Francisco Catão

Francisco Catão. A Igreja e a «Mudança de Época»

Teólogo brasileiro, em julho apresentou a tradução para o português da biografia de Dom Giussani, em São Paulo. Ainda doutorando, participou do Vaticano II e hoje o relê a partir do pontificado de Francisco. Leia amplos trechos da entrevista para a Passos
Cecília Canalle e Raúl Gouveia

Os cinco primeiros anos do pontificado do Papa Francisco só fizeram confirmar as significativas novidades de seus primeiros gestos, que simbolizavam sua disposição de efetivar na Igreja as mudanças profundas com que sonhávamos e que, desde a eleição de João XXIII, foram avalizadas de modo especial no Vaticano II. Francisco Catão, nascido em 1927, apresentou a biografia de Dom Giussani, em julho deste ano em São Paulo, e como simples doutorando em Estrasburgo, esteve muito próximo das discussões conciliares, a respeito da mudança pela qual estamos passando, como Igreja, no atual pontificado.

Uma sessão do Concílio Vaticano II na Basílica de São Pedro

O Papa Francisco afirma que estamos vivendo uma mudança de época, não apenas uma época de mudanças. Como a Igreja está enfrentando essa mudança de época?
O Papa Francisco tem uma característica importante: é o primeiro Papa que não participou do Concílio. Paulo VI (Montini) o presidiu, João Paulo II (Wojtyla) e Bento XVI (Ratzinger) o interpretaram, nenhum deles, porém, pôs em questão o estilo de Igreja pré-conciliar. Entenderam a renovação da Igreja mantendo-a tal como era, devendo continuar estruturalmente sempre a mesma. Paulo VI, que talvez seja quem melhor as percebeu, viveu na fase mais turbulenta do imediato pós-Concílio e encontrou dificuldade em fazer prevalecer a novidade. Seus sucessores procuraram manter as práticas anteriores, discutindo as diversas interpretações do Concílio. O pontificado de Francisco rompeu com essa tradição. Francisco chegou e disse logo: «Assumo as funções de Papa, porque sou o Bispo de Roma [inversão importante: Papa porque membro do corpo apostólico, primus inter pares], bispo que foram buscar no fim do mundo»… Todos os seus gestos anunciavam uma mudança radical, em continuidade com a novidade do Concílio, que, para ele, é um fruto do Espírito que precisa ser acolhido.

João XXIII com o então cardeal Montini
O pontificado de Francisco rompeu com essa tradição. Todos os seus gestos anunciavam uma mudança radical, em continuidade com a novidade do Concílio, que, para ele, é um fruto do Espírito que precisa ser acolhido.

Tem o Papa autoridade para reformar a Igreja?
As corajosas reformas que atribuímos ao Papa Francisco não são, porém, originariamente suas, mas do Espírito Santo, que falou à Igreja de modo especial, carismático, profético, no Vaticano II. Não se trata de ideias do Concílio, mas de decisões proféticas, que precisam ser colocadas em prática. É o que o Papa Francisco está fazendo. Hoje, passados 50 anos do Concílio, percebe-se que o Vaticano II não operou uma simples mudança na concepção da natureza da Igreja ou de sua vida, mas uma mudança radical. A Igreja é a mesma, «comunidade histórica dos que vivem à luz da Palavra, no Espírito de Jesus», expressão ou, como diz a Lumen gentium, «sacramento da unidade em Deus de toda a humanidade». Todavia, sua fisionomia histórica é totalmente outra, pois ela se havia revestido como de uma couraça para resistir, em particular, aos ataques da Reforma e da modernidade. No Concílio, o Espírito a convidou a deixar a couraça de lado e a encarar sua missão em sintonia mais estrita com a missão apostólica, tal como vemos no Evangelho. Desde o fim da cristandade, a Igreja tendera a encarar o mundo como ao inimigo. Foi então preciso esperar João XXIII (1958-1963), cuja vida o levou a ter uma aguda percepção da distância que separava o mundo moderno da Igreja. Era preciso atualizá-la (aggiornamento) para que pudesse cumprir sua missão.

Paulo VI e o cardeal Wojtyla
Hoje, passados 50 anos do Concílio, percebe-se que o Vaticano II não operou uma simples mudança na concepção da natureza da Igreja ou de sua vida, mas uma mudança radical.

Pode-se, então, dizer que Francisco revive João XXIII?
Sem dúvida, pelo carisma do Espírito Santo. Os dois têm um carisma análogo, são profetas: João XXIII pressente, e Francisco executa o que o Vaticano II anuncia. Francisco tem plena consciência de que inicia efetivamente uma nova época para a Igreja. Com sua formação na América Latina, a experiência e as dificuldades que atravessou como provincial dos jesuítas e como arcebispo de Buenos Aires, participante de uma teologia aberta aos problemas sociais e políticos, Francisco foi preparado para encaminhar a Igreja no acolhimento do Evangelho nos dias de hoje. Percebeu-os, inclusive porque olha para o mundo numa nova perspectiva, latino-americana. Quando se viu Papa, teve a certeza de qual era sua missão e a ela se dedica, na alegria e na paz do coração, como o revela a seus amigos e mais próximos colaboradores, o que, em geral, é uma graça dos carismáticos. Como Papa, Francisco tinha uma primeira obrigação: escrever a exortação apostólica do Sínodo da Nova Evangelização, realizado em outubro de 2012, sob Bento XVI. Não se via claro o que é a Nova Evangelização desde os tempos de João Paulo II. No Sínodo se procurou defini-la, porém, sem grande sucesso. Francisco não se preocupou em defini-la, simplesmente estabeleceu, na Evangelii gaudium, o programa de seu pontificado. Tenho a impressão – embora não seja um vaticanista, de que Francisco, de certo modo, chegou ao fim daquilo que ele queria fazer. O sermão de 15 de maio último foi muito significativo: «Um dia eu vou ter que me despedir, mas quero me despedir como São Paulo, no discurso aos presbíteros reunidos em Éfeso», isto é, “evangelizando”. E explica em que sentido está se despedindo, o que é muito sintomático. Sente que chegou ao fim do que tinha que realizar: abrir para a Igreja uma nova época, colocando-a em sintonia com o mundo, que vive também uma mudança de época, e deixando a outros a missão de edificar a Igreja de amanhã.

Bento XVI, Papa Emérito, e Francisco
O sermão de 15 de maio último foi muito significativo: «Um dia eu vou ter que me despedir, mas quero me despedir como São Paulo, no discurso aos presbíteros reunidos em Éfeso», isto é, “evangelizando”.

Quando o senhor descreve a atuação de Leão XIII, ele já percebia o entrincheiramento da Igreja?
Sim, sem dúvida. “Entrincheiramento” diz muito bem. Pio IX perdeu o poder temporal em 1870. Os Estados Pontifícios foram invadidos. O Papa teve que abandonar o Quirinal e se fechou no Vaticano. Esse alheamento durou oito anos. No conclave, o cardeal Pecci, futuro Leão XIII, foi eleito porque, sendo teólogo, tinha condições para repensar a Igreja, despida de poder temporal. Leão XIII se orientou para uma restauração da Igreja, segundo o modelo de cristandade da Idade Média. Não deu certo. Na sequência, os Papas ficaram como que presos ao modelo de Igreja que recebiam, animada pela memória da cristandade, e cada dia mais resistente em acolher a evolução cultural do Ocidente. Em 1958, o Conclave João XXIII, que tinha uma visão realista e mais positiva do mundo moderno. Mais do que um homem de Igreja: era um diplomata. Núncio na Europa Oriental, era administrador apostólico na Turquia, onde exerceu importante ação de proteção aos judeus perseguidos pelo nazismo. Em 1946, foi chamado de emergência para assumir o posto de núncio em Paris. O general De Gaulle anunciara que não convidaria o núncio, amigo de Pétain, para as comemorações de Natal. Era difícil enfrentar o general De Gaulle, logo depois da guerra. Pio XII cedeu à ultima hora. Um telegrama foi enviado a monsenhor Roncalli, dando-lhe 24 horas para se apresentar como núncio em Paris, pois na falta do núncio competiria ao embaixador soviético desejar os votos de Natal ao presidente. Foi assim que Roncalli, o camponês de Bérgamo, se viu de repente como núncio em Paris. Percebeu que a Igreja precisava mudar de atitude em relação ao mundo moderno. Nomeado Arcebispo de Veneza e depois Cardeal, levou esse impacto do mundo moderno para a Cátedra de Pedro, em 1958. O problema, porém, era de tal dimensão que reclamava a colaboração de todos os responsáveis, os bispos do mundo inteiro. Por que então não convocar um Concílio? Foi sua primeira e surpreendente ideia. Eleito em outubro de 1958, logo no dia 25 de janeiro de 1959 provocou enorme expectativa em todo o mundo, anunciando o projeto de convocar um Concílio, para colocar a Igreja em sintonia com a nova época que se anunciava. Esses detalhes mostram como o Espírito Santo ia dirigindo os acontecimentos, a partir das pessoas, para realizar o Concílio!

Papa Francisco durante a viagem ao Brasil
Esses detalhes mostram como o Espírito Santo ia dirigindo os acontecimentos, a partir das pessoas, para realizar o Concílio!

Temos verificado, no Brasil, o aumento da polarização e da dificuldade de diálogo, particularmente no campo político. Que contribuições podemos oferecer como católicos?
A pergunta é extremamente importante. Mas vou tentar ser breve. O Papa Francisco, nessa sua última constituição apostólica, a Veritatis gaudium, sobre os estudos que se fazem na Igreja, sublinha a importância primordial da experiência cristã e mostra como dialogar com as ciências e com o mundo, no sentido amplo do termo. O Proêmio, no número 4, enumera quatro critérios a serem observados, sendo o primeiro: toda reflexão sobre a verdade da fé parte da profissão pessoal de fé, a experiência cristã, que deve sustentar o diálogo com os demais saberes, num clima marcado pela transdisciplinaridade, no Espírito, em que tudo e todos colaboram numa grande rede. Tudo é a consequência desse primeiro critério. O diálogo não consiste em buscar que todos tenham a mesma ideia, pois o outro é sempre outro, nunca pensará exatamente como você. Mas cada um de nós está unido ao outro pelo amor fraterno, no seio da comunidade. Francisco leva isso ao extremo: não se trata de conciliar ideias; ideias se discutem. Cada um tem o direito de ter a sua ideia. Pela cultura em que nascemos e pela forma como fomos educados, somos diferentes uns dos outros! Cada um tem o direito de ser diferente, pois é diferente como pessoa. O que alimenta o diálogo é o Espírito. Dialoga-se quando se busca a verdade no mesmo espírito. O Espírito nos une como pessoas, na busca da fidelidade à verdade e à justiça, a caminho da paz.

João Paulo II e padre Giussani

Buscando algo além. Parece-me, aliás, que o senhor já falou alguma coisa do amor pelo outro.
O amor pelo outro é o Espírito, que a teologia chama também de “amor” e “dom”. Na fé, o Espírito é o amor que procede do Pai e do Filho e os une em Deus, é o Espírito que se revela no Evangelho: o mandamento de Jesus é amarmo-nos como Ele nos ama. O clima do diálogo é o amor recíproco. Nisso seremos reconhecidos como discípulos de Jesus: se nos amarmos uns aos outros. A Igreja em que não existe esse amor, é vazia, não tem sentido. Ela só tem sentido na medida em que, animada por esse amor, presta serviço. É o que diz o primeiro número da Lumen gentium: «A Igreja é o sacramento – quer dizer, a expressão – da união com Deus e da unidade do gênero humano». É a abertura total de horizonte, que só agora Francisco coloca efetivamente em prática. A Igreja não é uma instituição tradicional, para defender ideias, é uma comunhão de amor, em busca da verdade.

O senhor conheceu Giussani lendo a sua biografia. Vê relação entre o Papa Francisco e Dom Giussani?
No meu pouco conhecimento, o que me impressiona é que Francisco tem um traço comum importantíssimo com Giussani: o discurso existencial. É uma mesma visão do cristianismo, que não é conceitual, mas vivencial. Falam da vida cristã, da experiência cristã, não tanto das virtudes teologais, das virtudes morais, dos dogmas… O discurso é centrado sobre a realidade. Acho que uma das características fundamentais de Francisco e de Giussani é o discurso existencial. Esse discurso existencial aparenta ser novo na tradição católica. Alguns grandes modernistas – como Alfred Loisy, por exemplo – criticavam a Igreja por causa disso. Jesus sempre falou voltado para a decisão prática, o modo de agir, a situação existencial. Quando ele perdoa, anuncia o Evangelho, as bem-aventuranças, ou ensina que no juízo final seremos tratados da maneira como tratamos o próximo, tem sempre um discurso existencial. É também um dos traços da filosofia moderna, uma das reivindicações fundamentais da fenomenologia. Tanto Giussani quanto Francisco priorizam esse discurso existencial. Veja-se, por exemplo, a Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, muito próxima do ensinamento de Giussani, por causa dessa visão existencial. Francisco não a elabora como um tratado de espiritualidade: a santidade é a vida que levamos, quando animada pelo Evangelho. Nossa existência é santa, uma santidade de classe média, não uma “grande” santidade a ser canonizada pela Igreja, santidade do dia a dia, que todos nós, você e eu, vivemos suportando-nos uns aos outros, na alegria e com coragem, sobretudo com discernimento. Um discurso autenticamente existencial, muito próximo do discurso de Giussani.

*A entrevista completa encontra-se na edição impressa da Revista Passos de agosto/2018.