Bruno Tolentino

“Tudo dói, menos a graça” – algumas notas sobre a vida e a obra de Bruno Tolentino

Há 10 anos do falecimento do poeta Bruno Tolentino, relembramos algumas notas sobre sua vida e obra publicados na Revista Passos de agosto/2007
Juliana P. Perez

“Lâminas, golpes agudos.” – assim termina o primeiro texto de As horas de Katharina, livro de poesias publicado por Bruno Tolentino em 1994. E assim inicia a história da monja carmelita que teria escrito o livro e que, como Santa Teresa d’Avila, se converte dentro de seu próprio convento, através de um caminho de redescoberta de si que inclui fugas, rancores, rupturas e traições até que a “andorinha” – a alma – deixe de se debater, “solitária, entre as paredes”, abandone a idéia de si mesma e se entregue a um espaço livre. “Lâminas, golpes agudos” – a história de conversão de Katharina, que sempre foi reconhecida como a história da conversão de seu criador, inicia com um Adeus, com uma experiência de abandono e dor: Katharina despede-se de seu amante e resta com “os longos vazios” (título da primeira parte do livro) até descobrir “o castelo interior” (segunda parte) e alcançar o “carmim da tarde” plena de uma leveza, de uma serenidade melancólica nascida do perdão e da inevitabilidade da morte:

“Eu apenas lhe pedira
perdão por ser como sou...
Que me tomasse na mão,
que rasgasse tira a tira
esta múmia que cansou
de arrastar um coração
agarrado a uma mentira,
a farrapos de ilusão...
Mais nada. E de supetão
senti-me levantar vôo!
Um sopro me levantou
como uma folha do chão!
[...]”
(“Leveza”, p.190)


Vai, festa da vida,
amor, sonho, ilusão,
padecimento, ida
e volta... Vai, canção,
e tu, meu coração,
minha velha ferida.
Em toda despedida
há um aceno de mão
e o meu é este rabisco.
É tudo a que me arrisco
debruçada ao balcão
para a última visita,
a última visão:
o adeus da parasita.
(“À janela”, p. 209)


[...]
Se falhei à vida,
se errei de endereço,

se compliquei tudo
sem necessidade
e fiz da saudade
o meu grito agudo,

agora me espanto
de andar tão calada,
leve como nada,
doce como o manto

da tarde lá fora.
[...]
Caem-me uma a uma
pétalas do centro
da alma, e por dentro
já se me perfuma

mesmo o pensamento!
[...]
(“Reincidências”, p. 193)

Se vale a pena citar aqui alguns versos de As horas de Katharina é porque eles continuaram na vida e na obra de Tolentino: a dor é a viga mestra de seus textos, pois somente ela possibilita a passagem da idéia ao real. Assim, embora seus livros se dividam entre os de caráter mais abstrato, cujo exemplo maior é O mundo como idéia (2002), e os de caráter narrativo, em que uma idéia principal toma corpo em uma história, como As horas de Katharina (1994), A balada do cárcere (1996) e A imitação do amanhecer (2006), eles sempre apresentarão as fases de um caminho filosófico e existencial cujo ápice são a aceitação do sacrifício e a conseqüente visão da vida ressuscitada. Por este motivo, entre todas as personagens criadas por Tolentino para representar o drama da razão que luta entre se apegar a uma idéia ou se abrir à realidade, Katharina sempre foi a preferida: nela se vêem as contradições e paixões da alma, o combate entre a ilusão e a realidade e, enfim, o encontro com Cristo como fonte de paz.

Só a dramática conversão de Katharina explica a preocupação central de O mundo como idéia: não haveria motivo para criticar a cultura ocidental dos últimos dois séculos, não haveria por que lutar contra a “Dama Idéia”, nem por que defender a abertura constante ao real, se não houvesse uma possibilidade verdadeira de encontro entre a criatura e o Criador. Neste livro, dois quadros resumem o problema central: o mundo como idéia – representado pelo quadro de Paolo Ucello, – opõe-se ao mundo como rapto – representado pelo olhar de uma jovem no quadro de Vermeer: “a doce viga mestra do fugaz,/ sustém o olhar da moça: o instante veio/ e assustou-a... Uma vespa? Algum rapaz?/ A vida, em todo caso, a vida em tudo!”.

Para Tolentino, o duro combate à Idéia, “uma perfeita construção/ sem as falhas da vida” (p. 403) só vale a pena porque no encontro com o real está a verdadeira liberdade.

Em A imitação do amanhecer, o drama se repete na figura de um amante que, por recusar aceitar a morte do amado, mumifica-o e passa a recordar sua presença. A estranha narração emoldura, na verdade, uma filosofia da História e coloca em confronto duas visões da vida e da morte: uma que “imita o amanhecer” e deseja escapar do sofrimento – como flamingos que voam na direção oposta do ocaso, refletindo o sol em suas asas avermelhadas –; outra que aceita a despedida, como o cervo da Lapônia, que curva sua cabeça majestosa à descida da noite que, naquelas regiões longínquas, durará vários meses.

Não foi por acaso que os principais livros de poesia de Bruno Tolentino trouxeram, ao mesmo tempo, polêmicas e prêmios: são obras de uma pessoa que Deus fez “partir em dois, de vez em quando” e que ousou afirmar, das mais diversas e belas formas, que “tudo dói, menos a graça”.

(de Passos n.85, Agosto 2007)