“...Um dia se perguntou quem era...”

Página Um
Davide Prosperi e Julián Carrón

Notas dos depoimentos de Davide Prosperi e Julián Carrón no Dia de Início de Ano dos adultos e dos universitários de CL da região italiana da Lombardia. Fiera Rho-Pero, 25 de setembro de 2010

JULIÁN CARRÓN
No início deste ano, peçamos ao Espírito o dom da sabedoria para que possamos entender qual é o problema dos problemas – o sentido da vida – e nos tornemos realmente disponíveis a perseguir a modalidade com a qual o Mistério nos alcançou e continua a nos alcançar agora.
Ó vinde, Espírito Criador
Saudações a todos aos que estão presentes e aos que nos acompanham ao vivo de várias regiões da Itália e do exterior. Leio o telegrama que enviamos ao Papa: Santidade, cinquenta mil adultos e estudantes universitários de Comunhão e Libertação reunidos em Milão e que acompanham ao vivo, a partir de uma dezena de cidades italianas e do exterior para o Dia de Início de Ano, gratos a Deus pela beleza da Vossa viagem ao Reino Unido, desejam entregar em Vossas mãos toda a própria pessoa para estar, como Vossa Santidade, ao serviço de um Outro, a fim de tornar o anúncio de Jesus Cristo acessível aos irmãos homens. Numa sociedade indiferente e hostil à fé, ao aprofundar o carisma de Dom Giussani confirmamos o empenho em tornar transparente Cristo ressuscitado, resposta inesgotável às perguntas do coração de cada um.

DAVIDE PROSPERI
Como cabe a mim evidenciar os passos dados durante o ano passado, leio algumas linhas de Dom Giussani, contidas em O caminho para a verdade é uma experiência, e que resumem de modo eficaz o que vivemos: “O cristianismo não nasce como fruto de uma cultura nossa ou como descoberta da nossa inteligência: o cristianismo não se comunica ao mundo como fruto da modernidade ou da eficácia de nossas iniciativas. O cristianismo nasce e se difunde no mundo pela presença do ‘poder de Deus’: ‘Deus, in nomine Tuo salvum me fac’ (Por vosso nome, salvai-me Senhor; e daí-me a vossa justiça). Este poder de Deus se revela em acontecimentos que constituem uma realidade nova dentro do mundo, uma realidade viva, em movimento, e portanto uma história excepcional e imprevisível dentro da história dos homens e das coisas” (L. Giussani, O caminho para a verdade é uma experiência, São Paulo: Ed. Cia. Ilimitada, 2006, p. 153).
Isto também nos ajuda a entender a tarefa de uma presença cristã na sociedade. Acabamos de escutar que não se trata, antes de tudo, de uma sabedoria nossa ou do fruto das nossas iniciativas, pelas quais é possível celebrar quando esta presença é reconhecida ou, pelo contrário, correr para consertar quando é atacada. Se fosse assim não seríamos mais capazes de nos maravilhar por nada, no fundo tudo já seria codificado, sabido. Pelo contrário – como ouvimos – a potência de Deus se revela em acontecimentos que constituem uma realidade nova dentro do mundo.
Bem, nós aqui hoje queremos dizer que este ano fomos testemunhas e participamos de acontecimentos, alguns mais evidentes, que envolveram todo o Movimento, e outros que cada um pode encontrar na própria experiência pessoal. Lembro, acima de todos, o gesto de Roma no dia 16 de maio com o Papa, quando já nas semanas anteriores formos introduzidos a um juízo diferente, não ideológico, sobre o significado daquele gesto, tanto que muitos de nós, talvez por compromissos firmados precedentemente, decidiram participar no último momento, mesmo em meio a obstáculos e impedimentos. Sobre isso, todos nos lembramos de que, nesta mudança, também a respeito das decisões tomadas, fomos ajudados pelo que Carrón nos disse: “Nós não vamos a Roma antes de tudo para defender o Papa, mas para reconhecer e afirmar a rocha sobre a qual estamos ancorados neste momento de provação para a Igreja”. Isto mudou o olhar sobre aquilo que fazíamos, pois introduziu uma posição humana nova, ao ataque, que entra nas coisas desarmada, para conhecer, para entender mais. Sem dúvida esse foi um dos êxitos imprevistos do trabalho de Escola de Comunidade deste ano, e certamente a Escola de Comunidade de Carrón (que foi possível de ser acompanhada por todos os que o desejassem) é o ponto que alcançou a todos nós, mostrando-nos este método em ação.
No Meeting de Rímini tivemos um reflexo desta positividade diante da realidade que se encontra. Pensemos ao que significaram os tantos testemunhos sob várias frentes, que agora, por brevidade não cito, mas que podem ser encontrados numerosos na revista Passos. Sinteticamente podemos dizer que a esperança que vem da experiência cristã nos torna surpreendentemente – deixem-me dizer, também inesperadamente – capazes de enfrentar todas as condições, talvez até as mais difíceis, experimentando uma inteligência de iniciativa e, ao mesmo tempo, uma plenitude de alegria que não precisa reduzir a dramaticidade daquilo que está sendo vivido, como talvez, pelo contrário, muitas vezes somos levados a fazer para não cairmos no desespero.
E, então, vem a pergunta: de onde vem tudo isso? O que está por trás? Um mês atrás, em La Thuile, durante a Assembleia Internacional de Responsáveis de Comunhão e Libertação, Carrón retomou Giussani que disse: “A realidade não deve ser arquivada por já sabermos [depois do encontro cristão], por já termos tudo. Nós temos tudo, mas só compreendemos o que é esse tudo [isto é, o que seja Cristo] no choque, ou melhor, no encontro com as circunstâncias, com as pessoas, com os acontecimentos” (“Viver é a memória de Mim”, Assembleia Internacional de Responsáveis de Comunhão e Libertação, p. 52).
Um exemplo extraordinário disto foi outra passagem fundamental do ano passado, que absolutamente não devemos perder, que foi o artigo de Carrón no jornal La Repubblica (de 4 de abril passado), referindo-se à tempestade sobre a pedofilia que investiu a Igreja. Diante da grande contradição que se experimenta (mas isto é verdade para qualquer contradição, é verdade para a dor em si) se impõe em nós uma necessidade insaciável de justiça e de verdade. Nada basta para curar a ferida que se abriu, nada daquilo que nós podemos fazer, pois a justiça que cada um de nós espera não é apenas que nos seja restituído o que nos foi tirado, aquilo em que tínhamos colocado a nossa esperança, as nossas expectativas; a justiça para a qual somos feitos é muito mais do que ser recompensados, aquilo que nós realmente esperamos é mais do que isso, é uma superabundância. A este propósito há um episódio muito significativo dos primeiros tempos de Madre Teresa em Calcutá: a jovem freira se deparou com um pobre moribundo abandonado no meio da rua, o acolheu na sua casa, o medicou, cuidou dele. Pouco depois o homem morreu, mas antes de morrer pronunciou estas palavras: “Vivi toda a vida como um cão e agora morro como um rei”. Madre Teresa provavelmente não tinha feito mais do que uma enfermeira, talvez com compaixão, poderia ter feito naquela situação, e no entanto aquele homem disse aquelas palavras. O que ele viu? O que pode ter visto que tinha esperado por toda a vida? No olhar de Madre Teresa brilhava o olhar de Cristo, na sua voz vibrava a voz de Cristo: era isso o que ele tinha esperado por toda a vida, encontrar este olhar. Dizia ainda Carrón em La Thuile: “A verdade não é algo abstrato, é esse Amor que se dobrou sobre o nosso nada, […] esta comoção pelo nosso nada. […] Esta é a nossa responsabilidade: converter o eu ao Acontecimento presente, ou seja, a esse Amor que se curvou sobre mim” (J. Carrón, “Viver é a memória de Mim”, op. cit., pp. 8-9).
Confiar-se a este olhar é o convite que recebemos também do Papa na Praça de São Pedro. A palavra que domina a preocupação de quem guia a Igreja é a palavra “conversão”, e o Papa o lembrou ainda na semana passada, por ocasião da visita histórica na Grã Bretanha pela beatificação do cardeal Newman: “Newman ensina-nos que se acolhermos a verdade de Cristo e comprometermos a nossa vida por Ele, não pode haver separação entre aquilo em que cremos e o modo como vivemos a nossa existência. Cada nosso pensamento, palavra e ação devem visar a glória de Deus e a difusão do seu Reino” (Bento XVI, Vigília de oração para a beatificação do cardeal John Henry Newman, Londres, 18 de setembro de 2010).
Portanto, te pedimos, neste novo ano que começa: o que é essa conversão do eu para o acontecimento presente, à qual temos sido convidados?


JULIÁN CARRÓN
1. A humanidade que nasce da fé
Celebramos este Dia de Início de Ano ainda impressionados com os gestos que aconteceram neste verão: das férias das nossas comunidades ao Meeting, desde a Assembleia Internacional dos Responsáveis às equipes dos universitários e dos colegiais de CL; e, mais recentemente, com a viagem do Papa à Grã Bretanha. O que ele enfatizou por ocasião dessa visita nos leva a entender os desafios que a nossa fé é chamada a enfrentar hoje. Uma comparação com o que ele disse vai nos ajudar a contextualizar a dimensão do percurso que estamos fazendo e nos oferece ainda mais razões para percorrer a caminhada.
Bento XVI viajou – como todos sabemos – para um dos lugares mais secularizados do mundo e nos testemunhou o que é uma presença. Estava bem consciente do alcance da viagem, como ele próprio disse esta semana, ao falar das etapas que percorreu: “Ao me dirigir aos cidadãos daquele país, encruzilhada da cultura e da economia mundial, sempre tive em mente todo o Ocidente, dialogando com as razões dessa civilização e comunicando a insuperável novidade do Evangelho, do qual ela está impregnada” (Bento XVI, Audiência geral, Praça de São Pedro, 22 de setembro de 2010). Para demonstrar que novidade é essa, naquele contexto, o Santo Padre se serviu da figura de Newman, cuja beatificação era o motivo fundamental da sua viagem: “Newman – segundo o seu próprio relato – refez a caminhada de toda a sua vida à luz de uma poderosa experiência de conversão, que aconteceu quando ele era jovem. Foi uma experiência imediata da verdade da Palavra de Deus, da objetiva realidade da Revelação cristã, tal como foi transmitida pela Igreja. Tal experiência, ao mesmo tempo religiosa e intelectual, teria inspirado a sua vocação para ser ministro do Evangelho, o seu discernimento da fonte de ensinamento respeitável na Igreja de Deus e o seu zelo pela renovação da vida eclesial, na fidelidade à tradição apostólica. No final da vida, Newman descreveria o próprio trabalho como uma luta contra a crescente tendência a considerar a religião como um fato puramente privado e subjetivo, uma questão de opinião pessoal. Aí está a primeira lição que podemos aprender com a sua vida: em nossos dias, quando um relativismo intelectual e moral ameaça enfraquecer os próprios fundamentos da nossa sociedade, Newman nos recorda que, como homens e mulheres criados à imagem e semelhança de Deus, fomos criados para conhecer a verdade, para encontrar nela a nossa definitiva liberdade e a realização das mais profundas aspirações humanas. Numa palavra, fomos pensados para conhecer Cristo, Ele próprio o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6)” (Bento XVI, Vigília de oração..., 18 de setembro de 2010). De fato, se a religião é um fato puramente privado e subjetivo, uma questão de opinião pessoal, a consequência é óbvia: o relativismo. O relativismo minimiza a capacidade do homem de conhecer a verdade, de encontrar nela a definitiva liberdade e a realização das aspirações humanas mais profundas, isto é, de encontrar resposta completa para as suas exigências. De fato, se o homem não encontra uma resposta para essa aspiração, para essa exigência, tudo se torna relativo, tudo é opinável e nada será capaz de capturar todo o seu eu. Ao invés disso, o Papa disse: “À multidão de fiéis, especialmente aos jovens, quero repropor a luminosa figura do cardeal Newman, intelectual e crente, cuja mensagem espiritual pode ser sintetizada no testemunho de que a via da consciência não é o enclausuramento no próprio eu, mas abertura, conversão e obediência Àquele que é Caminho, Verdade e Vida” (Bento XVI, Audiência geral, 22 de setembro de 2010).
À luz disto, podemos entender o alcance do percurso que estamos fazendo para escapar da fratura entre saber e crer, que relega o crer para a esfera do subjetivo, da opinião pessoal, porque o homem não seria capaz de conhecer a verdade realizadora da vida.
Mas esse é um problema que diz respeito somente aos intelectuais, como Newman, ou tem a ver com todos nós?
Aqui adquire todo o seu alcance o apelo à conversão que o Papa está lançando insistentemente a toda a Igreja. Mas ninguém levará de fato a sério esse apelo se não o sentir urgente para si próprio. As canções que entoamos podem nos ajudar a entender essa urgência: “Era um homem mau, / mas mau, mau, mau” (C.Chieffo, “L´uomo cattivo”, Il libro dei canti, Jaca Book, Milão 1976, p. 291). O termo “mau” tem aqui o significado de “imoral”, mas não no sentido costumeiro, em que o reduzimos a incoerência ética, mas no sentido mais profundo de uma inadequada relação com o Ser. Diz Dom Giussani: “Uso a palavra moral ou moralidade em seu sentido mais profundo, substancial, que é a postura da pessoa frente ao Ser, isto é, frente à vida, à existência, como origem, consistência, destino” (L. Giussani, L´io rinasce in un incontro 1986-1987, Bur, Milão 2010, p. 42). Que esse é o sentido da palavra, aqui podemos vê-lo pela sequência do canto. Quando se levantava de manhã, não sentia remorso por algo que estivesse errado, não: “Quando se levantava de manhã, / tudo o incomodava, / a começar pela luz; até o café com leite”. E nós podemos até ter feito o encontro cristão, e também acordar de manhã e se incomodar com tudo, bem o sabemos. Mas isso não é obstáculo para o Senhor: “O Senhor do céu / tantos presentes lhe mandava; ele apenas os observava, / e às vezes até mesmo reclamava deles”. O resultado dessa nossa incapacidade de captar a realidade tal como ela é, ou seja, dom, presente, em sua verdade – o que nos levaria a ser gratos, a expressar gratidão tão logo abrimos os olhos – o resultado é ficarmos impedidos de fazer a experiência de realização da vida, como se vê pelo fato de que o que prevalece é a lamentação como sentimento último de si mesmo.
Não existem santos, caros amigos! A vida não é poupada a ninguém, nem sequer depois do encontro cristão. Se olharmos lealmente, sem medo, para a nossa experiência humana, é difícil evitar a comoção quando cantamos I Wonder: “Enquanto caminho, debaixo do céu, [como um vagante desanimado posso sentir todo o maravilhamento, toda a admiração] me surpreendo de que Jesus tenha vindo morrer por uma pobre gente faminta como eu e você” (“I Wonder”, Canti, Cooperativa Editoriale Nuovo Mondo, Milão 2002, p. 283).
O mal-estar que experimentamos e a incapacidade de sairmos sozinhos de nós mesmos nos mostram como são pertinentes estas observações. Este mal-estar e este lamento podem se tornar a ocasião para que cada um de nós conheça quem é Cristo, porque “nós não sabemos quem ele era” (título da canção de A. e G. Roscio-A. e G. Agape, Canti, op. cit., pp. 206-207); se não ocorrer agora, nós não saberemos quem Jesus é verdadeiramente, mas com Ele, quando Ele acontece de novo, quando Ele vence em nós esse mal-estar, começamos a entrar no real, na verdade do real, como aquele homem mau: “Mas um dia se perguntou quem era/ que lhe dava a vida,/ um dia se perguntou quem era que lhe dava o amor”. Isto é, o homem começa a perceber verdadeiramente Quem lhe dá a vida. Começamos, então, a mudar a nossa posição frente às coisas e começamos a ver o que antes não víamos: “a cor da uva” e “a criança que lhe sorria”. Quantas crianças já tinha visto sorrir, mas de fato não as via! Então “pôs a mão no coração/ e chorou quase um dia inteiro”. É isso que possibilita ao Senhor nos dar tudo: “E Deus o viu e sorriu;/ tirou-lhe a sua dor,/ e depois lhe deu ainda mais vida,/ deu-lhe ainda mais amor”. A conversão, amigos, a consciência plena da realidade, tem um objetivo claro: mais vida, mais amor.
Uma pessoa me escreve: “Caríssimo padre Julián, foi muito difícil decidir lhe escrever, mas a insistência de um amigo foi uma boa razão para fazê-lo. O que está caracterizando a minha vida é o pedido, o pedido para que Cristo me comunique a Sua natureza. Há meses me separei da minha mulher e estou vivendo na dor e na dificuldade. Este ano, depois de anos de distanciamento do Movimento, voltei a participar das férias da comunidade, porque eu desejava que meu filho pudesse ver e participar de algo que é maior do que ele, do que eu, do que as circunstâncias dolorosas e difíceis que estamos vivendo. Depois de dois dias de stand by, onde eu ficava como espectador, essa coisa aconteceu comigo, sofri o impacto de um fato (eu, com minha dor, com minha angústia, com o meu nada). Um abraço que despertou meu coração de novo, e isso foi o início de uma proposta para a minha vida, que primeiramente partiu do meu coração e que encontrou vida na companhia em volta de mim. Embora indigno, me senti objeto de uma imensa misericórdia, senti que a vida estava de volta. O encontro com um amigo, o seu olhar, o olhar apaixonado dos rostos do dia-a-dia que estavam em torno de mim e que olhavam a todo momento a vida como um dom de um Outro e não tinham medo do próprio coração: ali entendi que nada sabia a respeito de Jesus, não havia entendido nada de Jesus, embora tivesse sido guia de uma comunidade, embora tivesse visto Dom Giussani. Eu não tinha entendido nada, e comecei a dizer: Eu quero Te conhecer, Jesus. Por muito tempo eu estive no Movimento e na Igreja pensando que sabia quem era Jesus, observando se os outros aderiam à minha ideia de Jesus e da vida, ou até mesmo verificando se Jesus se adequava à minha ideia. Conhecer esse amigo, a maneira como me olhava, embora sendo um desconhecido, alargou aquela fenda que tinha se aberto. O verão acabou sendo o tempo da memória (quantas vezes eu ouvi Dom Giussani dizer isso e experimentei fazê-lo, sempre naufragando no meu limite), o tempo para buscar esse olhar e ir aonde eu era olhado assim, aonde a realidade era olhada assim, e jogar-me dentro. Passei o verão girando pelo litoral, encontrando os amigos, revendo aquele olhar, li muito para rever esse olhar, por toda parte eu buscava aquele olhar. Assim, foi abrindo caminho dentro de mim a concepção profunda [isto é conversão!] de que eu sou um dom para mim mesmo, que eu sou um dom, e por isso a minha vida deve ser um pedido, se eu quiser respeitar a minha natureza. Assim, não passa um dia que eu não deseje aquele olhar, para aprender quem sou eu e conhecer adequadamente a realidade, e comecei a olhar assim, me surpreendi olhando tudo dessa maneira. Assim, não passa um dia sem que o meu pedido se torne uma disponibilidade à realidade, até querer encontrá-Lo todos os dias nos sacramentos e na oração, fundamento desse meu ser e da nossa unidade. Os problemas permanecem, a angústia sempre ataca e a dor, às vezes, é tão forte que chega a queimar na carne, mas isto não é objeção à verdade do que eu vi, à verdade daquele olhar, ou melhor, dentro da minha liberdade (tal como consigo, como posso), a dor escancara o meu pedido, é uma estranha e misteriosa convivência de dor, alegria e felicidade!”.
Olhemos para este testemunho: o que é que derrota o relativismo, essa redução da razão e da liberdade que nos impede de conhecer e de aderir à verdade que nos dá mais vida, mais amor? A contemporaneidade de Cristo, a única em condição de magnetizar a nossa razão e a nossa afeição quando encontra em nós a disponibilidade testemunhada por esse amigo. Não importa em qual estado nos encontremos, nem os anos em que ficamos afastados do Movimento.
Essa contemporaneidade, essa força de Deus, se torna presente por meio dos acontecimentos, ou de testemunhos como esses que vimos neste verão [europeu]. Mas o Senhor continua a ter piedade do nosso nada e nos presenteou com uma testemunha ainda mais espetacular: o próprio Papa. Ele é uma testemunha dessa vitória sobre o relativismo, não apenas por suas palavras, mas sobretudo pelo que testemunhou, pela maneira como se colocou. De fato, o Papa não defendeu apenas a natureza verdadeira do homem frente a qualquer redução, mas se dirigiu à pessoa sem reduções, ao que é mais original na pessoa, mais profundo do que todas as incrustações culturais: o coração; e o fez testemunhando hoje a paixão que Cristo tem pelo homem. Ele disse: “Nas quatro intensas e belíssimas jornadas transcorridas naquela nobre terra, tive a grande alegria de falar ao coração dos habitantes do Reino Unido, e eles falaram ao meu, especialmente com a sua presença e com o testemunho da sua fé. [...] Aos numerosos adolescentes e jovens, que me acolheram com simpatia e entusiasmo, propus que não perseguissem objetivos limitados, contentando-se com escolhas cômodas, mas que visassem coisas maiores, ou seja, buscar a verdadeira felicidade, que só se encontra em Deus. [...] Quis também falar ao coração de todos os habitantes do Reino Unido, sem excluir ninguém, sobre a verdadeira realidade do homem, sobre as suas necessidades mais profundas, sobre o seu destino último” (Bento XVI, Audiência geral, 22 de setembro de 2010).
O que o Papa testemunhou? Deu testemunho daquilo que Cristo é capaz de fazer com um homem que se torne disponível, que permita ser gerado por Ele. Cristo gera uma criatura tão nova que deixa a todos sem palavras. Isso se vê pelo uso da razão, testemunhado pelo Papa, por uma inteligência da fé que se torna inteligência da realidade, pela liberdade de se colocar sem ambiguidades frente à realidade, diante de todos, por uma humildade que desarma e que deixa todo mundo atônito, pela ingênua ousadia de dar um testemunho ardoroso, apaixonado e inteligente de Cristo. Todos ficaram sem palavras ao ouvi-lo. Basta consultar os jornais ingleses. Cito apenas um, o editorial do The Telegraph: “Alguém pode ter-se sentido ofendido com estas palavras, dado o fracasso do Vaticano – agora admitido corretamente por Bento XVI – na gestão dos graves crimes de uma pequena minoria do próprio clero. Mas suspeitamos que muitas outras pessoas tenham colocado de lado as próprias reservas em relação à Igreja e confessaram a si mesmas: Ele tem razão” (The Telegraph, 17 de setembro de 2010).
Esta é a humanidade que nasce da fé, uma estatura humana capaz de dar contribuição decisiva à vida dos homens. Quem de nós não desejaria uma humanidade assim, a capacidade de se colocar – em nossos ambientes de trabalho, como também nas universidades, na família ou no meio dos amigos, sozinhos ou em grupo – com esta inteligência e esta liberdade, com esta paixão por cada um? Para chegar a esse ponto, amigos, é preciso continuar o nosso percurso porque essa humanidade não se torna mecanicamente nossa; não nos iludamos: é preciso uma trajetória de conversão – como a de Newman – para derrotar dentro de nós a influência do relativismo, que dificulta o conhecimento da verdade, essa verdade que nos dá mais vida e mais amor.

2. As três reduções
Mas como o relativismo (este clima cultural que torna difícil a atuação dessa capacidade de conhecer a verdade da realidade) incide sobre nós, que encontramos o acontecimento cristão? De novo Dom Giussani se torna nosso companheiro de caminhada e identifica três reduções.

a) A primeira é a prevalência da ideologia sobre o Acontecimento: “A relação com a realidade que o homem vive de manhã até à noite pode ser uma iniciativa contínua, uma tentativa contínua frente ao que acontece e ao que ele experimenta; ou então o homem pode ser movido, pode deixar-se mover por algo, pode obedecer a alguma coisa que não nasce, não brota do seu modo de reagir às coisas que encontra, com as quais se depara, mas dos preconceitos [terrível!]. O ponto de partida do cristão é um Acontecimento. O ponto de partida de todo o resto do pensamento humano é uma certa impressão e avaliação das coisas, uma certa posição que alguém assume antes de enfrentar as coisas, sobretudo antes de julgá-las” (L. Giussani, L´uomo e il suo destino. In cammino, Marietti, Gênova 1999, p. 109). E isso acontece diante das mesmas coisas!
Ouçam o que um de vocês me diz: “Caro Julián, o caminho que você está nos levando a fazer revela-se cada vez mais determinante para mim e para muitos amigos. A Escola de Comunidade sobre a esperança (É possível viver assim?, Cia. Ilimitada, São Paulo 2008, pp. 147-210) fez emergir de modo clamoroso o problema: quantos de nós não viviam a certeza! Inclusive para pessoas que estava há muito tempo no Movimento, a vida se apoiava de fato em outras coisas e a esperança – efetivamente vivida – só se mantinha se as circunstâncias fossem favoráveis. Uma coisa importante foi repensar a minha responsabilidade (guio uma Escola de Comunidade, e sou o prior de um grupinho de Fraternidade), e percebi estar se tornando mera função: depois de tantos anos de Movimento temos sempre a respostinha correta, com a qual todos estão de acordo, vamos atrás de uma frase tirada de um outro livro de Giussani, fazemos outras citações apropriadas, o amigo mais velho nos diz sempre alguma coisa interessante que pontualmente citamos nos encontros; e tudo isso nos ajuda a nos sairmos bem. O problema é que raramente eu dava uma contribuição de experiência real, vivida à luz do que estávamos dizendo. Eu era o primeiro a não entrar na realidade com a hipótese que nos era sugerida, e, portanto, eu era o primeiro a ser enquadrado pelas circunstâncias. Frente aos problemas da vida, colocar-me diante das coisas que nos são ditas às vezes me irritava, porque eu queria algo que resolvesse o meu problema, não estava interessado em algo que me colocasse na posição justa; inclusive os testemunhos, paradoxalmente, às vezes até me deixavam incomodado, aumentavam o meu ceticismo; bem lá no fundo eu me dizia: o que aconteceu com eles jamais acontecerá comigo. Foi uma graça eu ter percebido isso! Os Exercícios foram um ponto de questionamento decisivo, comecei a enfrentar a realidade procurando estar consciente do desafio que lançávamos, e a esse propósito conto um fato que me impressionou bastante. Um amigo estava enfrentando a realidade do trabalho com uma superficialidade tal que me deixava chocado, colocando em risco um ótimo emprego que, se perdido, jogaria a numerosa família numa situação dramática; não dava bola para a realidade, deixava-se guiar pelo preconceito e pelo gosto pessoal. Isso me desagradava muito e eu dizia para mim mesmo: como isso é possível? Só que, refletindo sobre o que significava essa provocação, percebi que eu fazia a mesma coisa ao enfrentar a realidade. Portanto, o Mistério, através daquela circunstância, estava me corrigindo. Surpreendentemente fiquei comovido, me senti amado como nunca, e desde então começou na minha vida uma dinâmica nova: a realidade começa (devagarzinho, mas está começando) a ser o lugar onde Alguém nos chama, e isso dá um gosto até então desconhecido. Antes eu tinha a impressão de que nada de novo poderia acontecer no quotidiano. Agora acontece sempre tudo – ou melhor: Tudo –, as situações, inclusive as pesadas, começam a ser enfrentadas com ímpeto, ousadia, com o desejo renovado de ir em frente. É evidente que essa energia não vem de mim! Como fico comovido e maravilhado ao ver tão claramente que Cristo me transforma! E quem seria, se não Ele? Outras vezes eu diria ceticamente Sim, agora é assim, mas depois tudo voltará ao que era antes; isso não me importa mais: Ele próprio pensará em reconstruir tudo, até que eu O reconheça de novo, comovendo-me mais uma vez. Somente o meu não, com as mãos tapando os olhos, pode impedir o meu renascimento”.
Esse amigo nos testemunha, de maneira positiva, que sem que o homem perceba, é como se no juízo sobre as coisas se infiltrasse um discurso já ouvido (a palavra justíssima, a respostinha, o preconceito que faz aparecer bem). Todo este ideologismo é mais comum do que pensamos! Ao invés, o cristianismo é um acontecimento, e por isso está presente; e o ponto de partida do cristão não é a ideologia ou preconceito, mas um acontecimento. Só o reconhecimento deste fato impede que nos tornemos escravos de uma ideologia, que é o desenvolvimento lógico do preconceito. A última forma da ideologia é a negação dos fatos, que tornam esse acontecimento contemporâneo, agora, deixando-nos à mercê da interpretação: Não existem fatos, só interpretações (F. Nietzsche, Frammenti postumi 1885-1887, in Opere, Adelphi, Milão 1975, vol.VIII, fr. 7 (60), p.299).
Dá calafrio só de pensar na encruzilhada em que nos encontramos: “A Sua presença tornou-se visível, tangível e experimentável pelo fato de mudar a vida das pessoas que estão na comunidade, na companhia. Por isso, a lucidez com que se percebe o testemunho de alguém, do outro – mesmo não sendo ele o chefe –, a agudeza com que se percebe o testemunho, ainda que furtivo, todo discreto, presente nas pessoas da comunidade, é o sinal mais grandioso da honestidade de que falávamos antes. Inversamente, não existe nenhum sinal maior da desonestidade do que, dentro da companhia, notar os defeitos. Similes cum similibus facillime congregantur: a pessoa capta o que é semelhante a si. Se em você predomina o mal [mau, mau, mau], você viverá lamentando o mal; se em você predomina a busca da verdade, você descobrirá a verdade” (L. Giussani, Uomini senza patria 1982-1983, Bur, Milão 2008, p. 277). Essa é a tentativa extrema de evitar a conversão: negar a existência dos fatos, dos acontecimentos (porque se o cego de nascença não fosse curado, aí os judeus não precisariam mudar de atitude; portanto, basta negá-lo, para se continuar teimosamente no próprio caminho).
b) Introduzo uma segunda redução: a redução do sinal a mera aparência. “Se o homem cede às ideologias dominantes, surgidas da mentalidade comum, verifica-se uma luta, uma divisão, uma separação entre sinal e aparência; daí se segue a redução do sinal a mera aparência. Quanto mais se tem consciência do que o sinal é, mais se entende o desastre de um sinal reduzido a mera aparência. O sinal é a experiência de um fator presente na realidade que me remete a outro. O sinal é uma realidade experimentável, cujo sentido está em outra realidade; o sinal revela o significado conduzindo a uma outra realidade. Por isso, não seria razoável, humano, esgotar a experiência do sinal ao seu aspecto perceptivamente imediato, ou aparência. O aspecto perceptivamente imediato de qualquer coisa, a aparência, não mostra toda a experiência que temos das coisas, porque não fala do seu valor de sinal” (L. Giussani, L´uomo e il suo destino. In cammino, op. cit., p. 112).
Vejam este testemunho: “Oi, Julián, desejo contar-lhe um fato que aconteceu comigo durante o pré-Meeting (eu trabalho na preparação, como sempre, repartindo as responsabilidades com outros), fato que, sem aquilo que você nos mostrou nestes anos, pelo modo como mergulhamos no que acontece e no trabalho de Escola de Comunidade, teria deixado tudo escorrer pelos dedos, como água. O fato é o seguinte: uma noite, depois do trabalho na feira, fui jantar com alguns amigos de Cremona e de Milão, e um deles me diz: ‘Está conosco um jovem que não é do Movimento e eu o convidei para vir também. Algum problema?’. Absolutamente não, lhe digo. E assim nos encontramos num pequeno restaurante à beira da praia, para comer peixe. Esse jovem é um operário de 23 anos e, não sendo do Movimento, não sabia o que seria o Meeting, nem o que esperar dele. De repente, ele intervém: ‘Nestes dias na feira, vi logo os estandes em que vocês trabalham e quais os estandes nos quais trabalham os operários das firmas de preparação de eventos’. Eu fiquei impressionado com essas palavras dele, era a primeira vez que participava do pré-Meeting e estava na feira há apenas dois dias. No dia seguinte, procurou por toda parte um padre para se confessar (o que não fazia há seis anos). Esse fato – a clareza do juízo que deu repentinamente na noite anterior e o que aconteceu no dia seguinte – me provocou e me questionou profundamente. Eu me perguntei: Mas o que foi que ele viu? Exatamente o que viam os meus olhos e os olhos de todos os outros que giravam pela feira, nada mais e nada menos, e ninguém fez nenhum discurso nem sermão para ele. Mas, então, como é que a mesma coisa provocou um empurrão no coração dele, ao passo que para mim era tudo normal e óbvio? Mas, então, para reconhecer a grande Presença é mesmo verdade que o problema não é o que vejo, não precisa de fato sensacional, mas tudo depende de como eu estou diante da realidade, tal como ela vem ao meu encontro! Não pude deixar de lado esse fato, e a partir daquele momento tudo mudou para mim: as coisas eram as mesmas de todos os dias, mas tudo era diferente e quando terminou o Meeting voltei para o trabalho, e estava ansioso para recomeçar a trabalhar, porque entrar na realidade com esse olhar desejoso de descobrir como eu seria surpreendido pelo Mistério, quais fatos aconteceriam dentro da normalidade do trabalho, é justamente aquilo que mais desejo, porque nada, nada mesmo, é contra mim. Obrigado por estar nos desafiando, acompanhando-nos paternalmente, mas sem poupar-nos de nada”.
Dom Giussani explica isso muito bem: “A grande tentação do homem é esgotar a experiência do sinal, de uma coisa que é sinal, interpretando-a apenas em seu aspecto perceptivamente imediato. Não é razoável, mas todos os homens são levados, pelo peso do pecado original, a ser vítimas do aparente, do que aparece, porque soa como a forma mais fácil da razão. Há uma certa atitude de espírito que faz mais ou menos isso com a realidade do mundo e da existência (as circunstâncias, a relação com as coisas, a família a ser constituída, os filhos a educar...): acusa o golpe, mas breca a capacidade humana de penetrar nele à procura do significado, para o qual inegavelmente o fato mesmo da nossa relação com a realidade solicita a inteligência humana. Ou seja, bloqueia-se a própria capacidade da inteligência humana de penetrar nele em busca do significado, para o qual somos solicitados pela nossa relação com o que nos impressiona. A inteligência humana não pode deixar de deparar com alguma coisa sem perceber que ela, de algum modo, é sinal de uma outra realidade, insinua a existência de uma outra realidade. Um eco desses conceitos podemos encontrar numa afirmação de Hannah Arendt: A ideologia não é a ingênua aceitação do visível, mas a sua inteligente destituição. A ideologia é a destruição do visível, a eliminação do visível como sentido das coisas que acontecem, o esvaziamento do que vemos, tocamos, percebemos. Assim, não temos mais relação com nada. Quando Sartre fala das suas mãos – Minhas mãos, o que são as minhas mãos? –, define-as como a distância imensurável que me divide do mundo dos objetos e me separa deles para sempre, operando assim uma destituição do visível, do aspecto contingente. A destituição do contingente é, por exemplo [vejam como Dom Giussani expõe plasticamente a coisa], afirmar que o que acontece acontece porque acontece, evitando assim o impacto e a exigência de olhar o presente, um determinado presente, em sua relação com a totalidade” (Ibidem, pp. 112-113).
Assim, não precisamos mais mudar, não precisamos mais nos converter. Eu fico realmente atônito diante de certas interpretações que esvaziam o que acontece entre nós...
Dom Giussani termina esse ponto alertando-nos para a luta que se dá atrás dos bastidores: “A sensibilidade para perceber todas as coisas como sinal do Mistério é a tranquila verdade do ser humano [já o vimos: até o recém-chegado é capaz de fazê-lo]. A ela se opõe a tirania de quem tem nas mãos o poder, motivado por uma ideologia que nega esta consideração que o homem atribui a uma coisa” (Ibidem, p. 114).

c) Por que acontece isso? Pela terceira redução, isto é, porque reduzimos o coração a sentimento: “Nós tomamos o sentimento, e não o coração, como o motor último, como a razão última do nosso agir. O que isto quer dizer? Que a nossa responsabilidade se torna vã justamente por ceder ao uso do sentimento como predominante sobre o coração, reduzindo assim o conceito de coração ao de sentimento. Ao invés, o coração representa e age como o fator fundamental da personalidade humana; o sentimento não, porque tomado sozinho o sentimento age como reatividade, no fundo é animalesco. Ainda não compreendi – diz Pavese – qual a tragicidade da existência [...] No entanto, é clara: é preciso vencer o abandono voluptuoso e deixar de considerar os estados de espírito como escopos em si mesmos. O estado de espírito tem outro objetivo, para ser digno: tem o objetivo de uma condição colocada por Deus, pelo Criador, através da qual nos purificamos. Ao passo que o coração indica a unidade de sentimento e razão. Isso implica uma concepção de razão não bloqueada, uma razão segundo toda a amplitude da sua possibilidade: a razão não pode agir sem o que se chama de afeição. É o coração – razão e afetividade – a condição da atuação sadia da razão. A condição para que a razão seja razão é que seja revestida de afetividade e assim mova o homem todo. Razão e sentimento, razão e afeição: esse é o coração do homem” (Ibidem, pp. 116-117).

3. A vitória sobre o relativismo: a memória
Esta observação de Dom Giussani pode nos ajudar a identificar o caminho da vitória sobre o relativismo, e com isso pretendo terminar.
Quando nos surpreendemos vendo o acontecimento prevalecer sobre a ideologia, o sinal sobre a aparência, o coração sobre o sentimento? Poderíamos colocar diante dos olhos uma imagem que facilitasse essa compreensão? Eu, como vocês, estou cercado por testemunhos, por fatos excepcionais que me deixam maravilhado, porque documentam a contemporaneidade de Cristo. E eu me perguntava: Mas quando foi que esses fatos me levaram a reconhecê-Lo? Ajudou-me muito o critério que Dom Giussani nos oferece: “Quando pensamos n’Ele seriamente, com coração, no último mês, nos últimos três meses, de outubro até agora? Nunca. Não pensamos nunca n’Ele como João e André pensavam enquanto o ouviam falar. Se fizemos perguntas sobre Ele foi por curiosidade, análise, exigência de análise, de busca, de esclarecimento. Mas que tenhamos pensado n’Ele como alguém realmente apaixonado pensa na pessoa pela qual se apaixonou (mesmo aqui rarissimamente acontece, pois tudo é calculado com base no retorno!), puramente, de modo absolutamente, totalmente distanciado, como puro desejo de bem...” (Giussani, É possível viver assim?, 2ª ed. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2008, p. 272-274).
Aí se contrapõem dois modos de conhecer. Pensar n’Ele seriamente, com o coração, significa pensar como João e André pensavam n’Ele. Olhavam-no enquanto falava, totalmente tomados, magnetizados pela Sua presença, onde a razão, que os ajuda a entrar nas profundezas do mistério daquela pessoa, era salva pela afeição. Como isto é diferente da prevalência da mera curiosidade, análise, pesquisa para esclarecimento, onde a razão é reduzida a mero instrumento – o sinal reduzido a aparência –, porque separada da afeição. Que diferença abissal! Quem conhece melhor: o que pensa como o apaixonado pensa na pessoa amada ou quem está ali para fazer uma análise? Como gostaríamos de ser olhados? Quem captaria melhor o valor do nosso eu? A verificação de que saímos dessa redução de nós mesmos – que somos razão e afeição – e da realidade é quando surpreendemos em nós mesmos a experiência sintética de João e André; porque aí, nesse encontro, aconteceu a primeira vitória sobre o relativismo, e portanto isso nos oferece o critério para reconhecê-la sempre.
Com essas palavras, o que Dom Giussani está descrevendo? A memória: “Assim, o cristianismo é um acontecimento e, por isso, está presente, está presente agora, e a sua característica é que está presente como memória; onde a memória cristã não é idêntica a lembrança, ou melhor, não é lembrança, e sim a própria Presença novamente” (L. Giussani, L´uomo e il suo destino. In cammino, op. cit., p. 111). O cristianismo nasce como acontecimento que se encarna no presente como memória. E a memória é o conteúdo da consciência do cristão. Entendemos bem isso olhando João e André: era Cristo quem dominava o olhar deles, e por isso a memória é a vitória sobre o relativismo, porque fomos criados para conhecer o Cristo. O que nos falta é “a existencialidade da memória” (L. Giussani, L´io rinasce in un incontro, op. cit., p. 47), não a temos nem mesmo no canto dos olhos, nos diz Dom Giussani.
Quanto ainda temos que caminhar na conversão para que isso se torne familiar! Basta vê-lo em quão poucas vezes surpreendemos em nós a experiência de João e André enquanto O olhavam falar, e percebo quando, pela graça de Deus, fui salvo de mim mesmo, pela redução em que havia caído. Aconteceu comigo esta semana, em diversas ocasiões em que eu estava todo apegado a algo que eu estava vendo através da pessoa que me contava a história; por exemplo, fiquei de boca aberta quando uma pessoa me contava como, no momento culminante de um namoro, se surpreendeu ao perceber a imponência da presença de Cristo, que a deixou inteiramente inquieta: essa pessoa é a primeira a ser vencedora nessa situação. E isso facilita em mim fazer novamente no presente a experiência de João e André, tanto é verdade que me surpreendi, na manhã seguinte, enquanto fazia o silêncio, a pensar naquelas pessoas que me haviam arrancado da minha redução para ficar todo magnetizado com a Sua presença.
Sem esse acontecimento, a ruptura entre saber e crer não pode ser superada, e o relativismo vence, porque nada consegue magnetizar totalmente o meu eu. Isso revela, ainda, quanta atenção precisamos dedicar ao real, que exigência precisamos ter de Cristo: que se torne carnalmente presente. Nós podemos reduzir João e André a uma lembrança do passado, e não fazer deles o critério para julgar a nossa experiência agora. Com o uso do episódio evangélico que vimos, Dom Giussani tira João e André da possível redução sentimental, fazendo deles o critério para reconhecer a vitória sobre o relativismo.
Para alguns começa a ser assim: “Caro Julián, tenha paciência, mas de vez em quando não resisto à vontade de lhe escrever, já que não posso conversar pessoalmente com você. Quando encontrei um amigo recém-chegado da última Assembleia Internacional dos Responsáveis, creio que compreendi o que a mulher de André e seu irmão Simão viram quando ele voltou do encontro [com Cristo]. Não lembro de nenhuma palavra do que o amigo me disse (inclusive porque ele estava muito agitado), mas observei seus olhos, seu coração, e esperei ansiosamente chegar pelo correio a revista, com seu precioso suplemento. Só esta noite, finalmente, a recebi. Na página 8 fiquei paralisado. Você diz [na realidade, é Dom Giussani quem diz]: Quando foi que pensamos n’Ele seriamente, com o coração, no último mês, nos últimos três meses, de outubro até agora? Nunca”. Perdoe-me, mas do fundo do coração gostaria de dizer: Sempre. Não conseguiria nem respirar se todo dia não O encontrasse desse modo. É assim, eu não posso mais viver sem que todos os dias suceda isso. Eu lhe agradeço de coração porque o trabalho feito este ano com você, seguindo-o tão de perto que até sinto fisicamente a sua respiração, me tornou capaz de não desistir jamais, de mergulhar em cada circunstância da vida, feia ou bonita, positiva ou negativa, e ficar comovido só diante do maravilhamento de tal evidência, totalmente doada, totalmente gratuita. Quero dizer que Ele está presente sempre, tanto na luminosidade do sol quanto na chuva insidiosa ou na escuridão pesada da noite; e é sempre relação viva, e quando não há relação, dos dois, nunca é Ele que está faltando”.
Qualquer que seja a forma através da qual acontece agora, a vitória sobre o relativismo terá sempre como critério aquele apego único a Cristo presente, que João e André documentam para sempre e que não poderá jamais ser reduzido a uma nossa análise e menos ainda a um comentário ou a uma mera emoção. Sinais dessas reduções são o mal-estar e a lamentação. A alternativa ao mal-estar e à lamentação é a vida como memória: “Viver é a memória de Mim”! E por isso Dom Giussani insiste: “Para esta luta diária contra a lógica do poder, para esta vitória quotidiana sobre o aparente e o efêmero, para afirmar esta presença constitutiva das coisas em seu destino que é Cristo, que movimento pessoal é necessário! É a revanche da pessoa sobre a alienação do poder. Que movimento pessoal!” (L. Giussani, L´io rinasce in un incontro, op. cit., p. 194). Este movimento pessoal é a conversão.
Amigos, temos que decidir o que fazer quando crescermos: continuar a nos contentar com “segundas opções”, como as descreveu o Papa aos jovens britânicos (dinheiro, carreira, etc.), continuando a ser levados pela onda, sem jamais tomar posição séria em relação a Cristo; ou entregar-nos a Ele. O problema para muitos de nós é que já somos adultos e o tempo voa. Por isso, no início deste ano faço votos de que vocês decidam, peçam, mendiguem para pertencer a Ele, cedam à atração d’Ele. Só assim poderemos ver acontecer em nós a derrota do relativismo. Basta não nos contentarmos com menos do que Ele, como nos testemunha o décimo leproso. Graças a Deus há entre nós cada vez mais pessoas que não se contentam com a cura, nem com a bela companhia dos outros nove: assim como o décimo, é Ele que querem! A companhia verdadeira é feita por “décimos leprosos”, por pessoas como o décimo leproso. Esta é a nossa responsabilidade, depende de nós. Neste sentido, o trabalho pessoal e a responsabilidade pelos outros coincidem. Por isso, a frase de Dom Giussani – A responsabilidade é a conversão do eu ao acontecimento presente – é um resumo do que nos cabe: não poderemos dar uma contribuição para a vitória sobre o relativismo se nós, por primeiro, não cumprirmos a trajetória. Se caminharmos juntos, poderemos nos tornar uma presença, uma diversidade na sociedade, mostrando a verdade do que o Papa diz e testemunha. Cada um de nós precisa estar bem consciente da responsabilidade diante de Deus, do trabalho que somos chamados a realizar, para podê-lo testemunhar em qualquer ambiente.
Como testemunha um presidiário: “Olhando para mim mesmo, hoje, tenho a consciência de que, me libertando dos estereótipos e das cadeias sociais e culturais posso entrar numa realidade nova. Esta beleza é única, irrepetível”.

HOMILIA NA SANTA MISSA
JULIÁN CARRÓN


O sinal mais simples de que o cristianismo é um acontecimento, e não uma ideologia, é justamente o gesto que estamos celebrando. E até que ponto a ideologia cresce em nós ou incide sobre nós se vê pelo fato de que muitas vezes pensamos que esse gesto é apenas um adendo à coisa realmente importante, que seria a palavra. No entanto, a Igreja desafia constantemente essa redução que nós fazemos do cristianismo, convidando-nos a participar de um acontecimento, do acontecimento da Sua presença agora, que é este gesto eucarístico, onde nos é proposta de novo a Palavra, com toda a Sua força, no seio deste acontecimento da Sua presença, que veremos ocorrer na transformação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo.
Isso não é ideologia; é um evento. É dentro desse evento que podemos entender toda a dimensão, toda a importância que damos à conversão. Ele, presente em nosso meio, contemporâneo a nós, nos dirige esse chamado à conversão por meio das leituras (Am 6,1.4-7 e 1Tm 6,11-16) que acabamos de ouvir, e que nos dizem qual é o alcance do chamado à conversão.
Podemos estar aqui – como diz o profeta Amós – despreocupados e seguros, sem entender verdadeiramente que o problema dos problemas é a relação da vida com o Mistério, como o homem da parábola, que vivia todo distraído, atento a outras coisas. Mas – como nos diz São Paulo – há Alguém que nos chama: “Procure alcançar a vida eterna”, porque essa é a questão, amigos, como o Mistério evoca de novo e tantas vezes.
Mas conosco acontece como àquele homem rico do Evangelho, cuja passagem acabamos de ouvir (Lc 16,19-31), o qual, tão logo chega ao outro lado da vida, toma consciência da verdade, da dimensão eterna da vida, se apressa em ajudar às pessoas que ama, à sua família; e o que lhe ocorre pedir a Abraão? “Peço-lhe que mande Lázaro à casa do meu pai, porque tenho cinco irmãos. Advirta-o severamente para que eles também não venham parar neste lugar de tormento”. “Mas Abraão respondeu: eles têm Moisés e os Profetas. E ele: Se algum dos mortos for até eles, se converterão. E Abraão respondeu: Se não escutam Moisés e os Profetas, não serão convencidos nem que alguém ressuscite dos mortos”.