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Hoje, aqui, agora

A provocação de uma famosa jornalista espanhola. Ela vê a multidão nas ruas de madrugada, o desejo ardente de possuírem a vida. Mas quantos vão dormir felizes? Por que não aprendem com o que acontece? (de El País, 23 de maio de 2021)
Rosa Montero

Como moro num bairro central de Madri, pude ouvir da minha casa os fogos de artifício pelo encerramento do estado de alerta, o barulho de maremoto da multidão pelas ruas e sua fome insaciável de felicidade. Muito desejo de varar a noite, de possuir a vida. Era assustador ver que nos esquecemos de novo do vírus, mas o tema deste artigo não é esse esquecimento irresponsável. Porque, por outro lado, a explosão de alegria me pareceu muito compreensível.

Pergunto-me, isso sim, quantos foram dormir felizes essa madrugada, sozinhos ou acompanhados. Quantos se sentiram decepcionados, reféns que eram de suas expectativas. Quantos voltaram a cair na conhecida insatisfação do ser humano e na fastidiosa incapacidade que parecemos ter para viver o certo, o tangível, a simples realidade. «Procuramos a felicidade, mas sem saber onde, como os bêbados procuram sua casa, sabendo que têm uma», disse o grande Voltaire, e é verdade: vamos às apalpadelas. A pandemia deveria ter-nos ensinado algo a respeito da vibrante e única verdade do presente, deste exato instante em que vivemos, mas temo que não aprenderemos nada. Já vi isso muitas vezes antes, por exemplo em amigos que foram diagnosticados com um câncer e que, na impressionante clarividência do susto, garantem que a doença lhes abriu os olhos e que, se saírem dessa, nunca mais voltarão a desperdiçar o tempo, a se preocupar com bobagens e a deixar de apreciar os verdadeiros valores da vida. Amigos que logo se curam (ainda bem) e alguns anos depois voltam a recair no mesmo atropelo mental, na mesma confusão sobre o que são e o que desejam.

Comigo acontece igual. Às vezes me desespera constatar como aprendemos pouco, como nos custa muito introduzir um fio de conhecimento na nossa cabeça e com que facilidade podemos perdê-lo. Vocês vão ver, sei bem a teoria. Pior ainda: passei anos escrevendo sobre isso e dando sábios conselhos sobre a necessidade de aprender a viver o presente (afinal, não existe outra coisa, porque a vida é isso), mas são recomendações que, na verdade, eu mesma não sei seguir. É que há uma diferença abissal entre o que alguém pensa e a possibilidade de fazer com que esse pensamento atravesse o corpo. Custa conseguir viver conforme o que se crê. De modo que, agora, aqui estou, como quase todos, postergando inconscientemente a felicidade a um momento sempre fora de mão, um pouco mais longe. Serei feliz quando passar esse evento público que não quero fazer e muito me incomoda; é o que me digo, por exemplo, sem pensar direito, só com um pedaço do cérebro. Mas logo o evento chega, você sobrevive a ele, tudo passa e, opa! aparecem no horizonte outros compromissos pessoais ou profissionais que te causam incômodo e incerteza, e voltam a colocar a sua meta de felicidade num futuro que nunca alcançamos, porque na vida sempre haverá uma cota de incômodo e incerteza, e precisamos saber navegá-la assumindo isso. Certamente também é conveniente aprender a dizer não aos compromissos de que não gostamos, mas isso são outros quinhentos.

Serei feliz quando tiver um companheiro, serei feliz quando conseguir mais independência do meu companheiro; serei feliz quando tiver filhos, serei feliz quando meus filhos crescerem e eu puder recuperar minha vida; serei feliz quando tiver trabalho, serei feliz quando tiver menos trabalho. Como quer que seja, sempre conseguimos estragar a realidade. Diminuí-la, sujá-la, enchê-la de gemidos discordantes. De buracos. A felicidade é uma lebre mecânica que nos induz a correr atrás dela com a língua de fora, e o mais idiota é que somos nós mesmos que lhe damos corda.

«Vivemos esta vida como se carregássemos outra na mala», disse Hemingway, um senhor a quem certamente detesto. Mas tinha toda a razão: desperdiçamos de maneira burra os nossos dias, adiando a consciência plena de viver para outro momento, como se o presente fosse só uma estação de passagem, uma etapa tediosa no nosso agitado caminho até não sei onde. Parece até que estamos permanentemente numa esteira rolante de um aeroporto, passageiros em movimento eterno rumo ao nada. Serei feliz quando chegar ao destino. Pois bem, a má notícia é que nunca se chega. Só existe o hoje, o aqui e o agora.

©Rosa Montero/Ediciones EL PAÍS, S.L 2021