Uma responsabilidade que cresce com a força da origem

Página Um
Julián Carrón

Apontamentos da intervenção na Assembleia Geral da Companhia das Obras. Palasharp, Milão, 21 de novembro de 2010.

“Se a vida nos satisfizesse, fazer literatura não teria nenhum sentido”. Veio-me em mente esta frase da escritora Flannery O’Connor – que dominava a entrada da mostra dedicada a ela, neste verão, no Meeting para a Amizade entre os Povos –, quando Bernhard Scholz me convidou para falar sobre o tema desta assembleia. Fazer literatura tem origem no desejo de ser satisfeito, no desejo de realização.
Analogamente, qualquer movimento nosso tem seu ponto de partida nesta exigência de realização que encontramos em nós. Segundo as palavras de Tomás de Aquino, “todos desejamos alcançar a própria perfeição” (Summa Theologiae, I-II, 1, 7, c), ou seja, a própria felicidade última, a própria verdadeira realização.
Exatamente este desejo é que está na origem das obras de vocês. Então, para conservar a força da origem, é preciso não perder a força do desejo da qual elas brotaram.

Neste sentido, qual é o problema, hoje? Em muitas ocasiões, o desejo é reduzido a sentimento. Mas um desejo reduzido a sentimento é um desejo esvaziado do seu ser. O que seria um desejo ao qual foi tirada a força de perseguir aquilo que se deseja? Uma sombra de desejo. Um desejo assim reduzido não tem a força para manter um empenho real, uma responsabilidade, como explica Dom Giussani: “Nós tomamos o sentimento, ao invés do coração, como motor último, como razão última do nosso agir. O que quer dizer isso? A nossa responsabilidade torna-se vã, exatamente por ceder ao uso do sentimento como prevalente sobre o coração, reduzindo assim o conceito de coração ao de sentimento. Porém, o coração representa e age como o fator fundamental da personalidade humana; o sentimento não, porque tomado sozinho o sentimento age como reatividade, no fundo é animalesco. ‘Não entendi ainda – disse Pavese – qual é o trágico da existência [...]. E no entanto é claro: é preciso vencer o abandono voluptuoso e parar de considerar os estados de ânimo como fim em si mesmos’. O estado de ânimo tem outro escopo para ser digno: tem o escopo de uma condição colocada por Deus, pelo Criador, através da qual somos purificados. Ao passo que o coração indica a unidade de sentimento e razão. Isso implica uma concepção de razão não bloqueada, uma razão segundo toda a amplitude da sua possibilidade: a razão não pode agir sem aquilo que se chama afeição. O coração – como razão e afetividade – é a condição do agir saudável da razão. A condição para que a razão seja razão é que a afetividade a invista e, assim, mova todo o homem. Razão e sentimento, razão e afeição: este é o coração do homem” (Giussani, L. L’uomo e il suo destino. Genova: Marietti, 1999, pp. 116-117).
Quando este esvaziamento do desejo se realiza, então não há outro caminho para a ação senão o moralismo. Uma ação torna-se moralista quando perde o nexo com aquilo que a gera: continuar a viver como casados sem o nexo com a atração que gerou o relacionamento amoroso, trabalhar sem o nexo com o desejo de realização, ainda que com um bom salário. Em suma: quando acontece isto, restam apenas regras a ser respeitadas. Tudo se torna pesado, um esforço titânico para fazer algo que em nada diz respeito ao nosso desejo.

Todos sabemos como é árduo manter o desejo desperto. Então, a tentação mais óbvia é passarmos por cima e encerrar a partida. Quantos de vocês já sentiram esta tentação, quando o desejo falhou diante das enormes dificuldades que vocês têm que enfrentar nestes tempos de crise!
Portanto, a questão que deve ser enfrentada é simples: é possível manter o desejo desperto, diante dos desafios do presente?
Na criança, podemos identificar a total abertura do desejo. Nós a surpreendemos naquele fenômeno tão humano da curiosidade, que a torna cordialmente aberta a tudo: “O coração de uma criança é feito para descobrir, para desfrutar, para viajar por todo o universo, sem pausa, sem nunca se cansar, sempre contente, em paz, curioso e satisfeito” (Giussani, L. Realidade e Juventude: O Desafio. Lisboa: DIEL, 2003, p. 102).
Mas, no caminho da vida, vemos que esta abertura cheia de curiosidade pode decair até quase ao ponto de desaparecer, como o ceticismo de tantos adultos comprova. Na verdade, todo o ímpeto com que uma criança sai do seio de sua mãe não consegue evitar a sua decadência até a morte.
Podemos ver a mesma parábola na vida adulta, no trabalho, nas obras. Todo o ímpeto com que se começa a trabalhar não pode impedir que, pouco a pouco, se enfraqueça, nem mesmo que se fique farto dele.

Então, aqui, temos perante nós o verdadeiro desafio: é possível manter a força propulsora da origem? O exemplo da criança coloca diante de nossos olhos que toda a sua energia não é suficiente para manter vivo o desejo em toda a sua amplitude. Sozinho, o homem é incapaz de manter a origem fresca, viva, como diz ainda Dom Giussani: “Manter na vida a simpatia original pelo ser ou pelo real com a qual nascemos, ser na vida verdadeiramente como crianças (ou pobres de espírito, diria o Evangelho), porque esta positividade contínua diante do real não é outra coisa senão ser crianças, é a posição da criança: reconhecemos que somos incapazes de ser assim na vida; por isso, é necessário algo diferente” (Giussani, L. L’autocoscienza del cosmo. Milano: BUR, 2000, p. 306).
Entende-se, portanto, como a presunção moderna adquiriu a face do moralismo: “A separação entre o sentido da vida e a experiência implica também uma separação entre moralidade e ação do homem: a moralidade, assim concebida, não tem a mesma raiz da ação. Em que sentido? No sentido de que a moral se relaciona sim com a ação do homem, se relaciona com a experiência, mas sem ter a mesma raiz da ação; não responde à fisionomia, ao rosto que nos dá a experiência. Assim, entre outras coisas, compreende-se o vir à tona do moralismo: é a moralidade que, paradoxalmente, não se relaciona com a ação, no sentido de que não nasce ao mesmo tempo que ela. O moralismo é um conjunto de princípios que precede e investe a ação do homem julgando-a teoricamente, abstratamente, sem motivar o porquê é justo ou não, o porquê o homem deve realizar ou não deve realizar uma ação. Definindo a ação que o homem está realizando, a priori, se julga aquilo que o homem faz sem que ele tenha tido consciência dela, ou sem que ele tenha concebido o seu fazer no mundo e o seu caminhar nas estradas do tempo e do espaço como praticáveis. A moralidade, assim, não tem a mesma raiz da ação. De forma que ela acaba sublinhando valores comuns, valores geralmente difundidos; os seus princípios são, por isso, ou derivados da mentalidade comum, ou impostos pelo Estado” (Giussani, L. L’uomo e il suo destino. Op. cit., p. 106).
É o triunfo do voluntarismo mais estéril: “Diante da impossibilidade de realizar uma imagem humana, diante de uma natureza compreendida de forma materialista, que tudo arrasta e elimina, a força da vontade humana se antepõe de modo firme um projeto e procura realizá-lo com toda a sua energia. Cito como exemplo este texto de Bertrand Russell: ‘... Eis que experimentei algo como aquilo que as pessoas religiosas chamam conversão. Tornei-me, repentina e vivamente, consciente da solidão na qual a maioria vive, e apaixonadamente desejei encontrar meios para diminuir este trágico isolamento. (...) A vida do homem é uma longa marcha através da noite, rodeada de inimigos invisíveis, torturada pela deterioração e pela dor (...). Um a um, enquanto caminham, os nossos companheiros de viagem desaparecem de nossa vista (...). Muito breve é o tempo de que dispomos para ajudá-los. Que o nosso tempo possa derramar luz solar sobre sua estrada, para reanimar a coragem que diminui, para incutir fé nas horas de desespero’. Coragem: para quê? Fé: qual? O voluntarismo mostra a sua cegueira e a sua irracionalidade. Com ele, o homem procura estender suas capacidades a um horizonte que a sua consciência mais refletida sabe não pode atingir, como a rã da fábula que inchou a ponto de explodir” (Giussani, L. O senso de Deus e o homem moderno: a questão humana e a novidade do cristianismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 128).
Se não somos capazes de manter vivo o desejo, o moralismo obriga-nos a fazer as coisas mesmo quando aquele desejo acabou. Todos podemos imaginar o que é a vida ou o trabalho quando são reduzidos a puro dever. O cansaço das pessoas, a fadiga crônica, a ausência de um motivo adequado para a ação, são a ameaça maior da responsabilidade. As consequências estão à espreita. A única incógnita é quanto tempo será preciso para conseguir fugir.

É possível que a própria atividade continue na vida adulta, sem que sejamos condenados a fugir, cedo ou tarde? Sim. Porém, apenas se o desejo for despertado constantemente. E isto não é possível ser feito se estivermos sozinhos, sabemos disso por experiência. Foi isso que Cristo veio fazer. O encontro com Cristo produz a surpresa do despertar em nós o desejo: um encontro é o grande e o único recurso para uma retomada do nosso eu. Mas, qual é o alcance deste acontecimento na vida da pessoa? “Um encontro é o que suscita a personalidade, a consciência da própria pessoa. O encontro não ‘gera’ a pessoa (a pessoa é gerada por Deus, quando nos dá a vida através do pai e da mãe); mas é num encontro que eu me dou conta de mim mesmo, que a palavra ‘eu’ ou a palavra ‘pessoa’ desperta. [...] O eu desperta de sua prisão do seu túmulo original, desperta da sua tumba, do seu sepulcro, da sua situação fechada da origem e – por assim dizer – ‘ressurge’, toma consciência de si, exatamente num encontro. O êxito de um encontro é o suscitar do sentido da pessoa. É como se a pessoa nascesse: não nasce ali, mas no encontro toma consciência de si, por isso nasce como personalidade”. Este encontro que desperta a pessoa representa o início da aventura – aqui, vemos em ação todo o gênio educativo de Dom Giussani –, ele não é o fim de um percurso ou a meta do caminho, mas o princípio de uma história destinada a investir toda a realidade. Giussani torna-nos conscientes também de quais são as consequências negativas que o tratar o encontro como um ponto de chegada comporta: “O problema começa aqui, neste ponto, quando a pessoa é despertada: toda a aventura começa aqui, não termina aqui. Por que é que, para muitos, CL se torna uma desilusão? Porque, uma vez que entram é como se tivessem terminado, é como se tivessem chegado”. Pelo contrário, o encontro constitui o início de tudo: “A aventura começa quando a pessoa é despertada pelo encontro [...]. E a aventura é o desenvolvimento dramático da relação entre a pessoa acordada e a realidade inteira que a circunda e na qual vive” (Giussani, L. L’io rinasce in un incontro (1986-1987). Milano: BUR, 2010, pp. 206-207).
Por isso, a verdadeira questão é que este início permaneça contemporâneo. Cristo é contemporâneo a nós através do carisma. No encontro com o carisma de Dom Giussani o nosso eu despertou. E tantas obras entre nós são o fruto deste eu despertado pelo carisma. Podemos manter a força da origem se permanecermos ligados ao carisma, assim como Dom Giussani lhes dizia na Assembleia Nacional de 1995: “Quanto mais a pessoa ama a perfeição na realidade das coisas, quanto mais ama as pessoas pelas quais faz as coisas, quanto mais ama a sociedade para a qual realiza a sua empresa, de qualquer gênero, tanto mais é desejável para ela ser aperfeiçoada pela correção. É essa a pobreza da nossa posse das coisas que, em qualquer trabalho, em qualquer empresa, faz do homem ator, artífice, protagonista. Mas liberdade quer dizer também, além da consciência do próprio limite, ímpeto criador. Se é relação com o Infinito, ela recebe do Infinito a inexaurível vontade de criar. Isso só não acontece com quem está tão velho a ponto de já estar morto (e isso pode ocorrer aos vinte anos!). Quantas pessoas vemos de vinte anos, sem desejos, sem fantasia, sem tentativas, sem arriscar-se na vida! Tudo se pode corrigir e tudo se deve poder criar. Tal instinto criador é o que caracteriza a liberdade de um modo mais positivo e experimentalmente fascinante” (Giussani, L. O eu, o poder, as obras: Contribuição de uma Experiência. São Paulo: Cidade Nova, 2001, pp. 116-117).

Eis porque a Companhia das Obras é diferente de todas as outras associações, com uma originalidade própria: despertar e sustentar as energias do indivíduo. Somente partindo daqui é possível uma resposta aos desafios de hoje. Cito esta belíssima passagem de Dom Giussani, extraída da Assembleia Nacional que vocês fizeram em 1993: “A companhia de vocês está voltada à criação de uma casa mais habitável para o ser humano. E consegue; pouco ou muito – não importa –, mas consegue. Cada um já o provou. Por que a companhia de vocês tende a criar uma casa habitável para o ser humano? Porque a paixão que têm é o ser humano na sua concretude evidente; isto é, o homem que se encontra necessitado. É na necessidade, com efeito, que o homem é ele mesmo e se encontra realmente. E a necessidade é hoje. Pensar em resolver uma necessidade amanhã ou daqui a um ano será um enorme equívoco, se não se colocarem imediatamente os fatores da forma mais propícia a responderem à fome e à sede, à necessidade que o homem vivencia agora. Perguntemo-nos por que Jesus suscitava tanta curiosidade e maravilhamento em quem O encontrava. Porque nesse homem, aqueles que o viam agir e ouviam falar, percebiam, sobretudo, uma coisa: não a Trindade, o Inferno ou o Paraíso, mas uma paixão pelo homem, antes de mais nada, uma paixão pela necessidade do homem. Uma piedade para com o homem: ‘Ao ver a multidão, teve compaixão dela, porque estava cansada e abatida como ovelhas sem pastor’ (Mt 9, 36; cf. Mc 6, 34). Por isso, as pessoas O seguiam” (Giussani, L. O eu, o poder, as obras. Op. cit., pp. 129-130).
Este olhar do outro mundo neste mundo gera, entre nós, uma nova responsabilidade (não a velha responsabilidade segundo os esquemas do mundo, que procura na obra e no proveito a própria realização, uma vez reduzido o desejo). Este olhar dá-nos um rosto novo com o qual nos apresentamos diante dos irmãos homens, e é a única coisa que poderá dar uma contribuição real para a sociedade contemporânea.
E este olhar, dirigido sobre os outros, porque, antes de tudo, reconhecido sobre nós, é o que espero para mim e para vocês.
Obrigado.

(traduzido por Paulo Pacheco)