Um encontro para entrar na realidade

Página Um
Giancarlo Cesana e Julián Carrón

Notas dos depoimentos de Giancarlo Cesana e Julián Carrón no Dia de Início de Ano dos adultos de Comunhão e Libertação da Lombardia (Itália). Fiera-Rho, 29 de setembro de 2007


JULIÁN CARRÓN

Um homem que reconhece sua necessidade, que se reconhece necessitado, não sente nada que seja mais adequado a sua natureza do que pedir. Mesmo nós, que encontramos Cristo, somos necessitados, mas sabemos que a única possibilidade de não reduzir nossa necessidade às nossas medidas é dirigir um pedido ao Único que pode fazer Cristo se tornar realmente nosso, que pode revelá-Lo aos nossos olhos, à nossa experiência: o Espírito Santo.
Portanto, comecemos nosso gesto com toda a consciência de sermos homens, pedindo esse Espírito, pois só Ele pode abrir nossa inteligência, nosso coração à medida de Cristo.

Ó vinde, Espírito criador

GIANCARLO CESANA

Para introduzir, vou fazer uma breve síntese do trabalho que fizemos ao preparar este encontro na Diaconia Regional (grupo de responsáveis de CL).
O discurso do Papa em Regensburg, que serviu de base para o Dia de Início do Ano passado, evidenciou que escancarar a razão é reconhecer o Mistério presente na realidade. Lembrem-se do que Carrón dizia: quando ouvimos o Papa, ficamos comovidos, mas a nossa adesão à posição dele, se não corresponde a um reconhecimento do Mistério presente na realidade, é como a adesão a um partido. E isso, na vida, no fundo não serve nem para nós nem para os outros.
Portanto, escancarar a razão é reconhecer o Mistério presente na realidade, e é uma necessidade nossa: a razão é um dote fundamental que se deve ter na vida; portanto, o reconhecimento do Mistério é uma necessidade. Por quê? Porque, diante da realidade, precisamos assumir uma posição, fazer uma opção positiva; precisamos reconhecer o positivo que existe na realidade, do contrário o que vence é a morte, a contradição, e a vida nos sufoca. Porque a vida nos sufoca quando falta o sentido, o significado, a possibilidade de reconhecer, de perceber Quem é que a faz positivamente. Como dizia Berdiaev: “A verdade deve ser realizada na vida”1.
Nós todos reconhecemos a amizade, a nossa amizade, como a realidade que em maior medida é portadora do Mistério, do Mistério que faz todas as coisas, de Cristo (Cristo é o nome do Mistério, Ele mesmo é Mistério). Mais ainda, se a nossa amizade – como se disse na Diaconia Regional – não chama a atenção para o Mistério, não chama a atenção para esse fator positivo do qual todas as coisas dependem (o Mistério é a evidência de uma presença que não possuímos, mas que ainda assim é evidente, não é algo escondido); se a nossa amizade, a nossa companhia, o próprio gesto cristão, não chama a atenção para isso, ela se torna uma complicação. Aliás, às vezes se torna mesmo insuportável.
Portanto, aquilo para o qual a vida deve tender continuamente é viver o ordinário de maneira extraordinária, viver a banalidade de maneira excepcional. Como disse João Paulo II em 1980, falando de São Bento: “Era necessário que o heróico se tornasse cotidiano e o cotidiano se tornasse heróico”2. Foram essas palavras que serviram de base para o nascimento da Fraternidade de Comunhão e Libertação; elas se referem aos tempos de São Bento, mas também aos nossos tempos, igualmente obscuros.
Sábado passado, visitei a Cheese, a bienal do queijo, na cidade de Bra (peço desculpas por falar de um episódio tão corriqueiro), e encontrei Carlin Petrini, fundador da associação Slow Food. No jantar, acabamos discutindo sobre os transgênicos e, para defender sua opinião (ele, que se diz agnóstico e de esquerda, é contra os transgênicos; eu, a favor), ele começou a falar com entusiasmo do amor que os homens do campo da América Latina ou da África têm pela terra cultivada naturalmente. Eu observei: “Certo, mas o que você está me dizendo é uma exceção: como é que isso vai mudar o mundo?”. Ele me parou e disse: “Mas você sabe e eu também que nós vivemos das exceções”.
É preciso uma exceção, é preciso que a vida seja heróica, não porque a vida é contrária à banalidade, mas porque a exceção a ilumina. Como quando um rapaz está apaixonado e a garota lhe diz “sim”: o mundo é igual, mas é diferente; a luz é diferente, os sabores são diferentes, os relacionamentos são diferentes, tudo o que ele faz é diferente, as dificuldades são diferentes. A diferença que torna possível viver o ordinário, portanto, está na afeição, que significa estar ligado, em sentido passivo e ativo, ligado pela e à verdade, vivendo intensamente a realidade. A presença do Mistério se impõe: a nossa vida é mistério; a realidade é mistério; o mundo é mistério. A nossa liberdade é que vai e vem. Algumas vezes, temos a impressão de que é o contrário, mas isso não é verdade: para ver a presença do Mistério, é preciso pedir, sempre!
Como escreve Dom Giussani em Da utopia à presença: “O juízo de valor é a questão primordial da vida”3.
“A palavra ‘afeição’ é a maior e mais abrangente de todo o nosso vocabulário”4.
“Quando um jovem olha para sua garota e lhe vem o pensamento: ‘Nem um cabelo da tua cabeça será perdido’, isso é como um vulcão de ternura, de comoção e de segurança. É uma gratidão sem fim o que a pessoa experimenta! Mas, se for um grosseirão incapaz de amar, ou um abstrato que vive falando de ‘Jesus Cristo significado da vida’ mas não o relaciona com seu amor pela garota...”5.
“Esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo”6, disse São Paulo, pois é isso que enche a vida daquela intensidade que a torna – como dissemos – heróica.
No extraordinário, nos eventos excepcionais – sejam eles positivos ou negativos –, parece mais fácil buscar e pedir Cristo. Já no ordinário parece duro, difícil, mas óbvio não é de jeito nenhum; pelo contrário, é quase mais essencial, pois a vida transcorre em momentos ordinários. Por isso, nós perguntamos: qual é, nessa busca, a nossa responsabilidade pessoal? Que ajuda a nossa amizade pode nos dar?

CARRÓN
Como lembrou Giancarlo, no início do ano passado tudo girava em torno do desafio lançado pelo papa Bento XVI a respeito da questão da razão, da necessidade de expandir a razão. Concluímos o ano social com os Exercícios da Fraternidade, chamando nossa atenção para a religiosidade, para a insistência obstinada de Jesus na religiosidade. As duas coisas se iluminam mutuamente. Que significa expandir a razão? Significa viver a religiosidade, ou seja, reconhecer o Mistério. E o que é a religiosidade? O ponto mais alto da razão. Por isso, a razão não realiza sua verdadeira natureza de razão se não se abre à religiosidade; e a religiosidade continua a ser apenas um sentimento, se não coincide com a nossa natureza racional. João Paulo II dizia isso desta forma, num discurso citado em nota na Fides et Ratio: “Quando o porquê das coisas é procurado a fundo em busca da resposta última e mais exauriente, então a razão humana atinge o seu vértice e abre-se à religiosidade. De fato, a religiosidade representa a expressão mais elevada da pessoa humana, porque é o ápice da sua natureza racional”7. É isso que nos impede de aplicar à razão e à religiosidade qualquer uma das reduções vigentes entre nós, ou na nossa cultura, que também nos influencia.
Mas, se a religiosidade é a expressão mais elevada da natureza racional do homem, ela é o conhecimento da realidade, não algo à parte da realidade; é o conhecimento verdadeiro, até o fundo, da realidade (se fosse algo à parte, não me interessaria). Isso é fundamental, pois nós não descobrimos a religiosidade principalmente graças aos gestos religiosos que fazemos, mas pela maneira como nos posicionamos na realidade e a vivemos, até chegar a reconhecer o Mistério presente. E isso nos permite entender por que Jesus insiste tanto na religiosidade.
Às vezes, entre nós, é como se o fato de termos vivido o encontro cristão obstruísse a tendência contínua a conhecer a realidade em sua totalidade, é como se nós já soubéssemos: “Deparamos com o Mistério presente num encontro: isso já não é suficiente?”. Tanto assim, que não raro vemos em muitos de nós (como eu direi depois), não um desejo de entrar mais na realidade, mas de levar uma vida – de certa forma – à parte.
Para entender como o encontro cristão não obstrui, mas abre, porque torna possível que a razão se escancare ao máximo, basta olhar para a própria vida de Jesus. Não é verdade que Jesus não teve de fazer o percurso da vida, ou que – por ser Deus – foi poupado de alguma coisa. Jesus viveu todas as dificuldades, até o sofrimento e a morte, como nos diz a Carta aos Hebreus: “Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte. [...] [Mas,] mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu [aprendeu; sendo Filho, aprendeu]. Levado à perfeição [Ele adquiriu Sua perfeição por meio da vida, por meio das coisas que sofreu], tornou-se [assim] causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem. De fato, ele foi por Deus proclamado sumo sacerdote na ordem de Melquisedec”8. Vocês estão entendendo? Essas coisas são ditas a respeito de Jesus, que, afinal, alguma religiosidade devia ter! Mas nem mesmo por ser Filho foi poupado de alguma coisa; aliás, foi justamente atravessando tudo, até o sofrimento e a morte, que se tornou Senhor de tudo. Tomou posse de tudo justamente “por meio”, não “à parte”, de tudo o que teve de suportar e sofrer. Em outras palavras, não chegou esquivando-se da realidade, mas por meio da realidade.
Portanto, a insistência na religiosidade é para nos introduzir na realidade segundo a sua totalidade, para que possamos possuí-la e ao seu significado de uma maneira verdadeira. Na Ascensão – como Dom Giussani sempre nos lembrou –, Jesus se tornou Senhor da realidade; por meio da sua vida – esse é o valor da sua vida –, chegou até a raiz das coisas, do tempo, da história. Sendo assim, a vida não pára para nós depois do encontro com Ele, nós sabemos muito bem disso, e não podemos aplicar à vida determinados conceitos, como se nos poupássemos do caminho que temos de fazer; pelo contrário, é justamente o encontro que nos permite percorrer este caminho: não nos poupa dele, mas nos permite percorrê-lo em Sua companhia, com a Sua força. É isso que temos de procurar entender: qual é o caminho a ser percorrido.
Por isso, Dom Giussani diz (é uma coisa que nós já lemos, pois voltamos a trabalhar sobre isso na Escola de Comunidade): “Jesus Cristo foi o tipo físico concreto dessa humanidade nova. Perguntavam-se o que ele pretendia, de tão semelhante que era com os outros; quando falava, utilizava-se de palavras e idéias de seu povo. No entanto, era um outro mundo que Ele revelava, um mundo decerto não estranho ao homem, mas que os olhos e o coração das pessoas, antes inexperientes, viam nascer diante e dentro de si. ‘Em verdade, em verdade te digo, se alguém não nasce do alto não pode entrar na realidade verdadeira’ [não pode entrar na realidade], disse Jesus a Nicodemos”9. E Dom Giussani continua: “O cristianismo é um novo modo de viver este mundo. É um tipo de vida nova: não representa primeiramente certas experiências particulares, certas maneiras, gestos além dos comuns, certas expressões ou palavras a se acrescentar ao vocabulário habitual: o cristão usa o vocabulário que todos os homens usam, mas o significado das palavras [o peso] é diferente; o cristão olha toda a realidade assim como quem não é cristão, mas o que a realidade lhe diz é diferente, e ele reage de maneira diferente”10.
Portanto, toda a alternativa está aqui: ou fazer gestos diferentes, determinados gestos “nossos”, à parte dos gestos dos outros, ou entrar na realidade. Se vocês decidirem pela primeira opção, vou-me embora, isso não me interessa. E não é verdade que isso não acontece entre nós. “Nós só fazemos o Movimento por completo”, me escreve um de vocês, “com toda a sua consistência, nos momentos religiosos, ou seja, na Escola de Comunidade, nos Exercícios, etc.; mas, fora desses momentos, não compartilhamos nada (gestos, juízos, convivência), como se, cumprida a nossa pequena obrigação, a vida caminhasse por um outro lado. Essa divisão acontece também no próprio gesto religioso: na Escola de Comunidade, nós fazemos o trabalho e depois saímos para jantar juntos, mas o problema é que esse jantar não tem nada a ver com o que fizemos antes; nós nos empanturramos e falamos de coisas fúteis”. Dá para ver isso na maneira como a pessoa se posiciona diante da realidade, diante das pessoas; tem gente que se posiciona na realidade trazendo um esquema: “‘Cuidado com eles’, é o que nos falam das pessoas que nos cercam, ‘cuidado com eles, são todos falsos’. Mas para nós esse foi um lugar de encontros humanos fascinantes e cheios de perspectivas de companhia”, continua a carta.
A pessoa pode ser de CL e viver em determinado lugar como se não fosse com ela, criando uma vida à parte, sobretudo uma vida completamente privada da atração da realidade, que nesse caso significa uma falta de maravilhamento diante dos amigos e de paixão pelo destino (não estou falando dos outros, estou falando de nós); e, assim, é impossível que a pessoa possa correr algum risco humano: ela já sabe, como nós todos sabemos Cristo; basta aplicá-lo de acordo com um esquema. Mas isso, além de entediante, não interessa de jeito nenhum para a vida!
O cristianismo que nos foi proposto é uma maneira nova de viver tudo, de entrar na realidade inteira, não é fazer gestos ou um discurso à parte, tanto assim que – continua Dom Giussani na Escola de Comunidade – “uma lealdade profunda com seu ambiente caracteriza o cristão: porque o lugar que Deus lhe confiou é dentro deste mundo, dentro das alegrias e das fadigas, lá onde nós estamos, no ambiente, isto é – conforme o significado da palavra – ‘naquilo que nos circunda’. Mas o cristão enfrenta esse pedaço de mundo, em que vive com adesão intensa, com um espírito e um coração novos, ‘que não nasceram do sangue nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo’”11. Jesus não veio para nos poupar do drama da nossa relação com a realidade, mas para torná-lo possível: fez-se companheiro para nos ajudar a entrar na realidade, para nos revelar o sentido de tudo.
Por isso, Dom Giussani sempre nos recordou – ele a citou milhares de vezes – a frase de Guardini: “No âmbito da experiência de um grande amor, [...] todas as coisas se tornam um acontecimento”12, como sabemos que acontece quando a pessoa se apaixona; tudo é iluminado (como Giancarlo nos lembrava há pouco): o trabalho, o tempo livre, as dificuldades... Tudo nos fala dele ou dela, ou seja, nos introduz mais no significado da realidade, e não permite mais que nos retiremos para nos deixar sufocar e, no final, nos cansar e procurar outra coisa.
Há uma frase de São Paulo que corresponde à de Guardini: “A mesma dinâmica”, escreve Dom Giussani, “é expressa por uma frase entusiasmante de São Paulo: ‘Esta minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e por mim se entregou’ (esse ‘por mim’ se dilata ao mundo inteiro e procura abraçá-lo para que todos o entendam). ‘Minha vida presente, na carne’: para viver o cristianismo não nos é pedido que renunciemos a nada, mas que mudemos a maneira de nos relacionarmos com tudo (‘até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados’ [...]). ‘Minha vida presente, na carne’, ou seja, na situação tal como ela é [não como eu gostaria que fosse, não como eu imagino, mas tal como ela é] – diante da menina que me fascina, na família, em que meu pai e minha mãe não param de brigar, ocupado com o trabalho doze horas por dia, doente, incapaz de fazer tudo o que preciso fazer, distraído, esquecido –, [tudo isso eu] ‘vivo na fé, crendo no Filho de Deus’, ou seja, pertenço a um Acontecimento [atenção!], a uma origem que muda a maneira de olhar [isso é expandir a razão]: a maneira de olhar se transforma em fé. Vivendo na carne, participo de um Acontecimento que me torna capaz de um entendimento novo, mais profundo e mais verdadeiro, das minhas circunstâncias. Que significa olhar para o rosto de uma menina segundo a carne? Significa que tudo se reduz a um ‘gosto, não gosto’, ‘tenho simpatia, não tenho simpatia’, ‘é difícil pra mim, não é difícil pra mim’. ‘Minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé’, por sua vez, significa: enfrento a relação com ela na fé no Filho de Deus, na adesão a Cristo”13, não com a minha medida, mas com aquela abertura total que tornou possível Cristo, o encontro com Cristo. Sem esse amor a Cristo, sem essa paixão por Cristo, eu reduzo minha razão à minha medida, ou seja, ao “gosto, não gosto”.
Cristo não nos impede de nos abrirmos totalmente, pelo contrário, é o único que torna isso possível, pois, sem isso – todos o vemos, está bem diante dos nossos olhos –, tudo se reduz a “gosto, não gosto”, à minha medida. “E então [quando eu vivo isso com aquela abertura total que torna Cristo possível] essa menina, na medida em que me atrai, é o sinal por meio do qual sou convidado a aderir na carne ao ser das coisas, a me inclinar até a realidade das coisas, até onde as coisas são feitas”14.
Não é fora da realidade que eu me encontro com o Mistério: o rosto da garota é um sinal por meio do qual sou convidado a aderir ao Ser, a me inclinar até a realidade das coisas, pois “não existe evidência maior, não existe nada mais evidente, para um homem que use a razão, do que o fato de que neste instante [...] eu não me faço por mim mesmo: eu sou Tu que me fazes, eu sou um Outro que me faz [agora!]. O mistério de Deus que me gera se inclinou para tão perto de mim a ponto de revelar sua identidade fazendo uso da forma como sou feito, do meu ser, da minha consistência. São Paulo diz: ‘Eu vivo, mas não eu, és Tu que vives em mim’. Existe uma relação com o Mistério que faz todas as coisas, uma relação com o Mistério feito carne, homem, Jesus, imensamente mais humana, mais minha, mais imediata, mais tenaz, mais terna, mais inevitável que a relação com qualquer um – com a mãe, o pai, a noiva, a esposa, os filhos –, com todos e com tudo. De fato, tudo nasce daí, nada se faz por si mesmo. Assim, a pessoa que tenho à minha frente, quem quer que ela seja, é e sinaliza o caminho por meio do qual eu chego a Cristo, ao Tu de que todas as coisas são feitas; e por isso eu tenho estima por ela, eu a respeito, a adoro, posso adorar seu rosto. Mas eu adoro esse rosto quando ele é caminho para a fonte de todas as coisas, a fonte do Ser. Do contrário, é como desenhar uma figura sem perspectiva: é uma percepção infantil, primitiva. ‘Minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus’: essa é a definição da mudança profunda da inteligência e da expressão do homem. Eu penetro na raiz do rosto das coisas e chego até o ponto em que a coisa é um Outro que a faz, é o Tu que a faz, Cristo. O divino coincide, assim, com a consistência última da realidade, do homem”15.
O que me interessa é conhecer a realidade até esse ponto. Pois bem, como é que o Mistério vem ao meu encontro? Por meio da realidade: pessoas, acontecimentos, circunstâncias. Cada pedaço da realidade é a forma como Ele me chama, pois cada coisa é sinal. Sinal de quem? D’Aquele que é a raiz, que tomou posse de toda a realidade na Ascensão: n’Ele está a consistência de tudo. “Amor, amor, todas as coisas conclama”16, “todas as coisas se tornam um acontecimento”, tudo, não apenas um ou outro pedaço da realidade. Mas é preciso uma boa dose de coragem, amigos, para que isso deixe de ser apenas palavras, e a pessoa decida, em cada circunstância, percorrer esse caminho até a origem, enfrentar cada coisa, cada circunstância, cada tribulação até o Mistério. Toda a nossa dificuldade vem do fato de que paramos antes.
É por isso que eu gosto tanto – e agradeço por ela a nossa Adriana Mascagni – da canção O meu rosto, pois ela nos diz qual é o método, o que significa percorrer o caminho da razão: “Deus, pra mim olho e eis que descubro: não tenho rosto. Olho no fundo e vejo o escuro que não tem fim”. Nós vemos e falamos da escuridão muitas vezes. Não devemos fingir que ela não existe, não devemos formular uma espécie de pensamento espiritual sobre ela, não podemos fazer alguma coisa “à parte” dela: devemos encará-la! “Olho no fundo e vejo o escuro que não tem fim.” Mas o que é que a escuridão não elimina? Que eu me dou conta dela, e então, “quando percebo que Tu és”, quando percebo que esta circunstância, por feia que seja, não se faz por si mesma, quando passo um momento de escuridão, mesmo nesse momento eu vivo, e mesmo na escuridão não me faço por mim mesmo; na escuridão, tenho uma clareza solar: eu não me faço por mim mesmo. “Só quando percebo que Tu és, como um eco eu ouço a minha voz”, nós cantamos. Ou seja, quando descubro que cheguei, não à escuridão, mas ao que é mais profundo que a escuridão, quando percebo que Tu és, eu me dou conta de um fato: que eu “renasço como o tempo da lembrança”. E todo o nosso papo sobre a escuridão não a elimina; o que a elimina é, sim, esse reconhecimento, esse ir até o fundo desse Tu. E, se um de nós quer poupar-se disso, continuará na escuridão. Portanto, não nos podemos poupar deste caminho, ninguém pode poupar-se dele, e é por isso que Cristo foi até o fundo da escuridão: para que pudéssemos olhar para tudo. Exatamente o contrário de um esforço intelectual! É simplesmente o reconhecimento da realidade segundo todos os seus fatores.
Mas por que temos tanta dificuldade e achamos que reconhecer o Mistério se reduz a um esforço de pensamento? Se por esforço de pensamento se entende usar a razão, sim, é preciso fazer alguma coisa; mas, se por esforço de pensamento se entende que é uma criação da minha mente, não, pois eu, mesmo na escuridão, não me faço por mim mesmo.
Por que achamos que esse Tu é uma criação do nosso pensamento? Por que temos o costume de pensar que é uma criação do nosso pensamento? Porque damos tudo por óbvio. Mas basta que alguém dê um escorregão e acabe de pernas para o ar, e logo verá que não nos fazemos por nós mesmos. Nós damos tudo por óbvio. Mas basta um acidente qualquer para nos darmos conta. Achamos que reconhecer que alguém nos dá a vida agora é um fato do nosso pensamento, mas, para quem já esteve à beira da morte ou se salvou por milagre (como vários entre nós), para essa pessoa reconhecer o Mistério não é um fato do pensamento, algo que ela mesma cria; ela sabe disso muito bem, e como sabe (nossos doentes, aqui, confirmam que isso é verdade). Mas, sendo que damos tudo por óbvio, não estamos acostumados a usar a razão de acordo com a sua verdadeira natureza.
Paradoxalmente, os simples, os simples de coração são aqueles que estão mais disponíveis a isso e entendem muito mais; para eles, as coisas são mais evidentes. Dom Giussani conta, no livro Vivendo nella carne, o episódio da cenoura: “Um dia, durante um passeio pela Brianza com o grupo de jovens da paróquia (eu era seminarista), paramos numa fazenda para matar a sede e, quando estávamos bebendo no poço, chegou uma senhora da região. Eu estava de batina [...]. Logo que ela me viu, padre, veio correndo e me disse: ‘Veja só, reverendo, como Deus é grande: a semente da cenoura é tão pequenininha que nem dá para segurar com os dedos, e veja o que sai dela!’. Era um cenourão deste tamanho!”17. E Dom Giussani comenta: “Não são evidentes? [Essas coisas não são evidentes?] Elas não são evidentes para o tipo de cultura que nos cerca, mas não para o homem do campo [ao menos o daquela época]: para o homem do campo, quando ouve essas coisas, elas são claríssimas!”18. Por isso, em Certi di alcune grandi cose, Dom Giussani diz: “Aquilo pelo qual vale a pena viver, o Mistério, é uma aquisição não apenas dos intelectuais ou das pessoas ricas; é a descoberta das pessoas pobres”19, que é o que disse Jesus: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado”20.
Não consigo me esquecer de quando encontrei nossa amiga Cleuza Zerbini, no jantar, quando estive no Brasil no início do mês. Eu nem tinha ainda sentado à mesa e ela já me “disparou” aquilo que eu repeti durante todo o mês de agosto, e que ela tinha ouvido na Assembléia Internacional: “Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados”21. E ela me contou – nem falo da alegria, da exaltação que eu via nela – que não houve pessoa que ela encontrasse, daquelas que vinham expor a ela os seus problemas (e os problemas que essa mulher vê pela frente não são brincadeira), a quem ela não tenha repetido isso, que é o olhar pelo qual ela vivia. Eu aposto (ponho a minha mão no fogo por isso) que de todos aqueles que ouviram essa frase nos últimos meses não houve nenhum que a tenha usado com tanta freqüência quanto ela; ninguém entrou na realidade, desafiou a realidade, fosse qual fosse a circunstância, como ela: ela percebeu tanto o alcance de novidade dessa frase, que fiquei impressionado com a maneira como a repetia com uma vibração que nem eu tinha. Esses são os simples; não os tolos, mas os simples. Cleuza entendeu mais do que todos nós que estávamos em La Thuile o alcance dessa frase, percebeu o seu valor, não por um sentimentalismo de mulher (ela é uma mulher nada sentimental), mas pelo juízo que trazia. Com essa perspectiva em seu olhar, ela pôde entrar em tudo.
Para nós, muitas vezes, essa familiaridade com o Mistério na maneira de viver tudo é ainda muito estranha, e manifesta o quanto é longo o caminho que devemos percorrer para poder viver assim. Nós vimos isso em agosto, em La Thuile, na assembléia que fizemos sobre o conteúdo dos Exercícios da Fraternidade. Vocês querem tirar uma prova? Basta que cada um se posicione diante desta frase que lembramos nos Exercícios: a religiosidade nada mais é que a dependência de Deus. A alternativa – nos dizia Dom Giussani – é esta: “Conceber-se livre de todo o universo e dependente só de Deus, ou livre de Deus e escravo de todas as circunstâncias”22. Queremos entender, cada um de nós, qual é o grau da nossa religiosidade? Não pensemos em quantas vezes rezamos formalmente as laudes, mas se somos livres, pois às vezes basta o juízo de alguém para nos fazer entrar em crise (isso sem falar do problema do papel que uma pessoa desempenha ou das circunstâncias).
Pois, amigos, ninguém pode servir a dois senhores: “Ou odiará um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro”23. A natureza do homem é tão unitária, a natureza da razão é tão “una”, que não aceita outra alternativa: ou dependemos de Deus, temos a experiência dessa dependência de Deus na qual a pessoa encontra a sua maior satisfação, ou, querendo ou não, com todos os gestos que fazemos, no fundo, dependemos de tudo, somos escravos de tudo – na maneira como nos relacionamos com o trabalho, como administramos o dinheiro, como usamos o tempo livre, em tudo. É por isso que eu digo que é difícil encontrar homens livres – que é o mesmo que encontrar homens verdadeiramente religiosos –, para os quais Deus não seja apenas um sentimento, um enfeite, mas uma experiência na qual a dependência é a expressão mais profunda do eu, que nela encontra a sua maior satisfação, em razão daquilo que observávamos antes a propósito da afeição, como dizia Giancarlo. Santo Tomás sublinha isso: “A vida do homem consiste no afeto que principalmente o sustenta e no qual encontra a sua maior satisfação”24. Se não temos uma relação que nos dá essa satisfação, não podemos apoiar toda a nossa vida nesse afeto, e então dependemos de todo o resto. Por isso, muitas vezes o nosso critério não é a dependência, mas o sucesso, que é o critério do “divo”, ou seja, do homem não religioso.
A religiosidade, portanto – dizia-nos Dom Giussani –, não é um enfeite para pessoas devotas, mas a condição única do humano, e não descobrimos isso à parte da vida, mas vivendo a vida. Por isso, Berdiaev tem razão, como lembrava Cesana: a liberdade deve ser realizada na vida, do contrário não é verdadeira, e dá para ver como não é verdadeira porque nós vivemos como todo o mundo. Essa foi a origem da crise do anúncio cristão, e nós não somos diferentes. O cardeal Ratzinger falava disso anos atrás: “A crise do anúncio cristão que estávamos vivendo em proporção crescente há um século funda-se em não pequena parte em que as respostas cristãs deixavam de lado as interrogações do homem; eram e continuavam acertadas, mas ficavam sem efeito, porque não eram desenvolvidas com base na questão e no seio dela”25. A crise do anúncio cristão não é devida à falta de clareza ao repetir a doutrina cristã, mas ao fato de que as respostas cristãs deixaram de lado as perguntas humanas, a vida. De fato, só aqueles que levam a sério as suas perguntas poderão se surpreender descobrindo quem é Deus. Só quem olha para a escuridão sem fim poderá descobrir que no fundo dela existe um Tu que a faz renascer. Mas quem nunca faz isso, quem não faz esse trabalho até o fundo, quem não usa a razão dessa forma ficará sempre na escuridão, lamentando-se dela. Mas a escuridão não é tudo, o fundo dessa escuridão é um Tu!
Isso nos permite entender a segunda questão a que Giancarlo aludia no início. Por tudo isso se vê que não basta uma bela proposta como a que ouvimos, acompanhando Dom Giussani, nos Exercícios da Fraternidade. É evidente até demais, dada a dificuldade que temos para reconhecer, para viver a realidade até o aparecimento desse Tu no qual a pessoa encontra a sua maior satisfação, que nós não damos conta disso sozinhos. Foi por isso que citei, bem no início do livrinho de La Thuile, uma frase de Dom Giussani: “Deus, do qual tudo deriva, permaneceria na vaguidade [como nós] e não determinaria a vida se não tivesse Ele mesmo entrado na vida [na história] como Fator dela [e se não continuasse presente, como fator da vida]”26. É preciso um lugar que entre com cada um de nós nessa batalha, que nos ajude, que nos facilite o reconhecimento do Tu que está no fundo da escuridão. Dom Giussani, quando lhe perguntaram qual é o maior instrumento de ajuda, disse em Certi di alcune grandi cose: “A nossa companhia”. E logo acrescentou: “Mas, cuidado, é preciso ir a fundo nessas palavras: é a companhia como regra de vida [...], como fonte da memória [...], como lembrança de Cristo [...]. O nosso movimento não poderá ter uma incidência sobre a Igreja e sobre o mundo [...] se não criar [...] um movimento de adultos, uma unidade de pessoas maduras, de pessoas adultas”27.
E qual é a finalidade dessa companhia? “Não deixar que suspendamos ou deixemos suspensa a nossa iniciativa”28. “Esta é uma responsabilidade [a nossa iniciativa], paradoxalmente, que não se pode descarregar na companhia. O coração é a única coisa na qual é como se não houvesse parceiros”29. Portanto – como todos lemos em Passos –, é uma “estranha companhia”30 a nossa, pois não podemos descarregar nada em cima dela. Faço questão de lembrar, não para fazer arqueologia, mas porque ainda existe muito entre nós dessa companhia como utopia: “Para uma realidade social como a nossa, a palavra companhia se torna sinônimo de utopia, quando é entendida como um instrumento no qual depositar nossas esperanças”31, como se bastasse participar de determinados gestos, e a companhia não fosse algo que me impele a tomar a iniciativa perante a realidade, a realidade inteira, as circunstâncias todas em que somos chamados a viver. “Mas vocês não percebem [...] que humanamente falando é realmente horrível identificar a companhia como o espaço que lhes assegura mecanicamente o gosto de viver? Em primeiro lugar, isso é ingenuidade! Não leva em conta a precariedade e a brevidade da companhia. Mas, além de tudo, os relacionamentos humanos só dão uma segurança verdadeira e um gosto quando são o resultado de uma tensão dramática na qual estão implicadas a inteligência e a liberdade do homem”32. Por isso, uma companhia não pode ser um lugar de fuga da responsabilidade. A isso Dom Giussani chama “imoralidade fundamental”33. E cita Eliot: “Amiúde tentam eles escapar/ À treva que no fundo os corrói e ao seu redor se alastra/ Sonhando com sistemas tão perfeitos em que o bem seja de todo dispensável”34, ou seja, em que seja dispensável a ação do eu, o uso da nossa liberdade.
Mas isso é tão evidente... Uma pessoa que foi ao Meeting me contava como estava triste porque naquele dia, com todo o trabalho que teve de fazer, era como se ela não tivesse tido a consciência dessa tendência contínua para o Mistério. Eu disse a ela: “Veja só: naquele momento, não havia lugar no mundo em que houvesse mais pessoas de CL por metro quadrado, mas nem isso é suficiente para você, pois o eu é relação com o Mistério”, o eu é relação direta com o Mistério e não existe lugar nenhum, nenhuma toca em que possamos nos enfiar para nos poupar da nossa iniciativa; isso não seria humano. Essa é uma coisa que me entusiasma, tanto assim que em agosto, falando com um amigo nosso, que hoje vive sozinho num canto dos Estados Unidos, eu dizia a ele: “O Mistério, agora, vem ao seu encontro por meio daquela circunstância ali”. E, ao responder a ele, eu observava: “Qual é a diferença entre você e eu, que estou em Milão, cercado pelo Movimento? Nenhuma, porque, se eu não me ponho em relação com o Mistério todas as manhãs, não é verdade que os amigos, pelo fato de estarem próximos, me poupem disso”. Ninguém nos pode poupar disso, e eu não quero que ninguém me poupe disso! Eu fico muito contente por todas as manhãs poder me lançar livremente diante do Mistério e reconhecer esse Tu que me faz, agora.
Assim, sendo que o homem não é uma peça de uma organização, não podemos ser uma peça de uma companhia concebida mecanicamente, e por isso Dom Giussani dizia em Certi di alcune grandi cose (imaginem só, isso já em 1981): “Qual é a necessidade visivelmente mais urgente das nossas comunidades e, portanto, do nosso comportamento, da nossa maneira de viver em comunidade? A coisa mais urgente é a luta contra o formalismo. Formalismo é qualquer atitude que não derive da pergunta e de seu desenvolvimento como busca cultural; formalismo é qualquer atividade que não exprima seu desejo original, seu início. [...] A vida [assim] fica dividida, o formalismo deixa-a toda dividida [...], deixa a vida na mentira, no equívoco [...]. Nós fazemos o que temos de fazer, mas a mudança de nós mesmos e do homem que vive ao nosso lado já não é mais levada em conta, já não é sentida como algo possível. Qual é o contrário do formalismo? O contrário do formalismo é a liberdade, e essa é a palavra que, a meu ver, deve se tornar palavra de ordem em nossas comunidades: viver a comunidade na liberdade. Em que sentido a liberdade é o contrário do formalismo? A liberdade, originariamente, é o ímpeto com o qual o homem vive, ou seja, tende ao seu destino. A liberdade é a natureza do homem: a natureza do homem é um ímpeto para o infinito [e diz, entre parênteses: “senso religioso”]. Essa liberdade – essa energia, esse ímpeto – é posta em movimento por uma atração que a solicita. Por isso, o início da liberdade é um juízo, pois a atração que me solicita significa: ‘Esta coisa é verdadeira!’”35.
Sendo assim, como é que nós somos companhia uns para os outros? Somente quando vivemos essa tendência contínua. Foi por isso que pus como título do livrinho de La Thuile Amigos, ou seja, testemunhas; não “camaradas”, mas “testemunhas”, testemunhas de uma vida assim, dessa tendência contínua, não porque sejamos bons, mas graças a essa superabundância de plenitude que a pessoa vive. Como me dizia um amigo, contando o que viu num outro: “Vendo-o, olhando para ele, ouvindo-o, eu disse a mim mesmo: por que é que ele me impressiona tanto? Não podem ser apenas as palavras dele, pois eu já ouvi palavras parecidas de outras pessoas, e elas não me impressionaram assim. O que é, então, que me impressiona tanto? Descobri que o ponto é que ele estava vivendo essas palavras, elas eram carne, eram o abraço de Cristo, o Seu rosto preciso, era Ele que se manifestava por meio delas, era a presença d’Ele”. É isso que nos permite olhar para tudo.
Concluo lendo a carta de uma amiga nossa de Uganda. Quando viajo pelo mundo, eu trago estas coisas gravadas no meu olhar: já falei de Cleuza Zerbini, agora é a vez de Vicky, que encontrei em Campala. Ela escreve: “Meu nome é Vicky, tenho 42 anos e venho da região oriental de Uganda. Quero agradecer a vocês e a Deus pela vida preciosa que me deu. Em 1992, quando engravidei do meu último filho, Brian, meu marido pediu que eu escolhesse entre continuar sendo sua esposa renunciando à gravidez ou separar-me dele se quisesse ter a criança. Naquela época tinha só dois filhos e decidi levar a gravidez adiante, o que marcou o fim da nossa relação. Realmente não entendia por que ele estava sendo tão cruel e intransigente. Depois, em 1997 perdi o trabalho porque fiquei doente e, ao mesmo tempo, meu filho Brian manifestou sintomas de tuberculose, e surgiram as primeiras suspeitas. No ano seguinte piorei e, no hospital de Nsambiya, fui examinada e submetida ao teste de HIV, que deu positivo. Foi então que me lembrei e entendi por que meu marido não queria a gravidez de Brian: na época, ele também era soropositivo.
A vida em casa, com meus três filhos, tornou-se difícil. Os dois primeiros eram saudáveis, mas não tínhamos dinheiro para pagar a escola; não tínhamos o que comer, nem dinheiro para os remédios, e, pior de tudo, não tínhamos amor de nenhuma parte do mundo. Não sabia mais se Deus realmente existia. Em 2001, alguém me mandou ao Meeting Point International, onde encontrei mulheres as quais era difícil para mim acreditar que pudessem viver daquela forma mesmo estando doentes de AIDS, tal era a alegria que tinham no rosto; dançavam e estavam felizes, e eu me perguntava como alguém que tinha essa doença podia cantar e dançar. No Meeting Point você é acolhido com músicas e canções de diferentes povos – africanos, europeus, indianos –; ouvi até algumas de minha própria tribo. Depois de um longo tempo, comecei a ver uma luz brilhar sobre meu ser em pedaços, então comecei a encontrar-me com aquelas mulheres.
Uma coisa importante, que nunca esqueci, foi o dia em que alguém me olhou com um olhar que tinha em si raios da esperança e do amor. Durante todo esse tempo eu fiquei na cama e todos os meus amigos, os parentes e até os vizinhos olhavam para mim e para meus filhos com repulsa e desprezo. Com este olhar de amor e esperança que me lançaram foi-me mostrado algo que trouxe vida ao meu espírito e corpo em pedaços. Eu disse a mim mesma: ‘Vicky! Você tem valor e o seu valor é maior do que o peso da sua doença e do que a morte’.
Em 2002, comecei a comprar remédios para meu filho, que estava para morrer, depois de tê-lo tirado da escola por causa da discriminação com a qual era tratado: tinham-no apelidado de ‘esqueleto’. Em 2003, também comecei a comprar remédios para mim. Eu pesava, então, 45 quilos, agora peso 75. Brian, agora, está realmente saudável e voltou para a escola. O meu filho maior está na universidade, o segundo, no colegial. Onde está o poder da morte? Está na perda da esperança e na falta de amor. Agora, trabalho como voluntária no Meeting Point, e todas as vezes que acolho as pessoas digo a elas que o valor da vida é maior do que aquele vírus que carregam dentro de si. Essa afirmação nutre a esperança de uma pessoa que sofre e está para morrer e a traz de volta à vida. Todos os meus resultados só foram possíveis porque fui revestida de algo além da morte e, em particular, de amor. Obrigada a todas as pessoas que nos educaram embora nunca as tenhamos visto. Mas hoje, em nome de Giussani, Carrón veio entre nós, que éramos pobres e esquecidos: quem é mais rico do que nós, agora? Somos os mais ricos do mundo porque alguém colocou pelo menos um sorriso no rosto de uma pessoa”36.
É isso que eu trago gravado no olhar, esses são os amigos que me fazem companhia, mesmo que provavelmente nunca mais volte a vê-los, pois, depois de encontrar pessoas assim, não posso mais olhar para nenhuma circunstância, não existe mais circunstância que não seja possível encarar, e tudo pode mudar justamente se a pessoa olha com essa abertura total que Cristo tornou possível. Essas coisas são para cada um de nós, em qualquer circunstância. Talvez nos convenham.

Notas
1. Berdiaev, N. Pensieri controcorrente. Milão, La Casa di Matriona, 2007, p. 59.
2. Cf. João Paulo II. Homilia na visita pastoral a Cascia e Núrsia, a 23 de março de 1980, 5.
3. Giussani, L. Dall’utopia alla presenza, 1975-1978 (Da utopia à presença, 1975-1978). Milão, Rizzoli, 2006, p. 23.
4. Id., ibid., p. 55.
5. Id., ibid., p. 362.
6. Cl 3,1.
7. João Paulo II. Audiência geral de 19 de outubro de 1983, 1-2.
8. Hb 5,7-10.
9. Giussani, L. O caminho para a verdade é uma experiência. São Paulo, Companhia Ilimitada, 2006, p. 163.
10. Id. ibid., pp. 163-164.
11. Id., ibid., p. 164.
12. Guardini, R. L’essenza del cristianesimo. Brescia, Morcelliana, 1980, p. 12.
13. Giussani, L., Alberto, S., Prades, J. Generare tracce nella storia del mondo. Milão, Rizzoli, 1998, pp. 76-77.
14. Id., ibid., p. 77.
15. Id., ibid., pp. 77-78.
16. Jacopone de Todi. “Como l’anima se lamenta con Dio de la carità superardente in lei infusa”, Lauda XC. In: Le Laude. Florença, Libreria Editrice Fiorentina, 1989, p. 318.
17. Giussani, L. Vivendo nella carne. Milão, Rizzoli, 1998, p. 250.
18. Id., ibid., p. 249.
19. Cf. Giussani, L. Certi di alcune grandi cose, 1979-1981 (Ter certeza de algumas grandes coisas, 1979-1981). Milão, Rizzoli, 2007, p. 107.
20. Mt 11,25-26.
21. Mt 10,30.
22. Giussani, L. Na origem da pretensão cristã. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003, p. 124.
23. Mt 6,24.
24. Santo Tomás de Aquino. Summa Theologiae, II, IIae, q. 179, art. 1.
25. Ratzinger, J. Dogma e anúncio. São Paulo, Loyola, 2007, p. 79.
26. Giussani, L. Em busca do rosto do homem. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1996, p. 30.
27. Giussani, L. Certi di alcune grandi cose (1979-1981). Op. cit., pp. 330-331.
28. Giussani, L. “A familiaridade com Cristo”. In: Passos Litterae Communionis, nº 80, março de 2007, p. 3.
29. Id., ibid., p. 5
30. Id., ibid.
31. Giussani, L. Un caffè in compagnia. Milão, Rizzoli, 2004, p. 129.
32. Id., ibid., p. 130.
33. Id., ibid.
34. Eliot, T. S. “Coros de ‘A Rocha’”. In: Poesia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981, p. 186.
35. Giussani, L. Certi di alcune grandi cose (1979-1981). Op. cit., pp. 332-333.
36. “A esperança maior”. In: Passos Litterae Communionis, nº 87, outubro de 2007, p. 29.