Viver sempre intensamente o real

Página Um
Julián Carrón

Notas dos depoimentos de Davide Prosperi e Julián Carrón no Dia de Início de Ano dos adultos e dos universitários de CL. Mediolanum Forum, Assago (Milão), 1° de outubro de 2011


JULIÁN CARRÓN
Todo início carrega consigo sempre uma espera. Quanto mais identificarmos qual é a natureza da nossa espera, tanto mais ficaremos conscientes de que não podemos, por nós mesmos, corresponder ultimamente a ela. Por isso, a espera de um homem adulto torna-se pedido, pedido ao Único que pode verdadeiramente dar uma resposta à altura da nossa espera. Portanto, vendo vibrar em nós essa espera, no início deste gesto suplicamos ao Espírito, o Único capaz de dar uma resposta a ela.
Ó vinde, Espírito Criador

DAVIDE PROSPERI
Perguntemos a nós mesmos o significado de nos encontrarmos aqui (nós, presentes em Milão, e todos os demais, de toda a Itália e do exterior), para recomeçarmos juntos este ano. A resposta é que hoje, mais do que nunca, temos necessidade desse questionamento. Precisamos relembrar as razões pelas quais vale a pena recomeçar, porque estamos imersos numa grande confusão, social, política, mas sobretudo numa grande crise econômica e de trabalho, que coloca em perigo seriamente a esperança de um povo. E, então, estamos aqui porque vale a pena recomeçar.
O Papa, discursando no Parlamento alemão na semana passada, durante sua viagem à Alemanha, colocou sem meias palavras a questão radical de o que significa hoje estar diante da urgência do bem de um povo: “É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo” (Bento XVI, Discurso ao Parlamento federal, Berlim, 22 de setembro de 2011). Mas como isso se realiza? Como encontrar a saída no meio da vastidão, no conjunto? Como pode a razão reencontrar a sua grandeza sem cair no irracional?
No último dia 26 de janeiro, apresentando O senso religioso, padre Carrón lançou a todo o movimento o grande desafio deste ano: o senso religioso como verificação da fé. O que quer dizer que a fé vivida como juízo sobre a realidade é capaz de suscitar uma humanidade plena, uma razão que resiste aos assaltos do nosso tempo, dominado – como disse o Papa – por uma concepção positivista?
Essa hipótese foi logo submetida à prova durante as eleições administrativas da primavera. E antes ainda fomos provocados pelo panfleto intitulado As forças que mudam a história são as mesmas que mudam o coração do homem. Alguém, de início, interpretou isso como se faltasse algo, como se tivéssemos medo de ir em profundidade, contentando-nos com as razões de uma posição última. Mas foi bom que isso tenha acontecido, porque nos obrigou a nos interrogarmos (não superficialmente) o quanto as razões dadas eram decisivas para desafiar o mundo. De fato, tivemos que entrar no mérito (e certamente não nos poupamos), tivemos que verificar se permaneciam de pé as razões do que estamos defendendo, que não é um partido, mas justamente uma experiência, “o que temos de mais caro”. Tivemos que verificar se os critérios com os quais olhamos as coisas que nascem da nossa experiência eram suficientes para expor uma posição original diante de todos, para se poder viver – nós, antes de tudo – essa circunstância. Ou se, ao contrário, era preciso acrescentar outro, um critério diferente, uma estratégia diversa. Mas se tivéssemos acrescentado um outro critério (um critério, digamos, “político”, ou “mais político”), a certa altura teríamos que optar por um ou por outro, porque, antes ou depois, um critério deve prevalecer.
Então a questão é a seguinte: a experiência cristã pode ser suficiente para determinar uma posição e um juízo integral sobre a realidade, ou não? Nós optamos por assumir esse risco. E o resultado nós o vimos no Meeting, onde a irredutibilidade da nossa posição sobre política, como sobre todo o resto, ficou evidente para todos. Depois do Meeting, até os jornais laicos, embora não entendendo bem de onde vem essa posição, tiveram que admitir, como o fez Michele Smargiassi no jornal La Repubblica de 26 de agosto: “Talvez seja preciso deixar de perguntar ‘de que lado está CL?’. CL, desde sempre, está apenas com CL” (Noi, il popolo di Dio, La Repubblica, 26 de agosto de 2011, p. 37). E nós lhe somos gratos por isso. Essa irredutibilidade não é estratégica, mas nasce de um juízo sobre o que nós somos, e é isso que nos torna livres, livres e, portanto, também dignos de crédito. Paolo Franchi, editorialista do jornal Corriere della Sera, escreveu no site ilsussidiario.net de 29 de agosto: “O Meeting tem uma longa – e hoje consolidada – tradição de abertura, a certeza de si (...). Numa temporada que parece marcada por uma guerra de todos contra todos, tão feroz quanto improdutiva, no centro do Meeting de Rímini esteve a busca das coisas que podemos e devemos fazer juntos, sem que ninguém precise colocar em risco a própria alma; ou melhor, procurando fazer de modo que cada um tire da própria história e da própria cultura a parte melhor, menos caduca, mais viva” (“Io, relativista, vi spiego perché ho sbagliato a non andare a Rimini”, ilsussidiario.net, 29 de agosto de 2011). E isso não fomos nós que dissemos.
Este ano, o Meeting marcou um novo passo. Na situação de total incerteza em que todos, verdadeiramente todos, apenas lamentam (não ouvimos um único juízo novo de esperança), muitos esperavam encontrar no Meeting a mesma confusão, a mesma incerteza do mundo, talvez olhando com o canto dos olhos a qual poder nos teríamos juntado. Porque essa é a única resposta que podemos esperar fora de uma concepção como essa que estamos descrevendo. Ao invés, aqueles que esperavam isso ficaram deslocados, porque viram um juízo diferente, uma experiência de certeza que não é determinada pelas circunstâncias – positivas ou negativas – mas é fruto de uma posição original em relação à realidade. Vimos em muitas ocasiões: uma nova ideia de ecumenismo, em que uma amizade misteriosa com gente de todos os credos, nasceu do reconhecimento de que a experiência que se viu (não nos esqueçamos de que em outubro de 2010 se realizou, pela primeira vez, o Meeting do Cairo) é um ponto educativo para todos: o reitor da universidade egípcia Al-Azar, por exemplo, perguntou a Savorana se poderia mandar à Itália alguns dos seus estudantes universitários para conhecer a experiência da qual nasce o Meeting. Os filósofos Costantino Esposito e Fabrice Hadjadj mostraram como a experiência cristã responde ao drama do pensamento moderno. E de novo pensamos no encontro sobre “A Itália unida, história de um povo que caminha”, com Giuliano Amato, Marta Cartabia e Maria Bocci. Ou, ainda, consideramos a reação de Sergio Marchionne [diretor executivo da Fiat], que este ano voltou ao Meeting duas vezes e disse à televisão: “Me interessa a qualidade dessa gente que está aqui. É gente verdadeira, que faz. É a simplicidade da ação. Num país que fala demais, essa gente faz. É um belo lugar para vir” (Entrevista ao TgMeeting, 24 de agosto de 2011). Vimos todos esses jovens, sob o sol nos estacionamentos, nas cozinhas, nas exposições, na mostra sobre os 150 anos da subsidiariedade: jovens que têm expectativas em relação ao futuro, que veem o mundo em que vivem, mas carregam uma grande vontade de construir, porque há uma experiência viva que é mais positiva do que toda a negatividade que sentem em volta. E nós precisamos focar nisso. Esse, no fundo, é também o voto que nos fez o presidente Napolitano quando, ao inaugurar o Meeting, disse: “Não deixem de carregar, num tempo de incerteza, o anseio de certeza”. Nossa função não é fazer com que todos pensem como nós, mas que esse anseio de certeza se torne contagioso.
Recentemente, reagindo a esses fatos, Carrón nos disse: “Quando é que essas coisas são presença e suscitam curiosidade? Quando fazem emergir no real a presença de uma realidade inexplicável: o Mistério. Nós nos tornamos interessantes quando na realidade emerge algo que excede, que é o que verdadeiramente atrai”. O Mistério como realidade presente, embora sem ser mensurável. Ou melhor, justamente por esse excedente em relação à nossa medida, nos realiza, torna completa a relação da razão com a realidade.
Permitam-me contar um fato que aconteceu comigo neste verão e que me esclareceu aquilo que estamos dizendo. Durante um passeio pela montanha, havia um ponto muito exposto, o cume tinha desmoronado e ficara aberto um buraco de mais ou menos meio metro, que dava para o abismo. Ao longo da trilha estavam na minha frente um adulto e dois jovenzinhos; a certa altura, o adulto passou e passou também o primeiro jovem, mas o segundo jovem ficou bloqueado. Inicialmente interpretei que era por uma questão psicológica, uma insegurança que o primeiro, talvez mais arrojado, não possuía. Mas depois descobri que o primeiro era filho do adulto, e o outro era apenas um amigo. E aí ficou clara para mim a questão. Para o segundo jovem, a realidade era só aquele buraco que dava para o abismo, era o único “problema” que precisava superar, e não sabia se tinha a força para isso. Daí, ficou travado. Ao passo que para o primeiro jovem a realidade era o buraco e o pai, o pai que estava ali com ele e que havia ultrapassado o buraco, as duas coisas juntas. Há um afeto, há uma Presença que domina a realidade: se a razão não reconhece essa Presença dentro da realidade, a realidade se reduz e a razão fica bloqueada.
Por isso, uma razão livre, capaz de se postar diante do real, é uma razão afetiva. Onde buscar essa certeza que todos vimos em Rímini, tanto que até os que estão distantes da nossa experiência a reconheceram? Evidentemente não se trata de uma segurança de si, uma autossuficiência na qual acreditamos poder viver. É justamente o contrário: a certeza é um laço afetivo com a verdade, e isso, somente isso, pode nos tornar livres de qualquer poder.
Então, se aquilo de que mais precisamos para viver (junto com o ar que respiramos) é uma razão capaz de reconhecer o real em toda a sua profundidade, te perguntamos: onde nasce e como se realiza uma razão assim?

JULIÁN CARRÓN
1. “Fixar como presença as coisas presentes”
Uma razão capaz de reconhecer o real em toda a sua profundidade nasce e se realiza no acontecimento cristão. É em virtude do acontecimento cristão que a razão realiza a sua natureza de abertura para o próprio desvelar-se de Deus. Entende-se assim por que Dom Giussani diz que “o problema da inteligência está todo dentro” do episódio de João e André (L. Giussani, É possível viver assim?, Companhia Ilimitada, São Paulo 2008, p. 227). Por esse motivo, dia 26 de janeiro deste ano (por ocasião da apresentação de O senso religioso) começamos lembrando que “o coração da nossa proposta é [...] o anúncio de um acontecimento que se dá e que surpreende os homens do mesmo modo que, há dois mil anos, o anúncio dos anjos em Belém surpreendeu alguns pobres pastores. Um acontecimento que se dá, independentemente de qualquer consideração sobre o homem religioso ou não religioso” (L. Giussani, Un avvenimento di vita, cioè una storia, Edit-Il Sabato, Roma/Milão 1993, p. 38). E como se vê que isso entrou na nossa vida? Pelo fato de que “este acontecimento – diz Dom Giussani – voltou a suscitar ou potencializou o sentimento de dependência original e o núcleo de evidências e exigências originais a que chamamos senso religioso” (Ivi).
Esse é o motivo pelo qual o acontecimento cristão torna o homem homem, isto é, mais capaz de viver segundo as suas evidências originais, mais capaz de ser tocado pelo real, de viver a realidade segundo a sua verdade, porque capaz de usar a razão segundo a sua verdadeira natureza de abertura para a totalidade da realidade. Só uma “razão aberta à linguagem do ser” (Bento XVI, Discurso no Parlamento federal, Berlim, 22 de setembro de 2011) – como acabou de dizer o Papa na Alemanha – pode alcançar o real sem permanecer prisioneira das interpretações que só acrescentam incerteza à incerteza, como vemos hoje em todos os níveis.
Por isso, nós, que participamos desse acontecimento na comunidade cristã, deveríamos perceber, na nossa experiência, que somos mais “vulneráveis” frente ao ser das coisas, mais capazes de ser tocados, de nos maravilhar, porque é na relação com o real – diante da mulher ou dos filhos, dos colegas ou das circunstâncias, do sol ou das estrelas – que nós fazemos a verificação da fé. Se é verdade que todo homem é tocado pelo real, cada um de nós deveria ser mais ainda, pelo fato de ter sido despertado pelo encontro cristão, de modo que a realidade nos fala mais, nos surpreende mais.
Mas todos nós sabemos que muitas vezes não é assim. Mais uma vez Dom Giussani vem em nossa ajuda para identificar onde está o problema. Dirigindo-se aos padres do Studium Christi, em 1995, dizia: “A raiz da questão é o fator constitutivo do que existe, e a palavra mais importante para indicar o fator mais importante do que existe é a palavra presença. Mas nós não estamos acostumados a olhar como presença uma folha presente, uma flor presente, uma pessoa presente, não estamos acostumados a fixar como presença as coisas presentes. Somos aproximativos nesse ponto” (Milão, 1º de fevereiro de 1995). E ele diz isso a nós, que já encontramos Cristo e que tivemos o nosso eu despertado por esse encontro. Por isso, todos nós podemos fazer logo a verificação e julgar até que ponto Giussani tem razão: basta que cada um observe o que aconteceu hoje, se surpreendeu-se pelo menos num momento com a presença das coisas presentes.
Não perceber as coisas presentes como presença não significa negá-las. Vejam bem: podemos aceitá-las e reconhecê-las – insiste ainda Dom Giussani – e, no entanto, tomá-las como óbvias. Tem mesmo razão: “Nós não estamos acostumados a fixar como presença as coisas presentes”. Da realidade ao marido ou à esposa, até nós mesmos.
O que será que Dom Giussani viu em nós, anos atrás, observando a nossa reação à sua carta à Fraternidade (de 23 de junho de 2003), dedicada ao tema do Ser, para chegar a dizer: “Eu tive que descobrir, nestes dias, que o Ser não é vibrante em ninguém!”? Bento XVI identificou a consequência dessa posição: “A maioria das pessoas, inclusive dos cristãos, hoje considera Deus como algo óbvio” (Bento XVI, Encontro com os representantes do Conselho da Igreja evangélica na Alemanha, Erfurt, 23 de setembro de 2011).
Em sua simplicidade, esta carta de um jovem universitário de Roma expressa bem a questão:
“Em novembro do ano passado, sofri um acidente que me obrigou a ficar na cama por mais de três meses. Foi muito difícil. Eu não podia nem me mexer, estava impossibilitado de fazer qualquer atividade, nada, não podia nem estudar, por causa dos analgésicos que tomava, que me impediam de fazer qualquer coisa que exigisse um mínimo de concentração. Três meses na cama, parado, imóvel. Recordo, porém, que uns dois meses depois que voltei a caminhar, olhando fotos de quando eu estava acamado, rodeado de amigos, mostrei essas fotos para minha mãe, e ela disse quase que instintivamente: ‘Mas veja que bela foto! De qualquer modo, foi mesmo um belo período!’. Olhando para trás, posso dizer que, apesar da imensa dificuldade de estar imóvel no leito, de toda a ansiedade para voltar a andar, havia algo que não me tornava infeliz; aliás, nos últimos tempos eu estava até contente, em meio às dificuldades. Por dois motivos. O primeiro é que em todos os momentos de dor eu estive sempre apoiado, de um modo livre e gratuito: pelos rostos dos amigos que incansavelmente se dedicavam a mim, bem como pelos meus pais, que me diziam sempre para oferecer o sofrimento e a dor. Eu percebia que se dedicavam totalmente a mim: de maneira total e detalhada. O segundo motivo é que as coisas, mesmo as menores, não eram mais coisas óbvias: eu me surpreendia com um prato de macarrão um pouco mais elaborado, com a companhia que via ao meu redor, com o fato de minhas irmãs, antes de irem dormir, colocarem mais perto da minha cama a ‘comadre’, sem que eu pedisse. Até que uma manhã, quando uma ambulância veio me buscar para me levar ao hospital para alguns exames, eu me surpreendi ao rever o céu: que o céu existia eu sempre soube, mas finalmente me dei conta de que ele existia, que estava ali [Quando alguém percebe isso, uma vez na vida, entende quantas vezes o céu, para ele, não era uma coisa presente]. Eu não fazia nada, não podia fazer nada, no entanto, em meio à dor, a toda a ansiedade, eu não era infeliz. Eu via tudo pelo valor que tinha, nada mais era óbvio. E reconhecer o valor das coisas me deixava feliz. Agora, quatro meses depois de ter recomeçado a andar, me dou conta de que aquela tensão para as coisas já está se apagando: o prato de macarrão mais elaborado voltou a ser uma coisa normal, as coisas voltaram a ficar sob a sombra da minha medida e da minha acomodação... Qual é a estrada que pode me restituir aquela condição, que pode me fazer viver sempre aquela experiência?”.
Todos podemos nos reconhecer nessa situação: se não vemos continuamente o ser vibrar em nós, tudo volta a ser chato, e se torna cada vez mais urgente, em cada um de nós, a pergunta: qual é a estrada que pode me restituir aquela condição que torna possível não considerar tudo como óbvio, mas me surpreender com tudo?
Para responder a essa pergunta precisamos entender por que acontece isso com a gente. Por que, depois de uma experiência como a descrita, voltamos a considerar tudo como óbvio e não nos maravilhamos mais com nada? Dom Giussani identifica as razões em Ciò che abbiamo di più caro, o livro da Equipe dos universitários publicado este ano:
1) Isso acontece – diz Giussani – por causa de uma razão frágil, isto é, de um uso redutivo da razão, que, não sendo capaz de captar a presença das coisas presentes, nos leva a considerar tudo como óbvio. É a razão frágil o motivo pelo qual o real não nos prende, não nos impressiona, e tudo se torna de novo cinza. Esse uso da razão leva a uma consequência inevitável.
2) Uma divisão entre o reconhecimento e a afetividade, entre o reconhecimento e o estar agarrado ao reconhecimento: o eu fica dividido entre o reconhecimento (que permanece abstrato) e a afetividade (que flutua). Como a razão não é capaz de alcançar a realidade, a afetividade não se fixa, permanece flutuante e nada nos toma.
Dom Giussani nos oferece também um exemplo. “No início da era moderna, Petrarca admitia todo o doutrinário cristão, até o sentia melhor do que nós, mas a sua sensibilidade ou afetividade flutuava autônoma” (Ciò che abbiamo di più caro, 1988-1989, Bur, Milão 2011, p. 156). Isto é, só afirmar a doutrina cristã como discurso não é capaz de arrastar a afetividade, gerando aquela unidade de razão e afeição sem a qual a gente não conhece, e o eu permanece dividido. Podemos afirmar a doutrina cristã (bem como declarar que o céu existe) como um a priori abstrato: mas não há vibração, não há apego, não existe algo fora de nós que nos salva de nós mesmos e da nossa medida. Essa é a “anorexia do humano” que está na origem da confusão, da desorientação, da incerteza na qual tantas vezes nos encontramos nestes tempos, nos quais parecemos flutuar, como uma pedra jogada de um lado para outro pelas opiniões, pelo estado de espírito, não sendo capaz de levar a gente a se interessar verdadeiramente por nada. Essa anorexia não se resolve aumentando os discursos, mas educando a razão a se abrir para a “linguagem do ser”.
O que significa essa abertura para o ser é documentado muito bem por um episódio da vida de Dom Giussani que sempre me impressionou. Escrevendo a Angelo Majo, diz o que vê em quem é seu amigo: “Algumas noites atrás, pensando, descobri que o meu único amigo era você”. E por que o considera amigo? Porque “aquela vibração inefável e total no meu ser frente às ‘coisas’ e às ‘pessoas’, eu não consigo captá-la a não ser no seu modo de reagir” (Lettere di fede e di amicizia ad Angelo Majo, San Paolo, Cinisello Balsamo-Mi, 2007, p. 103). Dentre tantas coisas a que Giussani podia olhar para identificar quem era amigo, qual ele indica? De novo nos surpreende: não uma inteligência particular, não uma capacidade de dominar o pensamento, não uma coerência ética admirável, mas a “vibração inefável e total” frente ao ser que ele capta no modo de reagir do seu amigo. Então se entende por que a raiz da questão é que nós temos dificuldade, não estamos acostumados a olhar como presença uma folha presente, não estamos acostumados a captar como presença as coisas presentes. Não que a gente negue a presença das coisas. Simplesmente as consideramos óbvias. Por isso não temos nenhum momento de assombro. Não é que fizemos algo errado, simplesmente não sentimos em nós a vibração do ser. Nós todos sabemos o quão insuportável se pode ser quando a vida fica assim tão desprovida de encanto.
Podemos entender, então, a urgência de nos habituarmos a fixar como presença as coisas presentes, de modo que possamos ver vibrar o nosso eu, qualquer que seja a circunstância. E como as coisas estão sempre presentes, o que falta não são as coisas, mas um eu capaz de perceber o que existe. Isso nos faz entender a que ponto o clima racionalista em que vivemos incide sobre nós, muito mais do que conseguimos perceber. Nós o vemos pela dificuldade que sentimos de reconhecer a realidade segundo toda a sua natureza. Hoje predomina uma concepção positivista, segundo as suas novas traduções. Mas como lembrou também o Papa na Alemanha, “a visão positivista do mundo (...) no seu conjunto não é uma cultura que corresponda e seja suficiente ao ser humano em toda a sua amplitude. Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade” (Bento XVI, Discurso ao Parlamento federal, Berlim, 22 de setembro de 2011).
Por isso Dom Giussani, no capítulo segundo de O senso religioso, identifica com clareza a nossa tarefa: “O problema realmente interessante para o homem não é a lógica – jogo fascinante –; não é a demonstração – atraente curiosidade –; o problema interessante para o homem é aderir à realidade, perceber a realidade. É, pois, uma obrigação (algo que pressiona), não uma coerência. Que uma mãe ame o filho não constitui o termo de um procedimento lógico: é uma evidência, ou uma certeza, uma proposta da realidade cuja existência é obrigatório admitir” (L. Giussani, O senso religioso, Universa, Brasília 2009, p. 34). Somente a evidência da realidade pode carregar essa obrigatoriedade que nos força a reconhecer como presença as coisas presentes.
Nenhum texto pode nos ajudar a verificar se a fé facilita ou não o reconhecimento da realidade mais do que o capítulo décimo de O senso religioso, com o qual retomamos o nosso percurso de Escola de Comunidade, porque esse capítulo é a descrição do que acontece num homem frente à imponência do real. Consciente de que nós estamos imersos numa época de ideologias (racionalismo, positivismo), que nos leva a usar a razão de um modo redutivo, e portanto a olhar a realidade segundo essa redução, já desde o início Dom Giussani estabelece um princípio de método para uma luta contra a ideologia: partir da experiência, porque a realidade – como ele sempre nos ensinou – se torna transparente na experiência. Esse princípio metodológico, que fixa no primeiro capítulo de O senso religioso, é decisivo para enfrentar o capítulo crucial de todo o livro, que é definido por Dom Giussani com estas palavras: “O capítulo décimo de O senso religioso é o ponto chave do nosso modo de pensar” (cf. “Um homem novo”, Litterae Communionis, n. 68, março/abril de 1999, p. 23).
Desde as primeiras linhas do capítulo, ele nos convida a olhar a estrutura da nossa original reação diante do real, de tal modo que não vença em nós, já desde o primeiro golpe, a redução ideológica, para depois descrever o que significa seguir essa provocação do real até sua origem, sem bloqueá-la no meio do caminho. Isto é, Dom Giussani descreve nesse capítulo qual é o itinerário verdadeiro da razão e da afeição frente à realidade, itinerário que precisa percorrer quem deseja sair da situação de obviedade em que nos encontramos.
Por isso começa com uma interrogação: se essas perguntas últimas que constituem o senso religioso são a essência da consciência humana, da razão humana, como é que elas despertam? “A resposta a tal pergunta nos obriga a identificar a estrutura da reação que o homem tem frente à realidade” (O senso religioso, op. cit., p. 155). Dom Giussani nos oferece o método: “Se o homem se dá conta dos fatores que o constituem observando a si mesmo em ação, para responder a essa pergunta é preciso observar a dinâmica humana [na sua relação] no seu impacto com a realidade, impacto que põe em movimento o mecanismo revelador dos fatores” (Ivi).
E acrescenta uma observação fundamental: “Um indivíduo que tenha vivido pouco o impacto com a realidade, porque, por exemplo, teve pouco esforço a realizar, terá um escasso sentido da própria consciência [é o eu que decai, é o eu que falta], perceberá menos a energia e a vibração da sua razão” (Ivi). De fato, é na relação com a realidade que nós vemos crescer o senso da nossa consciência, a energia e a vibração da razão. Se, pois, quisermos poupar-nos do impacto com a realidade substituindo-o por discursos ou comentários, a consequência inevitável será que nós não vibraremos mais frente ao real.
A cada frase desse capítulo cada um de nós deveria olhar a sua experiência, ver qual é a sua reação diante das coisas, para não enfrentar todo o décimo capítulo substituindo o golpe do ser pelos seus comentários ao texto, falando da admiração sem se admirar (entre parênteses: isso é muito chato, além de inútil!). O primeiro ponto que Dom Giussani aborda no capítulo é justamente esse: a maravilha da presença.

2. A maravilha da “presença”
Para nos ajudar a reconhecer as coisas presentes como presença, qual é a primeira tirada genial de Dom Giussani? Romper a obviedade com que olhamos o real, a nossa acomodação. Como vimos, nós geralmente olhamos o real como coisa óbvia. Para afastar essa obviedade, Giussani nos convida a empreender um esforço de imaginação: “Suponham estar nascendo, sair do ventre da própria mãe na idade que têm neste momento, no sentido do desenvolvimento e da consciência que são possíveis agora. Qual seria o primeiro, absolutamente o primeiro sentimento, isto é, o primeiro fator da reação frente ao real?” (Ivi). Cada um procure identificar-se com a experiência que Dom Giussani nos sugere, tentando segui-lo. E a forma mais simples é encontrar na própria experiência um fato que o documente. Como o que me contou o meu amigo Alexandre, um médico brasileiro.
Neste verão, com um grupo de amigos universitários de língua portuguesa (brasileiros, portugueses, moçambicanos), foi fazer um passeio ao Colle San Carlo, em La Thuile. Enquanto caminhava, pensava no que diria na chegada. Pensava consigo mesmo: “Vou pedir que eles observem o panorama, cantem alguma canção, etc”. Mas, logo que chegaram, tendo diante de si o Monte Branco, que muitos viam pela primeira vez, todos ficaram em silêncio. Enquanto estavam ali, todos quietos, ouviram que vinha se aproximando um segundo grupo que tinha ficado para trás. As pessoas caminhavam falando em voz alta. E o nosso médico começou a pensar no que ia dizer quando eles chegassem ao ponto: “Vou pedir que façam silêncio”. Mas enquanto pensava essas coisas, eles chegaram e a imponência da presença do Monte Branco foi tão grande que também eles ficaram calados.
Esse pequeno fato expressa o quanto a imagem usada por Dom Giussani – do abrir os olhos com a consciência que temos agora – não é mesmo uma coisa forçada. “Se eu abrisse pela primeira vez os olhos neste instante, saindo do seio de minha mãe, eu seria dominado pela maravilha e pelo espanto das coisas, pela sua ‘presença’. Seria tomado pelo golpe, ficaria extasiado com uma presença, com o que no vocabulário corrente é expresso com a palavra coisa” (O senso religioso, op. cit., pp. 155-156). O mesmo convite nos faz o Papa: “Como pode a razão reencontrar a sua grandeza sem escorregar no irracional? Como pode a natureza aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações? (...) É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra” (Bento XVI, Discurso ao Parlamento federal, Berlim, 22 de setembro de 2011).
Para os nossos amigos que estavam fazendo aquele passeio, assim como para nós, essas coisas não são óbvias, como se vê pela admiração que geram. Basta ler os adjetivos com que Dom Giussani descreve esse golpe: dominado, tomado pelo golpe, “extasiado”, pleno dessa maravilha, desse estupor, que nenhuma situação deste mundo, nenhuma crise, pode evitar: nada pode impedir o golpe do ser, e nem que sejamos preenchidos com essa plenitude, capaz de fazer vibrar todo o nosso ser e nos levar a recomeçar.
“O ser: não como entidade abstrata, mas como presença, [uma presença] que não é feita por mim, mas que encontro, uma presença que se me impõe” (O senso religioso, op. cit., p. 156). E, então, consigo fixar como presença as coisas presentes. E traz para a vida de cada um o despertar do próprio eu humano. Nós sabemos bem qual grau de intensidade adquire o nosso eu quando acontece isso, qual vibração se experimenta.
“O fascínio, a maravilha dessa realidade que se me impõe, dessa presença que me toma, está na origem do despertar da consciência humana” (Ivi). Descubro em mim uma intensidade desconhecida, por “esta experiência original do ‘outro’. A criança vive sem dar-se conta dessa experiência porque ainda não está totalmente consciente; mas o adulto que não a vive ou não a percebe como homem consciente é menos que uma criança, é como que atrofiado” (Ivi). É essa a falta do eu, que está como que atrofiado, como uma pedra que não sente admiração pela beleza das montanhas, que não vibra diante do ser das coisas. O que seria da vida de cada um de nós se perdêssemos essa capacidade de nos maravilharmos! E que dom é o acontecimento cristão que nos torna mais capazes de nos maravilharmos com tudo! Tem razão Heschel: “Sem maravilhamento ficamos surdos ao sublime” (A. J. Heschel, Dio alla ricerca dell’uomo, Borla, Turim 1969, pp. 273-274). Ou seja, perdemos o melhor. E nenhuma distração criada artificialmente, como aquelas que a sociedade de hoje inventa, nos poderá restituí-lo.
“Por isso, o primeiríssimo sentimento do homem é o de estar diante de uma realidade que não é sua, que existe independentemente de si e da qual depende”. Existe, existe, existe! “Traduzido empiricamente, é a percepção original de um dado” (O senso religioso, op. cit., p. 156); segundo o seu significado de particípio passado, “dado” supõe algo que “dá”. Tudo me é dado, presenteado. Conseguimos imaginar o que seria da vida se vivêssemos todas as coisas como “dado”, como dom, se reconhecêssemos assim qualquer coisa presente, e se ela nos fizesse vibrar? Todas as circunstâncias seriam diferentes.
Uma amiga me escreve:
“Oi, Julián! Escrevo-lhe do quarto do hospital em que minha mãe se recupera, depois de passar por uma pequena intervenção cirúrgica. Que milagre este dia que começou toda marcada pela imprevisibilidade; parecia que eu estava vivendo pessoalmente o que é descrito no décimo capítulo de O senso religioso. Ver minha mãe descendo ao centro cirúrgico anestesiada me fez olhá-la com uma grande ternura: não só porque é minha mãe, mas porque esta manhã a sua presença me despertava para tomar consciência de que a evidência maior e mais profunda que percebo é que eu não me faço por mim, não estou me fazendo agora, não me dou o ser, não me dou a realidade que sou, sou ‘dado’! Não era obvio que esta manhã minha mãe me fosse dada de presente e que eu a olhasse como um dom!”.
Mas qual é o obstáculo decisivo a esse modo de olhar? Porque, como vimos, nós consideramos como óbvio esse dado, não percebemos a realidade como dado. Partimos desconsiderando a existência, o dar-se, o existir das coisas. E qual é o sinal mais evidente de que nós desconsideramos a existência das coisas? A falta de admiração. Infelizmente, essa é a posição mais comum, mais enraizada em nós frente à realidade. “Nós não estamos acostumados – essa é a dimensão do que diz Giussani – a olhar como presença as coisas presentes”. Por isso é tão raro ver vibrar o ser em alguém! E quando o vemos vibrar em nós, é uma maravilha, pois é tão raro de acontecer.
Nesta altura, podemos entender melhor o quanto é decisivo para cada um de nós aprender – até que se torne hábito – aquela atitude sugerida por Dom Giussani: “A própria palavra ‘dado’ é vibrante de uma atividade, diante da qual permaneço passivo: e é esta passividade que constitui a minha atividade originária, a de receber, constatar, reconhecer” (O senso religioso, op. cit., pp. 156-157). A primeira atividade, amigos, é essa passividade, sem a qual não percebo o dado, a realidade como dado, como um dom que me é concedido. Se não quisermos perder o real em cada detalhe, é preciso que se torne familiar em nós essa indicação de Dom Giussani: a primeira atividade é essa passividade. Mas precisamos estar atentos ao tipo de passividade de que estamos falando, para não tirarmos a conclusão – como geralmente acontece – de que não é preciso fazer nada. A passividade de que se fala é um “receber, constatar, reconhecer” a realidade como dada. Isso é justamente o contrário do considerá-la como algo óbvio. E como podemos reconhecer que estamos fazendo a mesma experiência de que fala Giussani e não estamos apenas repetindo um slogan? Pela admiração, pelo despertar do humano em nós.
A presença é tão poderosa que facilita a percepção dela, porque “A evidência é uma presença inexorável! Dar-se conta de uma presença inexorável!” (O senso religioso, op. cit., p. 157). Vejam que expressão sintética: perceber uma inexorável presença. Isso é tratar as coisas presentes como presença: dar-se conta de uma inexorável presença. Essa percepção nunca poderá se reduzir a “um registro frio”: é um “maravilhamento prenhe de atração”, é um “maravilhamento que desperta a pergunta última dentro de nós” (Ivi); a pergunta religiosa.
De fato, a religiosidade nasce dessa atração. O primeiro sentimento do homem é essa atração; o medo – que se indica muitas vezes como origem da religiosidade – não entra em ação a não ser num segundo momento. “A religiosidade é antes de tudo a afirmação e o desenvolvimento da atração [do ser. Isso é que é preciso, o desenvolvimento da atração do ser]. Primeiro há uma evidência e uma admiração, que é a atitude característica do verdadeiro pesquisador: a maravilha da presença, eis como se desencadeia em mim a busca” (Ivi).
É preciso simplicidade para se deixar atrair por essa presença, que, pela vibração que provoca em mim, se torna tão interessante que desencadeia a busca! Se essa busca não para, não é bloqueada, para explicar essa presença, esse dado, devemos admitir alguma outra coisa. Mas em geral bloqueamos essa busca, e isso se vê pelas inumeráveis vezes em que ouvimos dizer: por que, diante da realidade, precisamos apelar para o Mistério, para o Tu, para Deus? Pergunta-se isso como se o envio a um outro fator além e dentro do que se vê, não fora, mas além e dentro do que se vê, não estivesse contido no que se vê, na experiência do que se vê, no dado, mas tivesse sido construído por nós. Certamente esse envio é captado pelo sujeito, mas pertence ao objeto, à coisa, à experiência da coisa.
Por isso, alguém que, partindo do que existe, como verdadeiro pesquisador não bloqueia o envio inscrito na experiência das coisas e não bloqueia a sua curiosidade, o seu desejo de entender em profundidade, de explicar de modo exaustivo o dado, não pode deixar de reconhecer algo diferente como parte da presença que existe. Como descreve o diálogo de Deus com Jó: “Onde estavas quando eu lancei os fundamentos da terra?”. Ou seja: foste tu que geraste essa realidade que te encanta? “Diga, se é que sabes tanto, quem lhe fixou as dimensões – se o sabes –, ou quem estendeu sobre ela a régua?” (Jó 38,4-5).
Tudo o que existe grita a sua dependência de um Outro. Por isso, não existe nada de mais adequado, de mais aderente à natureza do homem do que ser possuído, por uma originária dependência. De fato, a natureza do homem é a de um ser criado, e a sua razão se realiza no reconhecer essa implicação última que está dentro do ser das coisas. Se alguém nega o envio, se nega o além, nega a coisa, a experiência da coisa, a destrói. Frente à abissal gratuidade do real há como que uma estranha paralisia da razão, que fica bloqueada. Mas se alguém nega isso, nega a coisa. É como se dentro das coisas houvesse um convite, não acrescentado pelo sujeito, mas reconhecido pelo sujeito, porque é conteúdo do fenômeno mesmo da presença. Por isso, a primeira original intuição é a admiração do dado. Peço-lhes que não considerem isso óbvio, reduzindo de novo a experiência a pensamento: o pensamento da admiração não é admiração, como o pensamento de estar apaixonado não é estar apaixonado. Por isso, Dom Giussani, no quarto parágrafo do décimo capítulo – relativo ao eu dependente –, nos leva a entender se realmente fizemos a experiência do que diz ou se simplesmente seguimos a lógica de um discurso, sem nem mesmo um instante de admiração.

3. O eu dependente
“Quando é despertado em seu ser pela presença, pela atração e pelo maravilhamento, e se torna grato, cheio de letícia, porque essa presença pode ser benéfica e providencial, o homem toma consciência de si como eu e retoma o maravilhamento original com uma profundidade que estabelece o alcance, a estatura da sua identidade” (O senso religioso, op. cit., p. 162).
O teste de que eu acusei o golpe do ser é, primeiro, que o meu eu despertou. Nós constatamos isso com frequência: reconhecemos que aconteceu algo a alguém porque o eu daquela pessoa despertou (“Mas o que te aconteceu?”, logo lhe perguntamos). Segundo, fico grato e contente (como o amigo acidentado). Eu sei que aconteceu o golpe em mim porque percebo em mim mesmo a gratidão, a alegria por essa presença (posso estar hospitalizado, como o amigo da carta, mas me sinto grato e contente porque essa presença existe). Terceiro: isso me faz consciente de mim; quarto: ao ponto de a profundidade do maravilhamento estabelecer a dimensão da minha identidade. Vejam qual é o critério de medida da nossa identidade! Não são os títulos universitários ou o dinheiro que ganhamos ou o papel que exercemos que estabelecem a dimensão da nossa identidade, mas a profundidade da admiração que me torna consciente de mim mesmo.
“Se neste momento – continua Giussani – eu estou atento, isto é, se sou maduro, não posso negar que a evidência maior e mais profunda que percebo é que eu não me faço por mim, não me estou fazendo. Não me dou o ser, não me dou a realidade que sou, sou ‘dado’. É o instante adulto da descoberta de mim mesmo como dependente de uma outra coisa” (Ivi).
Cada um precisa perguntar-se se o “eu não me faço por mim” é a “evidência maior”. Para nós é evidente a garrafa ou o copo; mas o “eu não me faço por mim” não é tão evidente, o que se vê pela pergunta que com frequência reaparece entre nós: por que, diante do real ou do meu eu, preciso dizer Tu? Não está faltando alguma passagem?
Para responder a essa pergunta precisamos tentar seguir Giussani no seu percurso até a profundeza do real, se quisermos captar a sua origem. “Quanto mais me adentro em mim mesmo, se chego até o fundo, de onde broto? Não de mim, mas de outro. É a percepção de mim como um jorro d’água numa fonte. Existe outra coisa que é mais do que eu e da qual sou feito”. E faz um exemplo muito bonito: “Se um jorro d’água pudesse pensar, perceberia no fundo de seu sereno desabrochar uma origem que não sabe o que é, é fora de si” (Ivi).
“Descer ao fundo dentro de si mesmo” é um convite a um uso verdadeiro (e não frágil) da razão, o único capaz de vencer a separação entre reconhecimento e afeição. A nossa dificuldade em fazê-lo, em seguir Dom Giussani nesse ponto, é sinal da nossa falta de familiaridade com um uso completo (não positivista) da razão. A dificuldade que sentimos de chegar ao fundo nos faz pensar que se trata de uma operação mental, uma complicação, uma espécie de criação, e que, afinal, o Tu é fruto do nosso esforço. Que esclerose do eu e da razão! Que falta de “eu”! E que falta de familiaridade com um uso adequado da razão! Podemos ver isso quando aprendemos matemática: para não errar, devemos fazer todas as passagens, passo a passo. Tudo nos parece muito artificial! E por quê? Por uma falta de familiaridade com um uso adequado da razão. De fato, quando aprendemos matemática tudo se torna ágil, veloz e fascinante. Ou ainda, quando alguém começa a tocar piano, as mãos parecem engessadas. Mas que delícia quando a agilidade dos nossos dedos permite que a gente aprecie Mozart!
Mas nós não temos a paciência de fazer esse trabalho a que Dom Giussani nos convida constantemente. Parece-nos complicado, artificial. E substituímos a razão pelo sentimento, porque parece mais fácil, mais imediato: se o sinto, existe; se não o sinto, não existe. Essa é a nossa inteligência “lógica”! A esta altura, cada um de nós precisa decidir se segue Giussani – descendo ao fundo de si mesmo – e aprende esse uso da razão para reconhecer as coisas presentes como presença, ou se prefere fazer diferente, deixando de segui-lo. Mas como não estamos acostumados a fazer esse percurso, preferimos fazer diferente (ler, repetir as frases), ao invés de nos esforçarmos para aprender a usar a razão como ele. E quantas vezes sucumbimos à tentação de escapar! Por isso, então, permanecemos confusos, na incerteza, jogados de um lado para o outro pelas opiniões, como uma pedra.
Somente quem segue Giussani no percurso que nos indica pode ver acontecer em si aquela vibração que nos invade quando entramos verdadeiramente em relação com o Ser; assim como vemos vibrar o eu de cada um de nós diante do tu da pessoa amada. Alguém pode dizer “Tu” com toda a vibração que o ser da pessoa amada provoca nele. E que rebelião sentiria se alguém – a quem falte essa familiaridade – quisesse reduzir essa vibração a uma operação mental, a uma complicação! É como ver a pessoa amada reduzida pelo olhar frio de um outro. Mas se nós não seguirmos Giussani até esse ponto, tudo se tornará nivelado de novo, apesar de todos os nossos comentários, porque não teremos adquirido essa familiaridade com um uso da razão capaz de nos fazer aderir verdadeiramente ao real e de nos impedir de continuar a flutuar em nossos estados de espírito.
Tudo tem a natureza do sinal, do jorro d’água. O jorro d’água implica a fonte. Conhecer significa concordar em fazer o percurso que vai do jorro d’água à fonte. Esse é o uso verdadeiro, não frágil, da razão.
Se alguém dissesse “eu” com toda a consciência do que está acontecendo agora, vendo-se doar o ser – de que o incremento do ser que o tu da pessoa provoca nele é somente um pálido reflexo –, com que vibração deveria dizer: “Eu sou ‘tu-que-me-fazes’” (Ivi). Como Giussani nos testemunha: aquela fonte que “é mais do que eu mesmo”, não posso pensar nele sem tremor e fascínio. Mas para nós dizer “Tu” é quase igual a zero. Vocês entendem o que estamos perdendo? Entendemos, sim; não é que não entendemos, mas não basta entendê-lo para que aconteça. É só a educação que torna a vida diferente. Essa vibração não é um sentimentalismo, é “um juízo que arrasta consigo toda a minha sensibilidade” (cf. Um homem novo, op. cit., p.23), é a consciência comovida de um adulto diante do Tu que me dá o ser. Por isso o Papa diz que “a Igreja abre-se ao mundo, não para obter a adesão dos homens a uma instituição com as suas próprias pretensões de poder, mas sim para os fazer reentrar em si mesmos e, deste modo, conduzi-los a Deus – Àquele de Quem cada pessoa pode afirmar com Agostinho: Ele é mais íntimo a mim do que eu mesmo (cf. Conf. III, 6, 11)” (Bento XVI, Discurso aos católicos comprometidos na Igreja e na sociedade, Friburgo, 25 de setembro de 2011).
De fato, para que a minha razão possa ser afetiva é preciso que seja verdadeiramente razão, que desça até o ponto de alcançar o Tu real que me dá origem, não uma razão frágil. Se a razão não alcança o real, a afeição permanece separada e flutua. Por culpa da divisão entre a razão e a realidade gera-se uma divisão entre reconhecimento e afetividade. A razão não é lucidez analítica, mas é laço com a realidade. Por isso Dom Giussani diz que a verdadeira razão se descobre em João e André, porque eles foram “tomados”. De fato, se a razão não alcançar a realidade e nos ligar a ela, continuaremos a flutuar e não haverá certeza. Como documentou amplamente o Meeting deste ano. E como agudamente observou o professor Eugenio Mazzarella, comentando a intervenção de Costantino Esposito em Rímini: “Nós viemos ao mundo, fomos colocados em nosso ser por Alguém [...], que é e continua a ser a nossa originária ‘reserva’ de certeza. [...] Manter viva essa certeza, reavivá-la na vida de cada dia e de cada momento, é recuperar-se – recuperar a si – nesse originário laço com Alguém que nos constitui, verdadeira fonte de certeza” (“Caro Ferraris, perché qualcuno ci ha voluto nel mondo?”, ilsussidiario.net, 19 de setembro de 2011). Isso significa recuperar-se da desorientação em que tantas vezes caímos.
Então se entende a diferença entre repetir “Eu-sou-tu-que-me-fazes” como um slogan (mesmo que verdadeiro) e dizer “eu” com a consciência de um Outro que me faz agora! Se não podem dizer “Tu” com a mesma emoção, com a mesma vibração da primeira vez em que se surpreendeu apaixonado diante da pessoa amada, não sabem nem de longe o que Giussani quer dizer. Algo bem diferente de complicação mental! De elucubração! A diferença pode ser vista naquilo que acontece em nós. No primeiro caso – repetindo “eu-sou-tu-que-me-fazes” como um slogan – não acontece nada; se, ao invés, digo “Tu” com a consciência do Outro que me está fazendo agora, não posso evitar uma comoção ilimitada; não posso evitar de ver surgir em mim uma afeição por esse Tu e, ao mesmo tempo, de surpreender uma gratidão infinita porque ele existe. Quanto caminho ainda nos resta fazer para viver a realidade com essa intensidade testemunhada por Dom Giussani!
“Quando olho para mim mesmo e percebo que não estou sendo feito por mim, então eu, eu com a vibração consciente e repleta de afeição que urge nessa palavra, só posso dirigir-me à Coisa que me faz, à fonte da qual provenho neste instante, usando a palavra “Tu”. “Tu-que-me-fazes” é o que a tradição religiosa chama Deus, é aquilo que é mais do que eu, é mais eu do que eu mesmo, é aquilo pelo qual eu sou” (O senso religioso, op. cit., p. 162). Não é apenas uma palavra! Deus é pai para mim porque está me concebendo “agora”. Fora deste “agora” não existe nada. “Ninguém é tão pai” (Ivi). Por isso cantamos sempre com comoção: “Quando percebo que Tu és, / como um eco eu ouço a minha voz / e renasço como o tempo da lembrança” (A. Mascagni, “O meu rosto”).
“A consciência de si mesmo até o fundo percebe, no fundo, no fundo, um Outro. Isto é a oração: a consciência de si até o fundo que se depara com um Outro. Dessa forma, a oração é o único gesto humano no qual a estatura do homem é, realiza-se inteiramente” (O senso religioso, op. cit., p. 163). Que diferença do pietismo e do formalismo a que costumamos reduzir a oração! Entende-se, então, por que nos cansamos e tentamos escapar dela. Ao passo que quem não foge e toma consciência profunda de si, isto é, usa a razão não de um modo frágil, mas verdadeiro, completo, começa a tomar consciência de que se está em pé é porque se apoia num Outro, é porque é feito por um Outro. E a sua vida começa a ter um ponto de apoio sólido, não sentimental, flutuante, dependente dos estados de espírito, mas seguro, por essa ligação da razão com a realidade até sua origem.
Ajudemo-nos mutuamente a identificar-nos com isso, para não reduzir essas coisas a algo óbvio tão logo as ouvimos! “É como a minha voz, eco de uma vibração que produzo: se interrompo a vibração, a voz não existe mais. Como a pequena mina, que deriva toda da nascente. Como a flor, que depende totalmente da força da raiz” (Ibidem, p. 163). A voz, a mina, a flor... são imagens que Dom Giussani nos oferece para nos ajudar a perceber isso agora, para superar a obviedade, o já-sabido. Por isso, dizer “eu sou”, segundo a totalidade da minha estatura de homem, só pode significar “eu sou feito”. E disso – acrescenta Dom Giussani – “depende o equilíbrio último da vida” (Ivi).
Como se vê que alguém tem esse equilíbrio? Pelo fato de que “respira inteiramente, se sente inteiro e feliz, quando reconhece que é possuído”. Por isso, “a consciência verdadeira de si é bem representada pela criança nos braços do pai e da mãe” (Ivi). Podemos ver que isso se torna para nós experiência pelo fato de que, como a criança, podemos entrar – quanto é importante isso hoje, no contexto de uma crise que vivemos em todos os níveis – em qualquer situação da existência, em qualquer circunstância, em qualquer obscuridade, com uma tranquilidade profunda e uma possibilidade de alegria. “Não há sistema terapêutico que tenha essa pretensão” (Ibidem, p. 164). E justamente porque não se torna nossa, essa consciência verdadeira de nós mesmos, precisamos nos dirigir a outros sistemas curativos, que não têm a capacidade de chegar a esse nível da questão, e por isso não resolvem as coisas, a não ser mutilando o homem: em geral, para tirar o mal-estar de certas feridas, censuram o homem em sua humanidade. Bela solução!
Todos percebem o alcance do que estamos dizendo frente ao desafio representado pelas circunstâncias que somos chamados a viver. Só uma certeza com tais raízes nos permitirá construir.

CONCLUSÃO
Qual é a fórmula do itinerário para o significado último da realidade? Viver o real, nos diz simplesmente Dom Giussani. Entende-se, então, a importância do real para a vida.
A única condição para sermos sempre e verdadeiramente religiosos, isto é, homens (digo “homens”, não “piedosos”!) é viver sempre intensamente o real. Por isso, alguém que vive intensamente o real, mesmo que seja um lavrador ou uma dona-de-casa, pode saber mais do real do que um professor, porque a fórmula do itinerário até o significado da realidade é viver o real sem exclusão, sem renegar ou esquecer nada.
Mas, atenção, o que significa viver o real? Dom Giussani nos reserva a última pérola: “Não seria, com efeito, humano, ou seja, razoável, considerar a experiência limitando-se à sua superfície, à crista de sua onda, sem descer à profundidade do seu movimento”. Esse é o “positivismo que domina a mentalidade do homem moderno”, que “exclui a solicitação para a busca do significado que nos vem do relacionamento originário com as coisas. [...] O positivismo exclui o convite para descobrir o significado que nos é dirigido exatamente pelo impacto originário e imediato com as coisas” (O senso religioso, op. cit., p. 166). Como disse o Papa ainda na Alemanha, com uma imagem luminosa: “A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de concreto armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber estes dois elementos do amplo mundo de Deus” (Bento XVI, Discurso ao Parlamento federal, Berlim, 22 de setembro de 2011).
Como percebemos que somos positivistas? Pelo fato de ficarmos sufocados dentro do nosso edifício de concreto armado. Dom Giussani nos oferece todos os dados para que cada um possa verificar que experiência está fazendo. Podemos dar as interpretações que quisermos, mas se ficarmos sufocados em meio às circunstâncias, quer dizer que somos positivistas (esse é o ponto!). Para respirar basta “voltar a abrir as janelas”, para “ver de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra”, nos diz o Papa; acrescenta Dom Giussani: sem bloquear “o convite para descobrir o significado que nos é dirigido exatamente pelo impacto originário e imediato com as coisas” (O senso religioso, op. cit., p. 166).
Por isso, “quanto mais a pessoa vive o nível de consciência, por nós descrito, no seu relacionamento com as coisas, tanto mais intensamente vive o seu impacto com a realidade e tanto mais começa a conhecer algo do mistério” (Ivi).
Isso exige de cada um de nós um empenho que ninguém pode nos poupar. Por isso Dom Giussani termina tornando-nos conscientes de que “o que bloqueia a dimensão religiosa autêntica [...] é uma falta de seriedade para com o real, que tem no preconceito o exemplo mais agudo” – isto é, a ideologia, essa redução que muitas vezes vivemos pela situação cultural na qual estamos –. “O mundo é como uma palavra, um logos que reenvia, remete a outro além de si, mais acima”. Por isso a analogia é a parola que “sintetiza a estrutura dinâmica do impacto que o homem tem com a realidade” (O senso religioso, op. cit., p. 167).
Que aventura fascinante, amigos! Percorrendo-a até o fim, poderemos testemunhar a todos uma razão capaz de reconhecer o real em toda a sua profundidade, o único ponto que nos permite construir, num momento em que tudo parece conspirar contra a retomada da vida social. Essa é a nossa contribuição.


HOMILIA NA MISSA
JULIÁN CARRÓN

As leituras de hoje nos dizem que aprender a fazer o percurso, como dissemos, não é decisivo somente para a relação com a realidade em geral, mas também com o real mais real do acontecimento cristão, que é Cristo. Tanto é verdade que podemos estar diante da preferência do Mistério e não tomar consciência disso.
Toda a liturgia de hoje está plena dessa predileção, dessa preferência: “A vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel; os habitantes de Judá são a sua plantação preferida” (Is 5,7). De onde se vê essa preferência? Porque Deus “cavou-a, removeu as pedras e plantou nela uma vinha de qualidade; no meio dela construiu uma torre e cavou um lagar” (Is 5,2). Cercou-a de uma preferência única, mas não somente na sua origem: de fato, o Senhor mandou – como diz o evangelho – os profetas, até seu Filho, para cuidar dela, mas os camponeses não O acolheram, não se deram conta dessa preferência, desse dom (cf. Mt 21,33-43). E quando não tomamos consciência do dom do real que recebemos do Mistério, vemos que se multiplicam os desastres. De fato, o que acontece depois dessa rejeição? A terra é pisada, torna-se um deserto, onde crescem espinheiros e ervas daninhas (cf. Is 5,5-6). A vida se reduz a isso: um deserto, tudo sem vida, tudo cinza.
Inserindo-as na Liturgia, a Igreja atualiza essas duas parábolas de Isaías e do Evangelho para nos advertir que nós, agora, somos a vinha do Senhor. O Senhor gerou a Igreja, cuidou dela, comprou-a pagando com o sangue do seu Filho. Nós podemos dizer: “Somos a vinha preferida”. Deus não abandona o seu povo e continua a nos enviar mensageiros, “testemunhas” – como recordou o nosso Arcebispo domingo passado – que tomam conta da vinha para que não se torne um deserto. Mas muitas vezes nós não só rejeitamos os profetas, como o povo da antiga Aliança, mas rejeitamos também o próprio Filho. “Cristo – nos disse o Arcebispo, citando Giovanni Battista Montini – é alguém desconhecido, esquecido, ausente em grande parte da cultura contemporânea”. E isso faz com que os homens “não consigam mais ver a sua conveniência para a vida cotidiana deles e dos seus entes queridos” (A. Scola, Homilia ao ingresso na Diocese, Milão, 25 de setembro de 2011).
Isso foi recordado pelo próprio Papa – um outro mensageiro – na Alemanha: “Constatamos um crescente distanciamento, de parte notável de batizados, da vida da Igreja” (Bento XVI, Discurso aos católicos comprometidos na Igreja e na sociedade, Friburgo, 25 de setembro de 2011). E mais: “A verdadeira crise da Igreja no mundo ocidental é uma crise de fé” (Bento XVI, Discurso ao Conselho do Comitê Central dos Católicos, Friburgo, 24 de setembro de 2011). Podemos ver que continua a se realizar, tal e qual, a parábola: nós também podemos rejeitar todos os mensageiros, e até mesmo o Filho. A consequência a vemos em nós e na vida social: esse “maciço abandono da prática cristã” só pode redundar – dizia o cardeal Scola – num “grave prejuízo para a vida pessoal e comunitária da Igreja e da sociedade civil” (A. Scola, Homilia...). Mas o Senhor continua a nos mandar hoje também testemunhas, mensageiros: do Papa ao nosso Arcebispo, e tantas pessoas transformadas em nosso meio. Através deles, Cristo continua a nos chamar, a nos atrair para Ele a fim de que a nossa vinha não vire um deserto, mas produza frutos. Porque, como dizia o Papa, “a renovação da Igreja, em última análise, só pode se realizar através da disponibilidade para a conversão e através de uma fé renovada” (Bento XVI, Homilia da Missa, Friburgo, 25 de setembro de 2011). A conversão é construir sobre a pedra que outros descartaram e que também nós tantas vezes descartamos: é construir sobre o Senhor porque – como afirmou o Papa – “Ele está próximo de nós e seu coração se comove conosco, se inclina sobre nós. (...) Ele espera o nosso sim e o mendiga” (Bento XVI, Homilia...).
É diante desse Cristo que mendiga o nosso sim que hoje se decide a nossa vida. “Para se comunicar aos homens Cristo quis precisar dos homens” (A. Scola, Homilia...), nos lembrou o Arcebispo. Deus precisa de nós, fomos chamados para colaborar com a Sua missão, para poder testemunhar que a única pedra sobre a qual podemos de fato construir é justamente Ele.