu a verdade real, Cristo, vai em frente tranquila em qualquer tipo de encontro, segura de encontrar em cada um uma parte de si. Se tem a verdade, se a verdade a possui, em qualquer outra pessoa ela encontra uma parte de si.
O verdadeiro ecumenismo descobre sempre coisas novas, de modo tal que não há nunca uma repetição total: somos arrastados por uma admiração totalizante do belo. É da beleza que nascem continuamente imagens de possibilidades novas para consertar as casas destruídas e construir novas, como diz Isaías. Esta abertura faz a pessoa se sentir em casa junto de qualquer um que conserve um pouquinho de verdade, e à vontade em qualquer parte. É o conceito de catolicidade, não entendido geograficamente – como foi entendido a partir do século XVI –, mas enquanto ontologicamente definido pela verdade que reconheço presente. Diz A Imitação de Cristo: “Ex uno Verbo omnia et unum loquuntur omnia, et hoc est Principium quid loquitur in nobis37 (De uma só Palavra tudo, e uma só Palavra tudo grita, e esta Palavra é o Princípio que fala dentro de nós).
Não é possível, portanto, encontrar uma outra cultura que defina qualquer coisa com um abraço tão unitário, potente, que não deixa nada de fora. A primeira definição de cultura que demos no primeiro ano de GS, quando havia poucas dezenas de estudantes, entre os quais Negri, é a de São Paulo: “Avaliai todas as coisas, ficai com o que tem valor (to kalon)”38, o belo, o bom. É um abraço unitário e potente, que não deixa nada de fora. Dizia Jacopone de Todi que tudo acontece para que cheguemos a ir todos juntos para “o reino celeste; que realiza toda a alegria/ pela qual o coração arde” 39. E ainda, no mais belo verso da literatura italiana: “Amor, amor, todas as coisas conclamam” 40. A palavra Amor deve ser entendida no seu sentido último, ou seja, como sinônimo de Cristo, do Deus que se dobrou sobre nós e nos abraçou.


Três pontos e uma recomendação

a) Ética cristã como testemunho

A relação entre dogmática e ética é um ponto de vista fundamental em uma teologia (entendida não no sentido escolástico, mas no sentido próprio da experiência de fé que ela implica). É o verdadeiro problema para a Igreja, ou seja, para quem carrega a mensagem no mundo, para quem Deus colocou nas mãos de Jesus a fim de que através da história tornasse conhecida no mundo a Sua presença. A coisa mais impressionante do Evangelho, do ponto de vista do método com o qual Cristo se torna presente e conhecido em toda a história, é que Ele, depois que ressuscitou, deixou-se ver, deixou-se encontrar por alguns. Deixou-se ver por alguns: e veio para todo o mundo, morreu por todos os homens – e aquilo pelo qual veio se realizará, pois Ele é o Rei do universo –. Por isso, esta é uma observação que enche de admiração diante da realidade da Igreja, que tem como razão suprema de existir justamente isto: o testemunho.
O testemunho é de um dado novo, de um Acontecimento – de um Acontecimento objetivo, que é uma realidade que acontece, existente, “em existência” – que implica e demonstra a Sua presença na mudança que a vida da testemunha carrega consigo: ou seja, uma ética. No cristianismo, a ética é portanto um testemunho de um Fato, de um Acontecimento que supera qualquer outro acontecimento.

b) Testemunho como mudança e como “Obra”: “Opus Dei”
Este testemunho – se tem de carregar a mensagem de que uma Outra Coisa aconteceu no mundo, a que mais adere à natureza do homem que vive, às exigências dessa natureza, de maneira impensável, inefável – é uma mudança que todo o mundo pode ver, uma mudança da sociedade, pois a Igreja é uma societas: a Igreja é uma comunhão.
Por isso, o testemunho se demonstra através da postura do indivíduo mudado que faz parte do grande desígnio, mas também de cada aspecto social que nasce do indivíduo mudado, da testemunha: este é o conceito de obra. O testemunho, normalmente, deve se traduzir em obra. Deus pode não dar a possibilidade de que isto aconteça, e o testemunho então é visto e toca e é admirado somente por todos os anjos de Deus. E ele será visto no fim do mundo: no fim do mundo veremos os anjos se colocarem de joelhos diante da pessoa que testemunhou Deus, abandonando até a exigência última do homem, que é a visão da utilidade da sua ação, da sua presença no mundo.

c) O pertencer do eu como geração de cultura
A dimensão da cultura e a dimensão caritativa são uma matriz da outra: a cultura é matriz da caridade, por isso a palavra cultura implica tudo, pois a cultura é determinada pelo fenômeno, pelo acontecimento de um pertencer. É porque se pertence que tudo muda. Sensim sine sensu (dou-me conta de que estou mudando quase sem perceber), normalmente; caso contrário, é “milagre”.

“Enfim”: a oração como dimensão do eu
Quero lhes dar uma recomendação final: rezem, é preciso rezar.
Oração é a palavra que foi mais revolucionada no diálogo em que vivem as pessoas da morada que Cristo nos fez encontrar.
A beatice, ou a imagem de um gosto particular e estranho que acompanha sempre a citação desta palavra, o uso desta palavra, é totalmente evitada por nós; a palavra acaba sendo o ponto final ou o motivo de uma repugnância que, para não ser repugnância, se torna um sorriso de desdém.
Para nós, a oração é uma dimensão do humano, do eu, dentro de qualquer ação que este realize. Não é que em todas as ações ele a realiza; mas quando reflete, ou na medida em que é consciente do que faz, a realiza, vê que ela se realiza na ação que faz.
A oração é qualquer ação que realizamos na medida em que Deus nos permite uma tal perspicácia e desenvolve dentro de nós uma autoconsciência tal que nos permite compreender o que estamos fazendo.
Os momentos fixados de oração durante o dia representam a sua maior ajuda. As Horas, por exemplo, chamam a nossa atenção para o que fazemos, para os interesses de todas as nossas ações, de todos os nossos compromissos.
Por isso, é na oração, em sentido formalmente estrito, é nas formas da oração que vocês encontram a expressão da sua espera como conhecimento e do seu ímpeto de amor ao Ser, ao grande Tu, ao tu pequeno, definido, de um outro, e ao tu que metaforicamente vocês dizem ao cão (se vocês gostam de cães) e à flor (se preferem as flores). Dizer “tu” implica um nível de estima e um nível de convivência, de “sacrifício com”, de “sacrifício juntos” (se não é analógico, o terceiro tu, o terceiro nível do tu, é inoportuno, é um exagero, é um hobby que suprime o dever).
Recomendo-lhes, como exemplo indicativo de oração (“indicativo” no sentido de que convido-os a desfrutar dele), os Hinos da Liturgia das Horas. Os hinos litúrgicos são aquela parte das horas do dia em que toda a consciência e o desejo da própria alma são indicados e inicialmente satisfeitos por uma forma particular de oração cantada (o canto é sempre a expressão mais típica e mais completa do humano).
Esta manhã cantamos “Enquanto clareia-se o dia” 41. Este Hino poderia ser citado como exemplo do que estou dizendo. Mas há um outro Hino que lhes indico como esclarecedor. É “Antes que nasça o dia” (no livro das Horas da nossa história é usado na segunda-feira) 42. Ele é a descrição exata das passagens implicadas em qualquer nosso gesto cristão.
A razoabilidade da trama cristã dos nossos gestos é indicada, descrita magnificamente por estes dois Hinos. Mas “Antes que nasça o dia” descreve realmente os tempos, todos os tempos da mudança necessária implicada: “Antes que nasça o dia, vigiamos esperando”, diz o primeiro verso. “Antes que nasça o dia”, que espera existe? A espera do dia, a espera do primeiro sinal do dia, que é o crepúsculo matutino, ou a aurora. “Vigiamos esperando”, ou seja, antes de começar a conhecer a verdade; e, de fato, conhece-se a verdade como resposta à nossa espera, primeiro sintoma de resposta à nossa espera.
Gostaria de lhes recomendar a oração, pois é a expressão da autoconsciência do homem, do eu. Fora da oração, começa a ter mais espaço a tentação do esquecimento, começa a demonstrar sua presença a força, não mais dAquilo a que pertencemos, mas da contingência, ou seja, da aparência com a qual lidamos; a aparência torna-se mais pertinente e mais clara do que o pertencer. Só no pertencer a aparência é superada pela razão, pela “consciência de”, por aquilo que, enfim, caracteriza o eu: reconhecimento, e amor, ao “sinal” – à realidade como sinal.
Faço votos de que vocês saibam rezar de modo tal a saber tornar a oração dimensão do seu dia. Esta é a essência do caminho para o Destino: a oração, a consciência do Ideal e o pedido ao Ideal de que se realize, de que se realize em nós.
Recomendo-lhes a oração para que no ano que vem possamos nos ver com maior gratidão e, sobretudo, com maior curiosidade. A nossa curiosidade é uma só: a que leva adiante o sentido desta vida, que aprofunda e nos faz aprofundar o mistério de Cristo, ou seja, o mistério da nossa vida.
(traduzido por Durval Cordas)

Notas:

[1] Giussani, L. Em busca do rosto do homem. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1996, pp. 73-83.
[2] Cf. Dell’Asta, A. “Reportagem sobre o milagre”, nesta edição.
[3] Cf. Dewey, J. La ricerca della certezza. Florença, La Nuova Italia Editrice, 1966, p. 322.
[4] De Lubac, H. L’alba incompiuta del Rinascimento. Pico della Mirandola. In: Opera Omnia, vol. 29. Milão, Jaca Book, 1977.
[5] Buonarroti, M. Rime, nº 286, vv. 5-6.
[6] “Il dì s’appressa, et [già] non pote esser lunge,/ sì corre il tempo et vola,/ Vergine unica et sola e ’l cor or conscientia or morte punge./ Raccomandami al tuo Figliol, verace/ homo et verace Dio,/ ch’accolga il mio spirto ultimo in pace”. Petrarca, F. Il canzoniere, CCCLXVI, vv. 131-137.
[7] Mt 28, 20.
[8] Cf. 1 Cor 15, 28.
[9] Sl 8, 5.
[10] Sb 9, 15.
[11] Porta, em grego [N. do T.].
[12] Cf. 1 Cor 15, 28.
[13] Cf. Jr 20, 14; Jó 10, 18.
[14] Cf. Tg 2, 19.
[15] Cf. Mt 19, 3ss.
[16] Cf. Jo 1, 18.
[17] Cf. Giussani, L. Em busca do rosto do homem. Op. cit., pp. 53ss.
[18] Aproximadamente “um, uno, uma só coisa”, em grego [N. do. T.].
[19] Cf. Gl 3, 27-28.
[20] Cf. Ef. 5, 29-32.
[21] Cf. Jo 6, 53.
[22] Bersanelli, M. “Um ambiente habitável”. In: Litterae Communionis, nº 57, maio/junho de 1997, pp. 46-47.
[23] “Que está se fazendo”, em latim [N. do T.].
[24] “Aqui e agora”, em latim [N. do T.].
[25] Leopardi, G. “Alla sua donna” (“À sua dama”). In: Cara beltà... Milão, Rizzoli, 1996, pp. 53ss.
[26] Negri, A. “Atto d’amore” (“Ato de amor”). In: Mia giovinezza. Milão, Rizzoli, 1995, pp. 70ss.
[27] “Aos grandes, que nos sabem falar, aos pequenos, que nos sabem ouvir”. In: Litterae Communionis, nº 56, março/abril de 1997, pp. 17.
[28] Cf. Oração dos fiéis do IV domingo do Advento ambrosiano. In: Messale Ambrosiano. Dall’Avvento al Sabato Santo. Milão, 1942, p. 78.
[29] Sl 18, 2.
[30] Fl 4, 13.
[31] Jo 1, 14.
[32] Cf. Cl 1, 17.
[33] 1 Cor 4, 3.
[34] The Unwritten Gospel. Ana and Agreapha of Jesus. Londres, Allen and Unwin Ltd., 1925, p. 84. Neste relato de um evangelho apócrifo, Jesus vê, em seu caminho, a carcaça apodrecida de um cão; Pedro lhe diz: “Mestre, afasta-te”; mas Jesus se aproxima e, parando um instante, exclama: “Que dentes brancos!”, exaltando a única coisa boa naquele corpo apodrecido (N. do T.).
[35] Cf. 1 Tm 2, 3-4.
[36] Cf. Jr 14, 9.
[37] “De Doctrina Veritatis”. In: Imitação de Cristo. Livro Primeiro, III, 8.
[38] 1 Ts 5, 21.
[39] “...nel regno celesto; che compie omne festo/ che ’l core ha bramato”. Jacopone de Todi. “Cântico da natividade de Jesus Cristo”, Lauda LXIV. In: Le Laude. Florença, Libreria Editrice Fiorentina, 1989, p. 218.
[40] “Amore, amore, omne cosa conclama”. Jacopone de Todi. “Como a alma se lamenta com Deus pela caridade superardente nela infundida”, Lauda XC. In: Le Laude. Op. cit., p. 318.
[41] “Enquanto clareia-se o dia”. In: O Livro das Horas. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1993 [3ª ed.], p. 58.
[42] “Antes que nasça o dia”. In: O Livro das Horas. Op. cit., p. 37.