A beleza nos cantos da casa

O isolamento social nos obrigou a estar em casa. Uma prisão ou uma janela aberta para o céu. Alguns amigos decidiram olhá-la buscando as gratas surpresas que a vida oferece. E contagiaram outros atravessando as fronteiras. Da Passos de agosto
Liziane Bittencourt e Débora Ramos Cavalieri

«Não estou em casa para não morrer. Estou em casa para viver, viver, para alcançar a vida verdadeira.» Estas palavras, ditas por uma jovem italiana a Julián Carrón, convenceram três amigos, Débora Ramos, Marcela Bertelli e Julián de la Morena, a escrever uma coleção de breves textos sobre o valor e o significado dos diferentes lugares e objetos de uma casa. A inspiração veio pelo escritor inglês Gilbert Keith Chesterton, a partir da exposição intitulada “Il Cielo in una stanza”, organizada numa das edições do Meeting di Rímini, na Itália. Às reflexões do autor, carregadas das vivências numa Inglaterra do século XIX, se somaram as experiências de duas mulheres mães, profissionais e donas de casa que em meio ao isolamento imposto pela pandemia passaram a viver seus próprios lares de um modo diferente.

Pode-se dizer que na “voz” de Débora, Marcela e Julián as descrições de cada cômodo foram “atualizadas”. O desafio foi lançado: em cada canto de cada casa é possível reconhecer e encontrar as gratas surpresas que a vida verdadeira oferece. O site (oceu2020.wixsite.com/acasa), publicado em português, inglês, italiano e espanhol, usa uma forma de navegação que imita a estrutura de uma casa, com possibilidade de acessar cada ambiente. O leitor, porém, é convidado a entrar pela forma convencional: a porta. Mas logo nas primeiras linhas se dá conta que não se trata de uma casa comum. Além das portas da acolhida e do serviço, é apresentado a uma terceira, secreta… por onde entra o “Mistério”.

A iniciativa, cuja interação extrapolou qualquer medida, fez nascer diálogos com famílias de toda a América Latina, Brasil e Espanha. A seguir alguns destes relatos retirados dos encontro on-line entre eles.

O primeiro depoimento é de Débora, de São Paulo, uma das organizadoras: «O desafio do novo Coronavírus tomou a forma de um encontro. E um encontro com aqueles que na maioria das vezes menos esperamos: os filhos, o marido, o lavar as louças, enfim, na mais trivial vicissitude da vida doméstica. No lugar do medo, uma pergunta: o que é que eu tenho de mais caro, a ponto de não poder perdê-lo, a ponto de precisar de sua conveniência em qualquer circunstância? E foi assim que logo no início da quarentena, numa de nossas conversas pelo Zoom, Julián comentou sobre uma mostra que falava de viver o céu em casa. Parece impressionante e absurdo dizer que o céu está aqui, nestes dias, nestas provocações, nestas circunstâncias. O que significa viver o céu, sobretudo em um momento como este? Durante todo este tempo observamos muito minhas filhas, e, depois de quase quatro meses em casa, pude constatar que ao invés do tédio, elas estão muito bem. Jesus Montiel diz que “as crianças são a prova de que não fomos feitos para os projetos, e sim para viver amando e sendo amados”. Martina, de 5 anos, antes de dormir começou a declarar seu amor por mim: “Mamãe, eu te amo, mamãe, obrigada”. E isso me chamou muito a atenção. Como é possível terminar o dia declarando assim seu amor por algo?



Depois de um dia naquele “carrossel de emoções”? Como é possível que o saldo seja uma comoção, determinada, porque sou amada? Numa dessas noites me deu um pequeno desenho e explicou que era um carrossel de corações. Colei este desenho perto de onde durmo para ver todo dia antes de dormir, e ao acordar, pois sinto uma inquietação profunda de também ser catalisada por uma Presença como essa. Há um trecho no texto do Quarto do Casal que diz: “Despertar revivendo o presente de um novo dia, e descansar deixando que Deus siga cuidando do mundo”. A outra filha, de 1 ano, Rebecca, começou a andar e de repente já sobe em tudo. Olhando para ela, vejo que está presente em tudo. Então me impacta olhar para ela. Eu, que nestes dias queria ver o horizonte, noto que aqueles olhos carregam uma surpresa pela realidade maior do que qualquer belo horizonte. É como se ela visse Deus, tudo serve; não perde um instante, e adere com sede. Não tem conformismo. E eu? Estou presente assim neste instante? O livro que tem me acompanhado nestes meses [Testemunhas da Esperança, de Van Thuan] tem uma passagem que diz: “Viver o momento presente é o caminho mais simples e seguro para chegar a Deus”. Esta jornada entre crianças, tarefas domésticas e os nossos trabalhos – junto com toda a nossa humanidade, que vem com toda sua força diante dos nossos olhos – é muito mais trabalhosa e estafante do que quando saíamos para trabalhar e as crianças iam à escola. Mas dentro de tudo isso, a primeira coisa que percebemos ser útil é procurar estar presente no instante, como a Rebecca, e com a forma como ele se apresenta. Para brincar com as crianças é preciso estar presente com elas, senão vamos com a mente para as horas seguintes, em que fazer qualquer outra coisa parece mais importante do que estar ali. Trata-se de algo além do “eu dou conta de fazer isso” ou “eu não dou conta de fazer isso”. A descoberta de experimentar a realidade desta maneira traz um sentido novo para os dias, tornando-os mais interessantes. Ela é feita de instante e memória, e assim verificamos que é verdade: é no presente que começa a aventura da esperança».

Filippo, marido de Débora, num destes encontros nos contou que «depois de meses cuidando diligentemente de um ramo de flor quase morto, que ganhei de um amigo, ele começou a crescer e, de repente, floresceu. Ao contar este feito ao mesmo amigo, este comentou: “Que planta forte!” E imediatamente pensei: “Como assim, que planta forte?! E eu, que vivi a promessa de sentir aquele perfume por mais de 6 meses?” Tocaram-me bastante aquelas simples palavras, então me perguntei de qual posição ele olhou para esta história e por que me parecia mais interessante ver como ele. Não sei bem por quê, mas observando o acontecimento deste ramo forte que estava por florescer, não pude não pensar nas nossas duas filhas. É como se a cada dia eu vivesse a promessa de ver os frutos de todos os esforços que fazemos para acompanhar, educar, instruir, corrigir, moldar… e quase nunca percebo que há algo nelas irredutível, que misteriosamente está se desenrolando e que não depende de mim. O que depende de mim, em certo sentido, é ver aquela força. Ao eco daquelas palavras que brotaram imprevistas, percebi que a vida é a relação contínua com alguém que está me doando o presente. Acho que se pode morrer de tédio e insatisfação estando em casa, mas também se pode viver verdadeiramente, deixando-se ferir pelo presente graças a uma companhia, como aconteceu comigo na relação com este amigo».

Outro relato é de Carolina, da Argentina, mãe de seis filhos, que propôs começar um desses encontros virtuais com a música As mãos de minha mãe, do compositor Peteco Carabajal. Ela nos conta sua experiência a partir desta canção. Um dia, passando roupa, se surpreendeu cantando-a. Ficou tocada pelo modo como o compositor olhava sua mãe. Peteco muito aprendeu observando como ela vivia, fazendo o que as mães fazem todos os dias. Assim comparou com um desses «pássaros que amam a vida». Para Carolina, «é na maneira como nos relacionamos com nossos filhos que afirmamos se amamos ou não a vida, se estamos agradecidos ou não por sua existência». Observa que, para seus filhos, o tempo é eterno. E assim aprende a respeitar o que de eterno há no tempo.

Para Francisco e Nuria, da Espanha, pais de três filhos, a experiência com seus filhos demonstrou que a relação com eles é o contrário da rigidez, é necessário aprender a adaptar-se e ser flexíveis como eles. No começo da quarentena, já prevendo que passariam muitos dias com a família completa, decidiram conversar com as monjas de um mosteiro de clausura, porque intuíam que a ordem, característica desse lugar, seria de grande ajuda para sua casa. «Fazer as coisas, uma a uma, mesmo que signifique fazer menos, e não da maneira que quisermos». Agora, já voltando à vida social, se sentiram por alguns momentos muito tristes, «mas não são os nossos próprios esforços que sustentam nossa relação com o Mistério».

Para Cae, do Chile, mãe de três filhos, foi possível identificar que foi ao redor da cozinha que aconteciam os encontros dos jovens com os adultos, e ali eles mostravam quem realmente são. Ali aprendem a servir aos demais, a estar atentos ao outro.

Completando, para Fernando, da Argentina, o grande desafio de hoje é também o de estar presente no presente. «É uma grande tentação, durante este tempo, estar em casa pensando que o lugar onde deveria estar é outro.» E se dá conta de que, ao não estar presente no presente, não só perde a si mesmo, mas também violenta as coisas que tem diante de si com imagens e enquadramentos.

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Para Rosário, o desejo de «viver o céu em casa» surgiu ao ver uma postagem sobre o site no Instagram (@ceu.em.casa). A publicação foi o ponto de partida para passar de um jeito diferente os dias, marcados pelo peso das tarefas domésticas em casa com três crianças, no começo da quarentena. «Passei a entender que o céu muitas vezes é feito do caos que é a casa.»

Este último encontro se encerra com a voz de Julián de la Morena, que retoma as três portas que há em uma casa: a da acolhida, a do serviço e a do Mistério. Esta última, para referir-se à Presença cuja chegada é conveniente, é a do bom Pai, que cuida de nós e nos acompanha fazendo-se presente também no meio do caos.