Obras amigas
Das favelas brasileiras às vilas argentinas, o contágio explode entre os mais vulneráveis. Onde o medo da fome é maior do que o do vírus. Da Passos de junho, as vozes de algumas ONGs sul-americanas e da amizade operativa com realidades italianasNo Brasil, o Coronavírus atinge um povo já provado por uma dura situação social e econômica. Mais que todos, naturalmente, os mais vulneráveis e os que compartilham a vida com eles. É o caso das muitas obras sociais que, diante do contágio, não abandonaram sua gente, as famílias das favelas, as muitíssimas crianças e os meninos de rua que educam diariamente. Desde abril – a partir do projeto Obras Gêmeas da CdO Obras Sociais, com o qual há anos nasceu uma amizade entre entidades brasileiras e italianas – temos nos acompanhado entre as obras, em um momento tão crítico.
Na Escola Agrícola de Manaus, as aulas foram suspensas de um dia para o outro e os responsáveis, Celso e Darlete Batista de Oliveira, precisaram decidir rapidamente o que fazer: mandar os meninos de volta para suas aldeias, viajando em barcos superlotados, ou mantê-los na escola? O que é mais seguro? Magali Bonfim dirige a Creche João Paulo II, em Salvador: ali na comunidade o povo não acredita na pandemia, percebe-a como distante. Precisam sair de manhã para ter o que comer no mesmo dia: como convencê-los a ficar em casa? As famílias das crianças do bairro de Samambaia, em Brasília, que todo dia às centenas são acolhidas no centro Nossa Senhora Mãe dos Homens, também têm problemas de sustento: Patrícia Almeida, tendo que fechar a estrutura, pergunta-se o que fazer para não perder o relacionamento cotidiano que lhe permitia conhecer os problemas em tempo real... Além disso, como fazer a prevenção e respeitar a quarentena em uma favela?
Silvia Caironi dirige a Aventura de Construir, que trabalha com microempreendedores de baixa renda da periferia de São Paulo, que não correm riscos apenas em relação à própria atividade, mas também ao não ter o que comer. Como ficar em casa, quando você teme mais a fome do que o vírus? Na favela de Salvador, Paola Cigarini deve fechar o centro educativo, em uma zona muito violenta, onde os seus meninos correm o risco de morrer assassinados todos os dias. O vírus é mais perigoso que a vida na favela?
Rosa Brambilla, em Belo Horizonte, sabe que a ajuda maior para dar às famílias é fechar o centro, explicar que isso é necessário para salvar vidas, que elas precisam ficar em casa. Mas ela e os seus educadores têm consciência de que o isolamento na favela é difícil: “As casas são tão pequenas que a rua é a natural extensão delas. A calçada é um ponto de encontro, a rua é o cenário das brincadeiras... os jovens, principalmente se envolvidos no tráfico, continuam a ficar na rua, bem como os muitíssimos desempregados e os idosos”.
Ninguém tem uma receita para uma situação semelhante, nem para tantos outros problemas. Mas a amizade operativa das Obras Gêmeas nasceu e cresceu justamente ao enfrentar problemas maiores que nós, sujando as mãos e lançando para frente o coração, por amor às pessoas encontradas. Uma amizade, diz Walter Sabattoli, presidente da CdO Obras Sociais, “que também ajuda muito as obras italianas. No confronto com realidades e pessoas que vivem situações normalmente muito mais difíceis que as nossas, alargam-se os horizontes e encontram-se ideias e energias para iniciar novos caminhos”. É assim que acontece também diante da emergência do Coronavírus.
“O primeiro sustento foi a ajuda a nos darmos conta da gravidade”, conta Adriano Gaved, que do Rio de Janeiro apoia a atividade da CdO Obras Sociais no Brasil, porque “quando na Itália o contágio já era forte, aqui nos parecia um inimigo distante, quase irreal. A relação com os italianos fez com que nos déssemos conta e nos perguntássemos como espalhar esta consciência”. Os governos, o federal e os estaduais, se mobilizaram de forma aleatória; em muitos casos decretaram o fechamento das escolas e dos centros educativos de um dia para o outro, sem o tempo de planejar novas atividades, informar as famílias, entender como pagar os funcionários.
“Eu me senti perdida e sem energia para agir”, conta Patrícia, de Brasília. Mesmo sem os recursos tecnológicos que ouviu no relato da Praça dos Ofícios, de Turim, e tendo diante de si famílias muito mais pobres, eles se moveram: “Criamos logo um grupo no WhatsApp para nos comunicar com as famílias, para que possam dizer-nos as dúvidas e as dificuldades. Muitas não tinham entendido como ter acesso aos subsídios do Governo. Mas com o grupo nós as ajudamos a obtê-los”.
A pergunta que começou a correr via Zoom era a mesma, na Europa e na América Latina: como continuar, com realismo? Principalmente, como não deixar sozinhos os nossos meninos? E como tratar os funcionários, para permitir-lhes a manutenção e preservar a sustentabilidade da obra ao mesmo tempo? Como nos reorganizar?
Não existem receitas, existem experiências. E então Mauro Battuello conta sobre a Praça dos Ofícios de Turim: “Estamos fechados, mas não parados. E as atividades continuam em modalidades diferentes”. Um jeito novo, que é uma explosão de criatividade. “Um canal no YouTube com as videoaulas; além disso, Facebook e Instagram com as notícias, pequenos exercícios, fotos, filmes e sugestões de leitura... E grupos de WhatsApp para cada projeto e oficina, pelos quais transmitimos e recebemos as lições de casa”. Ficou admirado quando soube que uma jovem colaboradora sua às vezes se conecta com os meninos durante o café da manhã, “para que desde cedo pela manhã cada um possa sentir-se chamado pelo nome e saiba que é acolhido”. O objetivo de tudo “é continuar a nossa relação, educativa e formativa, com os meninos”.
O diálogo é belíssimo. Muitas perguntas e o realismo de Dr. Amedeo, que contextualiza e oferece possíveis soluções. “Começamos a receber doações, para onde é sensato encaminhá-las?”, ou então: “Como fazer isolamento, se em um cômodo moram muitas pessoas e não há banheiros?”, até: “Como higienizar?”, “Como ler os sintomas?”, “Como fazer as máscaras?”... A propósito de máscaras, aparece a notícia de que a cooperativa social Pinóquio, de Bréscia, começou a produzi-las: os meninos tinham preparado um vídeo em espanhol para explicar aos amigos das villas argentinas como fabricá-las, e assim nasceu logo a ideia de legendá-lo também em português para o Brasil.
O tempo passa veloz e as perguntam se sucedem... é uma história que segue em frente, portanto marcam outro encontro para continuarem o diálogo, acompanhando a realidade que vai revelar novos aspectos a serem enfrentados. “A grande ajuda que recebo”, conclui Silvia, “é a possibilidade de perceber a situação de um modo realista, razoável e metódico. Isto é fundamental para agir com serenidade e certeza no cotidiano. Quando fazemos as nossas videoconferências, tenho a nítida percepção de que entro de um modo e saio de outro, porque enfrentar as coisas juntos, chamá-las pelo nome, muda o meu pensamento”.#Coronavírus